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2. A HISTÓRIA DA LEITURA: ALGUNS RECORTES

2.3. O ENSINO DA LEITURA

Como já assinalamos, a vinda da corte para o Brasil contribuiu para que fosse proporcionada uma maior disseminação de livros e impressos de uma forma geral, em função da criação da Imprensa Régia, o que consequentemente “trouxe enriquecimento da vida cultural da colônia, a partir da necessidade da elite dominante, que nela encontrava as formas de sociabilidade indispensáveis para sua própria existência” (NEVES, 1999, p.378). Era preciso mantê-la dentro dos padrões dos letrados da Europa. Mas isso também provocou uma demanda de mão de obra e de serviços, por conta também da crescente urbanização. Emergia,

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Esse modelo de leitura remete ao período Renascentista, conforme Chartier (1999, p.25) “Durante a Renascença, os humanistas praticaram um tipo de leitura baseado na acumulação e no livro de lugares- comuns, no qual o leitor tinha que copiar citações que leu e observações que tinha feito ou coletado sob uma série de tópicos, que permitiam o reaproveitamento das informações e exemplos acumulados para a produção de novos textos.”

pois, uma população para quem não bastava apenas a aquisição do conhecimento via ouvir- ler.

Considerando esse contexto, para que tenhamos uma visão geral das necessidades agora suscitadas, convém destacarmos alguns pontos que caracterizaram o ensino no período colonial, para que possamos entender os rumos seguidos pelo ensino da leitura quando esta alcançou as camadas mais humildes da população, por compreendermos que o ensino a ser ministrado nas décadas seguintes, de certa forma, vai espelhar o reflexo deixado pelo sistema de ensino propagado pelos jesuítas. Desse modo, convém fazermos um recorte mais específico no que se refere à contribuição destes, tendo em vista terem sido eles os responsáveis pela fundação das primeiras escolas no período colonial, com objetivo inicial de propagar o evangelho, visando à salvação das almas.

2.3.1 Os marcos da escolarização da leitura

Segundo Hébrard (1999, p.37), “a alfabetização universal dos cristãos foi considerada necessária após o concílio de Trento para transmitir a ciência da salvação.” Sendo essa a marca essencial das escolas jesuíticas, o contexto brasileiro também aí se enquadra e, neste sentido, vamos ter uma educação voltada para a formação de clérigos e leigos, com ênfase no ensino focado na língua latina e literatura clássica, destituído dos saberes da ciência, considerados profanos pelos religiosos. Era natural que assim fosse, tendo em vista que as escolas aqui fundadas não se destinavam a todos, ou seja, ao povo em geral, mas a uma elite. E a serviço da elite, impregna-se de características peculiares ao público para a qual se destinava. Para isso, segundo Alves (2005), os jesuítas dividiam o ensino-aprendizagem em dois momentos considerados significativos: o primeiro, que correspondia a prelection, que trazia como centro a figura e a ação do professor. Era entendido como uma explicação do que o aluno deveria estudar e esta explicação poderia ser precedida de uma recitação de cor de um texto latino em prosa ou em verso. Ainda de acordo com o referido autor, quase sempre, as atividades de ensino tinham como eixo norteador a leitura de um texto, que podia advir sobre uma carta, um documento, um trecho de uma obra clássica. Seguida à realização da leitura, poderia, concomitantemente, seguir o resumo dos textos lidos e, na etapa seguinte, o professor dava continuidade com a leitura de um texto de sua particular elaboração. O segundo momento a destacar referia-se ao da composição, no qual

usando um modelo – uma carta, um documento ou um extrato “expurgado” da literatura greco-romana – o jovem nele se aprofundava pelo estudo. O modelo

deveria ser “contemplado”, “admirado” e “assimilado”, para possibilitar, na sequência, a sua “reprodução” por meio de uma composição pessoal (ALVES, 2005, p. 624).

Dentro dessa perspectiva, entendemos que a finalidade dessas escolas visava à formação de homens eruditos, cujos estudos podiam ter continuidade na Universidade de Coimbra, para aqueles que não desejassem seguir a carreira eclesiástica. Restava, então, à massa da população, aliada à catequese dos jesuítas, cujo objetivo principal disseminado por eles fazia referência à salvação das almas, escolas voltadas para os saberes elementares, escolas de “ler e escrever” 8, que foram inicialmente destinadas às crianças indígenas (com o objetivo de, simultaneamente, influenciar os adultos) e, posteriormente, estendidas aos filhos dos colonos.

Desse modo, o marco inicial da escolarização privilegiava as crianças e foi marcado pela atuação dos jesuítas. Era um ensino voltado para atender uma demanda pequena da população, tendo em vista que se encontravam aí excluídos os escravos e os de classe social menos favorecida da população, a exemplo dos colonos, para quem era destinado um ensino centrado apenas na aquisição dos saberes elementares como ler e contar. Contudo, de igual modo, vimos também que o crescimento da população e a mudança da corte portuguesa aqui para o Brasil fez emergir a necessidade de se ampliar a oferta da escolarização. É nesse sentido que vamos assistir, no período Imperial, a iniciativas que pudessem dar conta dessa ampliação. De acordo com Galvão e Batista (1998, p.23):

A sociedade começou a se tornar mais complexa e as demandas em torno da escolarização aumentaram significativamente. Mais postos de trabalho surgiram, outros costumes culturais foram adotados: a instrução e a educação passaram a ser vistas como necessárias ao desenvolvimento econômico e cultural do país e um dos signos da "civilidade”.

Mas a necessidade de ampliação da escolarização faz vislumbrar também, e é o que vamos assistir até meados do século XIX, uma carência de material impresso e impressos de caráter pedagógico para atender a essa necessidade. E nesse sentido, de acordo com Pfromm Neto et al (1974, p 159), “Textos manuscritos, elaborados pelos próprios professores, cartas, ofícios e documentos de cartórios faziam as vezes de material de aprendizagem de leitura e escrita”. Ainda dentro desse patamar, com base em pesquisas realizadas nos inventários de Diamantina, Minas Gerais, datados de 1832, Batista e Galvão (2009a) chamam a atenção para o material de leitura destinado à leitura e à instrução por meio da leitura: tabelas, translados,

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compêndios de Doutrina Cristã, ditos de gramática, exemplares da Constituição do Império e compêndios de Aritmética. De acordo com esses autores, foi só a partir da segunda metade do século XIX que começaram a surgir, com certa frequência no país, os livros de leitura direcionados especificamente aos anos iniciais da escolarização. Neste sentido, Pfromm Neto

et al (1974, p. 170) ressaltam que “O baiano Abílio Cesar Borges, primeiramente, e mais

tarde, Felisberto de Carvalho, Hilário Ribeiro, Romão Puiggari, Arnaldo de Oliveira Barreto, Francisco Vianna, João Köpke e outros, produziram nossas primeiras séries graduadas de livros de leitura.” De acordo com esses autores, o Primeiro Livro de Leitura, de Abílio Cesar Borges, o barão de Macaúbas, chama a atenção pelo caráter inovador dos métodos de leitura, escrita, desenho e pela eliminação dos castigos corporais, costumeiramente aplicados nas escolas. Contudo, conforme Galvão e Batista (1998), o referido autor aparece na memória dos alunos, que estudaram seus livros, como uma figura temida, que causava pavor, tomando como base o que revela Graciliano Ramos em Infância, narrativa autobiográfica, em que este confessara sentir dificuldade para entender as lições e que o livro de Borges provocava náuseas e que os momentos de leitura eram momentos de terror.

Pfromm Neto et al (1974) ainda chamam a atenção para o conjunto de textos didáticos que veio a ser publicado pela Livraria Francisco Alves já no final do século XIX: eram os

Livros de Leitura de Felisberto Carvalho, cujos temas giravam em torno de várias áreas de

conhecimento e contavam ainda com exercícios de elocução, de redação, de invenção, de recitação e os exercícios de ditado que versavam sobre a moral, civismo, honra familiar, respeito ao próximo e etc. Ainda com relação a esses livros Batista e Galvão (2009b, p.100), assim os caracteriza:

a finalidade principal da atividade de leitura em sala de aula seria uma adequada expressão oral do texto para a qual favoreciam uma apropriada compreensão do texto e uma correta apreensão do “sentimento” que o autor quis exprimir. Recomenda-se para isso, que a leitura de cada lição ou texto se faça mediante etapas que envolvem a preparação do texto a ser lido; a leitura expressiva pelo professor; a “catequização” dos alunos pelo docente, de modo a fazê-los perceber ideias principais, relações entre elas, o gênero da composição e o “acento” que nela predomina; nova leitura expressiva pelo professor e, enfim a leitura oral pelos alunos.

Através do Brasil, de Olavo Bilac e Manuel Bomfim, data do início do século XIX, é

também uma das obras de leitura que merece aqui ser destacada, considerando que foi muitas vezes reeditada, que a 44ª edição apareceu em l959, o que nos leva a crê que se trata de uma obra exitosa em termos de aceitação por nossas escolas. Ainda sobre esta obra, Batista e

Galvão (2009) ressaltam que ela associava o ensino da leitura aos conteúdos morais, cívicos e ideológicos.

As seletas ou antologias destacam-se também como livros que foram elaborados e publicados com objetivo de servirem de apoio à leitura corrente, embora visassem também o ensino de conteúdos morais e conhecimentos gerais, de acordo com Galvão (2009, p.110). Segundo a autora, por exemplo, em 1880, João Barbalho Uchõa Cavalcanti publica, na província, Leitura selectas para as escolas primárias, que se caracteriza por ser composto de um conjunto de textos de conteúdo moral, religioso, cívico, além de trechos clássicos, e descrições e assuntos históricos, ciências e artes.

Como podemos perceber, apesar da demanda de livros de leitura, parece subjacente a todos esses a ideia de que a leitura se atrela simultaneamente à necessidade de que os livros dados a ler fossem supridos de valores instrutivos a serem apreendidos. Galvão e Batista (1998, p.28-29) reiteram que “inicialmente, formar leitores parece ter significado não propriamente desenvolver as competências e usos da leitura, mas antes ensinar outras coisas

através9 da leitura escolar. É o que sugere a análise dos livros destinados ao ensino da leitura mais utilizados no Brasil no século XIX e nas décadas iniciais do século XX”.10 Neste sentido proposto pelos autores, parece existir aqui uma herança do que foi o ensino da leitura legado dos jesuítas: a leitura destinada a ensinar as noções de civilidade e, de igual modo, destituída do prazer. Assim vamos observar, na década de 30, por exemplo, uma ênfase na prática da leitura em voz alta e, em muitas escolas, o banimento da leitura de revistas, de histórias em quadrinhos e dos livros que fossem julgados prejudiciais à formação do aluno, de acordo com Galvão e Batista (1998).

Conquanto tenhamos nos detido até aqui ao estudo dos livros destinados à leitura, convém destacarmos também os livros didáticos11 dados à aquisição de outras áreas de conhecimento, e que foram utilizados nos anos iniciais da escolarização, para que tenhamos uma visão abrangente de como foi se configurando o livro didático brasileiro e, em especial os livros direcionados ao ensino de língua portuguesa tal como se apresentam hoje.

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Grifo dos autores 10

Vale ressaltar que “Mesmo com a consolidação de uma produção didática nacional, a escrita manuscrita e sua leitura continuaram a fazer parte do ensino da leitura nas escolas brasileiras, no final do século XIX e mesmo ao longo das cinco primeiras décadas do século XX”, conforme Batista e Galvão (1998, p.24). Os referidos autores citam como exemplo desse tipo livro: o livro de Leitura Manuscripta, cujos autores são indicados apenas pelas iniciais BPR, editado pela Francisco Alves, 1911.

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Considerando a conceituação de livro didático a que fora dada por Batista (2009, p.41): “Trata-se desse tipo de livro que faz parte de nosso cotidiano: é adquirido, em geral no início do ano nas livrarias e papelarias quase sempre lotadas: que vai sendo utilizado à medida que avança o ano escolar e que, com alguma sorte, poderá ser reutilizado por outro usuário no ano seguinte. Seria, afinal, aquele livro impresso empregado pela escola, para o desenvolvimento de um processo de ensino ou de formação” (grifo do autor).