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3. O LIVRO DIDÁTICO NA ATUALIDADE: DISCUSSÕES E PROGRAMAS

3.2 O LIVRO DIDÁTICO: SOBRE SUA PRODUÇÃO

Não há textos fora do suporte que o dá a ler (ou a ouvir) e sublinhar o fato de que não existe compreensão de um texto, qualquer que ele seja, que não depende das formas através das quais ele atinge o seu leitor. Daí a distinção necessária entre dois conjuntos de dispositivos; os que destacam estratégias textuais e intenções do autor, e os que resultam de decisões de editores ou de limitações impostas por

oficinas impressoras16. (CHARTIER, 1999b, p.17)

Como já frisamos no início desse capítulo, são vários os fatores que contribuem para a configuração do livro didático. Desse modo, somado aos critérios estabelecidos pelo PNLD achamos pertinente chamar também a atenção para o papel que exercem os editores na produção do LD, por entendermos que o LD está inserido num mercado econômico que, de certa forma, dita as regras pelos quais deve ser produzido, tal como sublinhou Chartier na

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epígrafe acima. Por esse viés, percebemos o LD como mercadoria e como tal cabe a nós observar de que forma se configura ao inserir-se no mercado editorial. É para esse contexto que gostaríamos de nos ater, para melhor compreendê-lo, posto que sua presença, na escola, “se explica, pois, pela própria natureza desta instituição, por sua destinação como instância encarregada de apresentar a cada geração uma versão autorizada do conhecimento e da cultura humana, de garantir a partilha de experiências culturais julgadas indispensáveis” (SOARES, 1996, p.55).

Assim sendo, cumpre-nos atentar para o aspecto material do livro didático, ou seja, cumpre-nos indagar: De que forma o LD se materializa? Quais os agentes responsáveis por sua produção? Esses agentes interferem na produção? Nesse processo de produção, o público para o qual ele se destina é considerado? Quais aspectos os agentes, que são responsáveis por sua produção, privilegiam? Pensarmos no livro didático sob essa perspectiva implica, também, pensar que, ao tomá-lo como objeto de estudo, não podemos descartar um olhar situado sob um ponto de vista sócio-histórico em que essa produção acontece, conforme nos sugere Soares (1996), considerando que, por esse ângulo, ocorrem as influências que podem determinar o tipo de relação existente entre livro-texto-leitor.

Dessa forma, refletir sobre que condições o livros didático é produzido nos ajudará a compreender o seu papel na atual conjuntura educacional. Neste sentido, lançarmos mãos do livro didático, tal como se apresenta hoje, implica ressaltar que ele é fruto de todo um processo, no qual atuam elementos colaboradores para a sua constituição. Neste sentido, Batista (1999, p.554) destaca que os textos e impressos didáticos e a diversidade de suas características materiais decorrem, principalmente, das condições que estão ligadas a fatores econômicos e tecnológicos, das condições que se referem à ordem educacional e pedagógica e as de ordem social e política. No que tange ao aspecto econômico refere o autor:

os impressos didáticos são uma mercadoria e que, consequentemente a sua produção, circulação e utilização são regidas por uma infra-estrutura organizada em torno das possibilidades materiais, técnicas, institucionais e comerciais de uma determinada sociedade, num determinado momento de sua história (BATISTA, 1999, p.554).

Diante disso, compreender o livro didático como uma mercadoria significa dizer que ele se submete às regras do mercado consumidor, ou seja, ao que é estabelecido pelos agentes inseridos nesse processo. De acordo com Munakata (1997 p. 13-14): “a empresa editorial, o editor, o autor, o “redator”, o crítico, a mídia. Eles estabelecem entre si relações precisas, que

constituem as condições e o circuito de produção, distribuição e divulgação de uma mercadoria determinada, o livro didático (e o paradidático)”.

Como mercadoria, o livro didático assume determinada caracterização conforme o público para o qual se destina e isto é levado em consideração pelos agentes que o produzem. Nesta perspectiva, vale lembrar o que nos diz Chartier (2001b), com relação aos livros da Biblioteca Azul, que circularam na França, na cidade de Troyes, no século XVII, os quais sofriam modificações/adaptações, que iam desde a supressão de partes ao encurtamento de capítulos e até a eliminação de algum deles, com finalidade de se ajustarem aos leitores que os editores desejavam atrair: “A adaptação era inspirada pela imagem que os impressores faziam da competência e das expectativas culturais dos leitores que não tinham familiaridade com os livros (CHARTIER, 2001b, p.224)”. Ainda segundo esse autor, essas adaptações atendiam a duas finalidades: o controle dos textos, submetendo-os às exigências da religião e da moral da Contra-Reforma ao mesmo tempo em que tinha a intenção de tornar esses textos mais acessíveis aos leitores inexperientes. Ora, isso fazia emergir uma forma de leitura efetuada pelas elites que se distinguia da leitura efetuada por esses leitores “menos experientes”, que terminavam por se acomodar às lacunas e incoerências presentes nos textos adaptados, conforme reitera o autor já referido. Em outras palavras, no contexto francês, tinha-se então uma produção destinada às elites cultas, que se caracterizavam pela familiaridade com os livros e pela experiência na interpretação e no domínio de textos integrais (CHARTIER, 2001a) e outra aos demais leitores considerados destituídos da competência leitora de que era presumidamente detentora as elites cultas. Sendo assim, ainda no que se refere aos livros da Biblioteca Azul, “... as próprias estruturas do livro são dirigidas pelo modo de leitura que os editores pensam ser o da clientela almejada. (...) uma leitura que parece se contentar com uma coerência mínima, uma maneira de ler que não é a das elites letradas... (CHARTIER, 1999b, p.20)”.

Semelhante ao contexto francês, vamos encontrar aqui no Brasil as publicações do Almanaque Garnier, surgido em 1903, cuja configuração justificava-se em função do público para o qual se dirigia: “os conteúdos dispostos nas seções de início e fim do Garnier induzem o leitor adulto a uma leitura repetitiva, dada sua instrumentalidade no dia-a-dia, e a uma manipulação mais frequente do almanaque, em função da necessidade de uma consulta mais constante (DUTRA, 1999a, p.20)”.

Essa produção, em que se toma como base a visão que se tem do público para o qual a obra se destina, também encontra ressonâncias no mercado editorial brasileiro no que se

refere aos livros didáticos. Neste sentido, pesquisa realizada por Munakata (1997), em que descreve e analisa as práticas desenvolvidas pelos agentes envolvidos na produção de livros didáticos, embora antes da criação do PNLD, nos revela, com base em alguns depoimentos, um exemplo dessa prática.

Nesse mesmo âmbito, pesquisa realizada por Gatti Júnior (2004), tomando como objeto de estudo os livros de didáticos de História, produzidos entre os anos de 1970 e 1990, revelam que os livros destinados aos alunos da rede particular eram mais densos e críticos e os que se destinavam aos alunos da escola pública eram mais simples e voltados para a memorização. As editoras, segundo o referido autor (2004, p.229), sabiam

que não adiantava direcionar suas coleções mais elaboradas e densas para as escolas de massa. Para essas, o apropriado eram as coleções mais didatizadas, ou seja, que organizassem melhor as aulas para os professores, com linguagem facilitada e que tivessem respostas aos exercícios e textos mais objetivos. As escolas de elite, essas sim, elas eram passives de adquirir livros mais densos e completos.

Levando em conta o recorte que fizemos da história das práticas da leitura, percebemos que esta foi marcada, outrora, por aqueles que determinavam o que devia ser lido e como devia ser lido, em função de interesses diversos e, nesta perspectiva, parece que ocorre o mesmo nos dias atuais, em que se multiplicaram a variedade de suportes e de textos dados a ler e o acesso ao livro passou a atingir também as classes menos favorecidas. Ou seja, percebemos que se diversificaram, igualmente, as formas de conduzir o leitor a uma determinada prática de leitura. Em outras palavras, conduzir o leitor a uma leitura permitida, condicionada pelos dispositivos utilizados por todos os envolvidos no processo de produção de livros, em que subjazem interesses diversos e que estão presentes também na atual conjuntura educacional. Isto nos faz deduzir que “... não existe produção ou prática cultural que não se fundamente em materiais impostos pela tradição, pela autoridade ou pelo mercado, e que não esteja sujeita à supervisão e à censura por partes daqueles que detêm o poder sobre as palavras e os gestos (CHARTIER, 2001b, p.236)”. Nesta perspectiva, convém refletirmos sobre o Programa Nacional do Livro Didático, que institui critérios pelos quais os LDs são avaliados e que responde pela sua compra e distribuição, por parte do governo federal, para as escolas públicas brasileiras.