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2. A HISTÓRIA DA LEITURA: ALGUNS RECORTES

2.2 PRÁTICAS DE LEITURA: O CONTEXTO BRASILEIRO

Como já assinalamos anteriormente, ao analisarem a história das práticas de leitura, os estudiosos registraram a escassez de fontes diretas e objetivas sobre as quais pudessem se ater para reconstituí-la de modo efetivo. No entanto, apesar disso, as formas de distribuição e divulgação dos impressos aos mercadores de livros, aos livreiros, e a recorrência aos inventários pós-morte, aos gabinetes de leitura, às bibliotecas e aos seus frequentadores se constituem, igualmente, em elementos que podem contribuir também para que construção de uma visão das práticas de leitura em um determinado tempo da história. É, pois, sobre esses elementos que se debruçaram alguns estudiosos da historia da leitura. É a alguns desses estudos que iremos nos reportar para que tenhamos uma ideia das práticas da leitura propagadas no contexto brasileiro.

Nessa perspectiva, ao nos remetermos, inicialmente para o período colonial, mais precisamente ao início dos anos oitocentos, vamos perceber que os livros literários, que circulavam nesse período, não eram bem aceitos nem pelos religiosos nem pelo governo, posto que vissem neles uma ameaça aos bons costumes, à fé e à ordem posta pelo estado. O receio de que a ordem e os costumes estabelecidos fossem subvertidos em função da influência das leituras de determinadas obras contribuiu para a criação dos órgãos de censura responsáveis pela proibição de obras consideradas uma ameaça aos poderes instituídos, dos quais se destacam a Inquisição, o Ordinário e a Mesa do Desembargo do Paço6. Assim sendo, vamos perceber, nesse período, que o acesso a determinadas obras não dependia apenas da disposição destas nas livrarias, mas estava sujeita à intervenção do poder real (NEVES, 1999), embora a vinda da corte portuguesa para o Brasil tenha contribuído para a criação da Imprensa Régia, mediante o decreto de 13 de maio de 1808, o que, simultaneamente fez enriquecer a vida cultural na colônia, tendo em vista que ficou sob a responsabilidade desse órgão a publicação de jornais e de livros de cunho científico e literário e fez proliferar, paralelamente o número de livrarias e de estabelecimentos que, além de postarem a venda artigos variados, vendiam também publicações do dia.

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Segundo Silva (1999, p.163) “A questão da censura, nos níveis da produção, da comercialização e da leitura, tem ocupado muitos pesquisadores, até porque no mundo luso-brasileiro, as instâncias censórias foram múltiplas: Inquisição, Real Censória, Real Mesa da Comissão Geral para o Exame e Cesura dos Livros, Desembargo do Paço e Intendência Geral da Polícia”.

Ainda, conforme a autora, essa atribuição exigida pela Mesa do Desembargo do Paço trouxe implicações as obras estrangeiras que chegavam ao Brasil, tendo em vista que a sua divulgação só podia se realizar após a apresentação dos anúncios à polícia, embora, fosse concedida licença aos professores de filosofia e aos homens já formados o acesso a essas obras, por entenderem que estes não podiam combater aquilo que desconheciam.

O que podemos depreender da censura, então, é a ideia de que apenas aos homens dotados de certa formação era dado o direito ao contato com o escrito, tido como sagrado e por isso privilégio de poucos, opinião legitimada pela Igreja Católica, a qual tendo em seu poder os textos sagrados, outorgava-lhes um sentido que era imposto aos fiéis, sem oportunizá-los o direito de compreensão, mas apenas o da aceitação como se eles detivessem o saber absoluto, cabendo a esses fiéis apenas a obediência. Nesse mesmo prisma, Paiva (1999, p.415) destaca:

Ora, é sabido que inúmeros estudiosos afirmavam, ao longo da história, que a igreja Católica sempre considerou a leitura uma prática perigosa e que um dos desdobramentos desse pressuposto foi sua constante advertência aos Católicos, quanto às poucas chances de salvação de suas almas, caso não se acautelassem diante das armadilhas do texto escrito.

O Estado também igualmente assim procedia ao criar os órgãos censitórios e contava com o aparato da Igreja que os legitimava, e para isso contribuía, ao achar perigoso tudo que contrariasse os ditames do que eram considerados bons costumes e fossem de encontro à fé católica. Para tanto, era concedida a licença aos religiosos para a leitura das obras profanas. Afinal, como combater o que se desconhece? O que dizer, então? “A leitura era vista como perigosa, porque poderia se transformar em uma fonte de espírito crítico, de heresia, de subvenção (NEVES, 1999, p.393)”. Sendo assim, subtende-se que a leitura devia ser efetuada tendo em mente uma determinada finalidade, que era considerada a mais adequada e que fora disseminada pelos poderes religiosos. Em conformidade com essa perspectiva, a análise dos tratados setecentistas, que foram regularmente enviados ao Rio de Janeiro no século XVIII e início do XIX, feita por Abreu (1999), aponta para o fato de que uma das questões abordadas por eles fazia referência às finalidades da leitura. Desse modo, o tratado de Moyen de lire

avec fruit, por exemplo, que foi sucessivamente editado até o final do século XVIII, deixa

claro que a leitura tem como função formar um estilo, adquirir conhecimento. A leitura discutida nos tratados não vai ser aquela que proporciona divertimento, mas a que é formadora. A leitura como entretenimento só vai ser objeto dos tratadistas quando o objetivo for para alertar sobre os perigos que correm aqueles que a ela se dedicam.

Ainda, segundo a referida autora, “o círculo restrito ao qual se destinam os tratados sobre a boa maneira de ler (as pessoas de espírito e aqueles que aspiram esse grupo) faz com que a leitura se associe fortemente à produção de textos (...) (ABREU, 1999, p.216)”. Por este prisma, vamos encontrar nos tratados um verdadeiro manual, se é que assim podemos chamar, de metodologia da leitura, posto que haja neles tanto orientações para leitura como para a produção de texto. Neste caso, a escrita aparece como auxiliar da leitura e, em sendo assim, sugere-se que se tomem notas enquanto estiver efetuando a leitura. Há autores que chegam a pormenorizar os passos a serem seguidos nas anotações7, para a realização de uma leitura considerada adequada: inicialmente, colocar um título ao trecho lido, de modo que indicasse o tema abordado, embora para isso o referido trecho tivesse sido lido, relido e tomado como fonte de meditação; em seguida deveria se proceder com o agrupamento dos textos, cujos temas fossem os mesmos e só, então, partia-se para a última etapa da leitura: a memorização dessas anotações conforme o agrupamento efetuado. Abreu (1999, p.219) ressalta que “a leitura (aí incluídas meditação, anotação e memorização) é fonte de modelos a serem imitados no momento da escrita”. Ora, dessa forma, eram os clássicos da antiguidade greco-romana tomados como modelos, mas com a ressalva de que para lê-los se fazia necessário ler anteriormente esses tratados, tendo em vista que eles davam as instruções sobre como essas obras deveriam ser lidas. Sendo assim, a leitura deveria “... ser mediada por um conjunto de textos que regula as possibilidades de leitura, que não são óbvias para as pessoas comuns (ABREU, 1999, p.224)”.