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ENTRE A RETÓRICA E A LITERATURA: PANORAMA CLÁSSICO DA NOÇÃO DE GÊNERO TEXTUAL

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

3 CONCEPÇÕES DE GÊNERO TEXTUAL: DOS ESTUDOS CLÁSSICOS ÀS PERSPECTIVAS ATUAIS

3.1 ENTRE A RETÓRICA E A LITERATURA: PANORAMA CLÁSSICO DA NOÇÃO DE GÊNERO TEXTUAL

Na contemporaneidade, o conceito de gênero é abordado sob a ótica de variadas perspectivas de estudos da linguagem. No entanto, esse conceito emergiu há mais de vinte e cinco séculos, se assumirmos Platão como observador sistemático desse objeto (MARCUSCHI, 2008, p. 147), e adquiriu substancial significação na História da Arte e da Literatura, sobretudo considerando um período em que o gênero se restringia ao campo das manifestações artísticas.

Como certificam Souza (2008) e Paviani et al (2008), inúmeros estudiosos literários consideram que a teoria dos gêneros tem origem em Platão. Entretanto, conferem aos trabalhos de Aristóteles a introdução dessa engenharia teórica, já que ele estabeleceu distinções referentes à arte – sobretudo à arte poética – e elaborou um conceito de gênero literário harmonicamente relacionado à filosofia, a partir da observação que constituiu o seu caráter empírico-racionalista.

Platão é o primeiro que falou em gênero, mas foi Aristóteles quem teorizou sobre ele. Aristóteles, nos Tópicos, portanto, no âmbito da lógica, da retórica e da gramática, isto é, sob o ponto de vista da linguagem, indaga o que se pode dizer que é a definição, o específico de qualquer coisa, o gênero e o acidente (Tópicos, I, 5, 102a) e sobre a expressão e os gêneros de discursos (Retórica, III). (PAVIANI et al., 2008, p. 174)

Aristóteles sistematizou uma teoria sobre os gêneros e sobre a natureza do discurso, analisando e definindo os quatro predicados considerados elementos constitutivos das proposições: a definição, o próprio de qualquer coisa, o gênero e o acidente. Para ele, a definição tratava do discurso ou do enunciado que aponta para o significado do sujeito, apresentando-lhe outras características. O próprio de qualquer “coisa” não traduz a essência do sujeito; no entanto, exprime o que pertence a uma “coisa” específica e se predica no lugar dessa “coisa”. Após essas considerações, Aristóteles (apud PAVIANI et al., 2008, p.175) defende que

[...] o gênero é o que se predica por essência de múltiplos sujeitos que diferem em espécie e cumpre haver como predicados essenciais todos os termos, de uma forma tal, que se adequem com propriedade à questão: que é o sujeito que está na nossa frente? Por exemplo, no caso do homem, se perguntamos quem é, a resposta com propriedade é que é um animal. A pergunta: está algo no mesmo gênero, pois uma pergunta como essa situa-se no mesmo âmbito de pesquisa do gênero. Uma vez demonstrado, na controvérsia, que animal é o gênero de homem, e também de boi, teremos demonstrado que ambos pertencem ao mesmo gênero, mas se mostramos que animal é o gênero de um, e não de outro, teremos demonstrado que eles não são do mesmo gênero.

O gênero, sob a ótica aristotélica, constitui-se em um grupo de seres ou objetos que possuem propriedades comuns, conforme significados mais específicos. Esses grupos podem ser divididos em grupos menores – espécies. Desse modo, “[...] a universalidade do gênero, enquanto conceito ou unidade lógica, é determinada como espécie ao se acrescentar um novo atributo chamado diferença específica” (PAVIANI et al., 2008, p.175). Essas categorias – gênero, espécie e diferença específica – foram utilizadas pela filosofia da tradição no sentido de falar ou alcançar a essência das coisas.

A retórica foi se desenvolvendo em Atenas sob uma democracia consolidada que concedia aos cidadãos o direito a participar diretamente de assembleias populares, com funções legislativas, executivas e judiciárias. Conforme Souza (2008, p. 29), “todos os assuntos eram submetidos ao voto popular – a organização do estado, a fixação de impostos, a declaração de guerra e até mesmo a morte de um cidadão”. Ao cidadão competia, em diversas situações, apresentar sua opinião frente a uma plateia, circunstância em que a habilidade em raciocinar, falar e argumentar corretamente eram sempre necessárias. Para isso, professores especialistas na arte do bem falar – chamados de sofistas – protagonizavam uma educação voltada à retórica; a esse respeito, diz Platão (1989, p. 62), que se trata da “arte da persuasão exercida nos tribunais e nas outras assembleias a propósito daquelas coisas que são justas e injustas”.

É necessário ressaltar que o termo sofista recebeu críticas contundentes de Platão, que acusou os professores detentores desse título de empregarem a retórica para “ocultar a verdade, oferecer armas desleais e práticas à oposição inferior no plano lógico”, segundo Barilli (1985, p. 15). Para Platão, os sofistas, apesar de elaborarem muitos tratados sobre retórica, ignoravam o universalismo e o absolutismo da verdade, e isso comprometia a ética

da retórica que, como técnica instrumental, tanto poderia ser utilizada para bons quanto para maus propósitos.

Diante desse cenário, Aristóteles dedicou-se a fundamentar e a sistematizar a retórica. Como postulado em sua obra Arte Retórica, conceituou-a e dividiu-a em três gêneros – judiciário, deliberativo e epidíctico –, tendo como base os auditórios para os quais o orador se dirige. O gênero judiciário se realizava, prioritariamente, no tribunal, enquanto o gênero deliberativo ou político era realizado em praça pública e o gênero epidíctico ou demonstrativo era próprio a reuniões, para elogios ou censuras a uma pessoa. Ou seja, cada gênero está relacionado a uma expressão diferente. O discurso escrito e a oralidade são modalidades diferentes; a retórica política e a jurídica também. Os gêneros deliberativo e judiciário se distinguem por seu maior ou menor caráter declaratório (enquanto no deliberativo aconselha- se ou desaconselha-se, no judiciário acusa-se ou defende-se); o gênero demonstrativo, característico da escrita, estava mais apropriado à leitura e ao rigor dos que escrevem tão rápido quanto falam (MARCUSCHI, 2008).

A construção teórica de Aristóteles associa tempo, ato e valores aos gêneros retóricos, como observamos no quadro a seguir.

Quadro 7 – Classificação dos gêneros conforme Aristóteles

GÊNERO AUDITÓRIO TEMPO ATO VALORES ARGUMENTO

(tipo) Judiciário

(genus indiciale)

Juízes Passado Acusar Defender Justo Injusto Entinema (dedutivo) Deliberativo (genus deliberativum)

Assembleia Futuro Aconselhar Desaconselhar Útil Nocivo Exemplo (indutivo) Epidíctico (genus demonstrativum)

Espectador Presente Louvar Censurar

Nobre Vil

Amplificação

Fonte: Souza (2008)

Enquanto o gênero deliberativo tem como ouvinte do discurso a assembleia, que olha o futuro, o ouvinte no gênero judiciário opera como juiz, julgando sobre fatos passados, e o gênero demonstrativo, cuja função é louvar ou censurar, tem como ouvinte o espectador e se realiza sob a ótica do presente (REBOUL, 1998). Os argumentos se realizam sob os modos de indução (ou uso de exemplos), de dedução – também chamados de “entinema” – e amplificação (ou desenvolvimento de um tema). Esclarece Souza (2008, p. 30):

O entinema ou silogismo retórico é aquele tipo de silogismo em que as premissas não se referem àquilo que é certo, mas àquilo que é provável, e tem importância fundamental para a retórica já que, na maioria dos casos em que estão em jogo assuntos humanos, nem sempre se pode basear argumentação apenas naquilo que é verdadeiro, mas apenas no que é verossímil.

Conforme Paviani et al. (2008, p. 176),

Aristóteles, ao classificar esses três gêneros de discursos retóricos, já apontava uma estrutura formal para os proferimentos linguísticos, ou ainda como Martin Heidegger se refere, em Ser e tempo, ao ato de perguntar, supondo quem fala ou pergunta, aquilo sobre o que se fala ou pergunta e aquele a quem se fala ou pergunta (PAVIANI et al., 2008, p.176).

Inaugura-se, assim, um período extenso – e com nível substancial de complexidade – de investigações sobre discurso, ato de fala, escrita, ainda hoje em pauta com perspectiva bem diferente da aristotélica. Conforme Marcuschi (2008, p.148), Aristóteles estabeleceu a distinção entre a epopeia, a tragédia, a comédia, a aulética, o ditirambo e a citarística, sendo a análise das três últimas não conservadas.

O estudo dos gêneros no contexto da produção literária, sobre o qual trata o livro III da República, de Platão, refere-se ao gênero como uma divisão tripartite da literatura.

Em poesia e em prosa, há uma espécie que é toda de imitação, como tu dizes que é a tragédia; outra de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode encontrar-se de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopeia e de muitos outros gêneros (PLATÃO apud SOUZA, 2008, p. 32).

Face ao exposto, Platão fundamenta e classifica os gêneros, estabelecendo a divisão clássica da literatura: épica, lírica e dramática. Observamos, nessas proposições, a genealogia da teoria dos gêneros literários. Apesar disso, como já fizemos referência no início dessa seção, vários estudiosos advogam que o mérito de ser o introdutor dessa teoria pertence a Aristóteles, que dedicou atenção às distinções referentes à arte, sobretudo à arte poética, e formulou um conceito de gênero literário em conformidade com a filosofia, à luz da literatura

grega. Em Arte poética, escrita entre 335 e 323 a.C., caracteriza detalhadamente os gêneros narrativo e dramático. Para ele,

[...] o primeiro caracterizado pela atuação do próprio narrador, identificado pelo discurso em primeira pessoa, e o segundo, pela atuação efetiva dos personagens. Há de se considerar nesse preâmbulo o foco dos gêneros eminentemente voltados para a arte poética, sobre a qual Aristóteles se debruça, concebendo a poesia como imitação da realidade. (SOUZA, 2008, p. 32)

De acordo com Silva (1993), a mimese aristotélica configura-se como imitação da vida interior dos homens, suas paixões, seu caráter, seu comportamento; e, mesmo sendo a imitação o elemento comum aos textos poéticos, ela também é o que distingue cada um, já que se realiza de diferentes meios, objetos e modos empregados.

Os meios, segundo Souza (2008), constituem-se na poesia ditirâmbica e no nomos – respectivamente, poesia lírica, na forma de canto exagerado ao deus grego Dionísio, e poema grego que se cantava em honra de Apolo (Dicionário Online de Português, 2013) –, em que o poeta emprega os seguintes modos: ritmo, canto e verso. Na comédia e na tragédia, ocorre apenas o emprego parcial desses elementos; o canto, para ilustrar, é empregado somente nas partes líricas. Os objetos são classificados, numa escala de valor, em superiores, inferiores ou semelhantes à média humana. Referem-se, pois, às ações humanas, particularmente em relação ao comportamento dos homens, em termos morais. Os modos pelos quais se instauram a imitação podem ser mais diversificados do que os meios e os objetos, já que o poeta pode fazer uso de distintos modos de mimese para os mesmos objetos como também empregar meios idênticos. Isso pode ser verificado nos gêneros narrativos e dramático. No gênero dramático, os imitadores são representados pelo poeta como operantes e atuantes.

Platão e a Aristóteles, recordam Paviani et al. (2008), suscitaram conhecimentos sobre os gêneros artísticos e literários e proporcionaram as categorizações já relacionadas neste trabalho que se encontram, por exemplo, nas locadoras de filme como romance, aventura, drama, ficção científica etc. Vale ressaltar, no entanto, que essa classificação não se realiza de modo pleno com exclusividade, pois textos e filmes podem ser, simultaneamente, de aventura e romance, trágico e cômico etc. A produção atual de arte não se insere mais nas qualificações tradicionais. Isso sinaliza que o conceito aristotélico de gênero passou por transformação a

ponto de já não nos reportarmos aos gêneros como ele estabeleceu, ao discorrer sobre poesia e pintura, por exemplo.

Investigações sobre a linguagem se tornaram interesse de inúmeras áreas da ciência, da tecnologia e da vida social, favorecendo uma nova concepção de gênero como também de outras concepções. Desse modo, foram inauguradas novas tendências de estudos dos gêneros, parte delas numa perspectiva multidisciplinar e sociorretórica.

Com a ampliação dos estudos dos gêneros, sobretudo no âmbito das ciências humanas, tem sido possível examinar as ações humanas, a organização social, as relações institucionais e os processos de aprendizagem (PAVIANI et al., 2008). A análise do texto e do discurso e uma descrição da língua e visão da sociedade constituem-se na tríade sob a qual se debruçam pesquisadores dos gêneros, permitindo, inclusive, adentrar na seara de aspectos socioculturais do uso da língua, nas mais variadas formas (MARCUSCHI, 2008). Sobre a complexidade e diversidade desses estudos, trataremos na próximas seções.