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2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

3 CONCEPÇÕES DE GÊNERO TEXTUAL: DOS ESTUDOS CLÁSSICOS ÀS PERSPECTIVAS ATUAIS

3.2 PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS DE ESTUDO DOS GÊNEROS

3.2.3 Perspectiva interacionista semiodiscursiva

Alguns estudiosos inserem as reflexões teóricas de Charaudeau (2004; 2006) e de Maingueneau (2001; 2004) no grupo da perspectiva sociodiscursiva. Embora haja aspectos afins aos considerados na seção anterior, quando discutimos sobre as propostas de Bronckart, é importante situarmos esses autores numa abordagem à parte, denominada pelo primeiro de semiodiscursiva.

[...] uma análise dos gêneros deve se apoiar em uma teoria do fato linguageiro, dito de outra maneira, em uma teoria do discurso na qual possamos conhecer os princípios gerais sobre os quais ela se funda e os mecanismos que os colocam em funcionamento. Toda teoria do discurso implica, assim que sejam determinados diferentes níveis de organização do fato linguístico. Já expus, aqui e ali, os aspectos de uma teoria psico-cócio- comunicativa (que chamo de ‘Semiodiscursiva”) na qual me inscrevo [...]. (CHARAUDEAU, 2004, p. 21)

A perspectiva semiodiscursiva está vinculada à Análise do Discurso (AD) que, de acordo com Furnaletto (2005, p.261), tem como objetivo apreender o funcionamento dos discursos e as modalidades de exercício da palavra num universo determinado, considerando que

o discurso aparece, para Maingueneau (1991), como um objeto de investigação associado às condições de produção dos enunciados, e estas condições estão vinculadas a “[...] um dispositivo local, uma instituição que regula uma atividade suscetível de mobilizar forças através de sua enunciação” (p. 187). Os textos, por sua vez, aparecem como enunciados obedecendo a certas condições de organização, uma vez que são formulados em contexto institucional que estabelece balizas para a sua enunciação (são

vinculados, pois, a gêneros do discurso); eles refletem, de algum modo, as características históricas da sociedade onde circulam: valores, convicções, crenças, conflitos.

Em Gênese dos Discursos, Maingueneau (2005, p. 16) define discursos “como integralmente linguísticos e integralmente históricos”, objetos resultantes de duas restrições, a saber: a do dizível na língua e a do dizível num dado tempo-espaço histórico. No entanto, segundo ele, não é objeto da AD a enumeração empírica de tipos de discurso nem a elaboração de tipologias e nem o estudo dos gêneros de discurso se constitui em um fim para a AD.

Como recorda Furlanetto (2005, p. 261),

Assim, por exemplo, não interessaria em si mesmo um sermão ou um panfleto, mas a possibilidade que eles abrem de definir, em certo espaço, uma identidade enunciativa que pode ser historicamente circunscrita. Este espaço, definido em seguida como arquivo, pode associar diversos gêneros.

Desse modo, o conceito de arquivo4 torna-se essencial no estudo da abordagem semiodiscursiva dos gêneros do discurso, conforme a AD, que procura relacionar discursivização, ideologia e subjetividade na dimensão das interações e perceber como discursos estabelecem confluência e se entrecruzam nos diversos espaços de interação socioideológicos mediados por gêneros.

Para Maingueneau (2005), é central na AD o entendimento de que o interdiscurso precede e constitui o discurso. Ao considerar o primado do interdiscurso, ele afirma que um discurso nasce nas brechas da rede interdiscursiva, isto é, um discurso introduz outro como um simulacro – tradução depreciativa de um valor de um discurso oponente –, reproduzindo enunciados dos outros discursos em suas próprias categorias, gerando a relação polêmica. Apesar de dedicar estudos às relações polêmicas, o autor não reduz o interdiscurso a elas, como esclarece o conceito de campo discursivo:

[...] é um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do

4A noção de “arquivo” é oriunda da L’Archéologie du savoir [A arqueologia do saber], de Foucault (2004), e

aplicada à AD. Para um estudo mais específico sobre essa noção, indicamos a leitura dessa obra de Foucault (2004) e também os textos de Pêcheux (1995), Charaudeau; Maingueneau (2004) e Maingueneau (2006, 2008).

universo discursivo. ‘Concorrência’ deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc. (MAINGUENEAU, 2005, p. 36)

Nesse sentido, outros dois conceitos são igualmente importantes para especificar a noção de interdiscurso: o de ‘universo discursivo’ e o de ‘espaço discursivo’. O primeiro compreende o conjunto das formações discursivas de todos os tipos de discurso que estabelecem relação de interação em dada conjuntura – é bastante amplo e, por isso, não poderá ser concebido na sua globalidade, só devendo ser aproveitado para definir campos discursivos. O último diz respeito à delimitação de subconjuntos do campo discursivo, determinando relações fundamentais entre, pelo menos, duas formações discursivas. (MAINGUENEAU, 1989)

Para a AD, são relevantes os discursos autorizados, relacionados a uma fonte de legitimação, que Maingueneau (1993, p. 56) designa de ‘comunidade discursiva’, “grupo ou organização de grupos em que são produzidos textos”. Essa legitimação se dará porque um conjunto de posicionamento enunciativos – o arquivo – retrata a relação entre funcionamento textual e identidade de um grupo. Em outras palavras, como indica Furlanetto (2002, p. 85), “toda prática discursiva se dá numa relação de arquivo a comunidade discursiva, uma instância legitimando a outra. A comunidade discursiva é o grupo que gera os textos do arquivo”.

O arquivo é, portanto, parte integrante do mundo social e não corresponde a um único gênero. Poderá associar diversos gêneros, considerados por Maingueneau (1991, p. 20) como suportes de formulação textual (panfletos e manifestos, por exemplo). Através desses suportes, é possível assumir uma posição, seu papel dentro da comunidade discursiva. A esse respeito, ele indica que há discursos mais ou menos ritualizados e que ritualização implica repetição, isto é, acompanhar o “traço invisível da palavra do Outro”. Portanto, todo dizer representa uma filiação-conservação e uma memorização-reemprego. Isso define, em parte, o arquivo, somando-se a legitimação do exercício da palavra para um grupo dado (FURLANETTO, 2005, p. 265).

A produção da linguagem em gêneros revela um sujeito genérico, identificado em função de determinado número de lugares enunciativos que caracterizam os gêneros do discurso. O reconhecimento do gênero possibilita ao sujeito genérico orientar-se para comportamentos sociais. Esse sujeito que ´poderá ser um professor, um aluno, um sindicalista

etc. vincula-se a um coenunciador e ambos devem ocupar lugares enunciativos autorizados para que se concretize o intercâmbio discursivo. Desse modo, “toda prática discursiva se dá numa relação entre arquivo e comunidade discursiva, uma instância legitimando a outra” (FURLANETTO, 2005, p. 265), sendo os textos do arquivo uma produção da comunidade discursiva.

Maingueneau (1991) apresenta condições para o uso de gêneros discursivos: circunstanciais e estatutárias. A primeira condição compreende as seguintes questões: texto oral ou escrito? Que suporte (jornal etc.)? Circuitos de difusão? A última se refere a: que estatuto deverá assumir o enunciador do gênero? E seu coenunciador? Que modalidades enunciativas? Que forma (sintática, fonética etc.)?

Dentre as hipóteses que ele atesta como fundamentais sobre o funcionamento do discurso, encontra-se o termo ‘competência discursiva”, que se distingue das descrições elaboradas por Chomsky em relação a esse conceito. Maingueneau (2005, p. 51) entende que a noção de competência, para um analista do discurso, parece incompatível numa perspectiva discursiva, historicamente construída. Ele entende que esse conceito integra o histórico à noção de competência, ao mesmo tempo em que aponta a possibilidade de ampliar o corpus indo daquilo que foi “efetivamente dito” para aquilo que “pode ser dito”, que tem como ponto interior de partida a semântica de uma formação discursiva. E pluraliza: ao usuário nas práticas linguajeiras são necessárias competências (MAINGUENEAU, 2001).

A competência comunicativa implica o domínio dos gêneros, em tese. Não necessariamente de todos os gêneros – no que diz respeito ao comportamento diante das possibilidades genéricas em diversas esferas sociais. A competência genérica, estreitamente imbricada à competência enciclopédica – conhecimentos gerais que cada usuário linguístico traz consigo como resultado de suas leituras e de experiências acumuladas de diferentes ordens, isto é, conhecimento sobre o mundo –, é essencial na produção e na interpretação do discurso. Desse conhecimento depende a inserção de cada usuário na rede de textos de uma sociedade.

Em Análise de textos de comunicação, Maingueneau (2001, p. 61) apresenta os discursos (discurso pedagógico, discurso político, discurso religioso etc.) como ‘tipologias comunicacionais’. Entendendo os discursos como resultado do emprego dos enunciados e os gêneros de discurso como tipologias de situações comunicativas. Para ele, os gêneros não são exclusivos, de modo geral, a um único discurso. Podem ser encontrados em diversos tipos de

discurso. Um “talk show” se insere no discurso televisivo que, por sua vez, pertence ao discurso midiático, em que se encontram também o discurso radiofônico e o da imprensa escrita.

O autor também aponta outros critérios para se definir tipologias de discurso: o lugar institucional (escola, igreja, empresa etc.); o estatuto dos parceiros (professores/alunos, homens/mulheres, crianças/adultos); o posicionamento ideológico do qual se derivam os discursos socialista, fundamentalista terrorista etc. (FURLANETTO, 2005, p. 267)

Maingueneau (2005, p. 13) também procura inserir na AD multissemioses. No sexto capítulo do livro Gênese dos discursos, vendo o discurso como prática, ele propõe a análise para além do que as palavras podem revelar, a saber: a produção discursiva não-verbal – das artes plásticas, do vestuário, da dança, da música, dos objetos etc. O foco é, portanto, integrar as diversas semioses na AD. O autor diz que um dos maiores obstáculos a essa integração é a compartimentalização das disciplinas, que provoca, no dizer dele, um efeito “esterilizante”. Daí, tem-se a perspectiva semiodiscursiva.

Nesta seção, discorremos sobre algumas especificidades da AD, mas é preciso reforçarmos que não há apenas uma Análise do Discurso.

Classicamente considera-se que, se uma delas mantém uma relação privilegiada com a História, com os textos de arquivo, que emanam de instâncias institucionais, enquanto uma outra privilegia a relação com a Sociologia, interessando-se por enunciados com estruturas mais flexíveis, como uma conversa informal, por exemplo, têm-se duas Análises do Discurso diferentes: a Análise do Discurso de origem francesa, que privilegia o contato com a História, e a Análise do Discurso anglo-saxã, área bastante produtiva no Brasil, que privilegia o contato com a Sociologia. (MUSSALIM, 2006, p. 113)

Contudo, como assegura Possenti (1996), a diferença entre essas vertentes não é tão rígida assim. Na AD anglo-saxã assume a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos marcos que a sustenta. Por outro lado, a AD de origem francesa não entende essa intenção como determinante. Para essa última, os sujeitos são condicionados por uma determinada ideologia que preestabelece o que pode ou não dizer em certas conjunturas histórico-sociais. Essa é uma das diferenças. Como acrescenta Possenti (1996, p. 199), “não é porque os eventos de discurso do tipo ‘linguagem ordinária’ foram objeto de descrições

‘conversacionais’ ou ’intencionais’ que eles não são discursos, que eles não possam ser tomados em conta numa AD”.