• Nenhum resultado encontrado

2 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA

3 CONCEPÇÕES DE GÊNERO TEXTUAL: DOS ESTUDOS CLÁSSICOS ÀS PERSPECTIVAS ATUAIS

3.2 PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS DE ESTUDO DOS GÊNEROS

3.2.4 Perspectiva sociocognitivista

Estudos sobre a relação entre fenômenos linguísticos e ações sociais – e, por extensão, conhecimento e linguagem – não são recentes, como vimos nas primeiras seções deste capítulo, nem mesmo é privilégio da linguística. Como registram Koch e Cunha-Lima (2004, p. 251):

Desde a Antiguidade, essa preocupação tem sido central na filosofia. Ela tem recebido as mais variadas abordagens e respostas, e preocupado autores das mais variadas origens teóricas e campos de atuação: filósofos, antropólogos, sociólogos, psicólogos, neurocientistas em geral, cientistas da informação ou da computação e linguistas, obviamente.

Para o caminho que passamos a percorrer agora – perspectiva sociocognitivista –, tanto os recursos sociais quanto os de natureza cognitiva são essenciais para entendermos a linguagem; não é possível, portanto, o tratamento em separado desses dois aspectos, sob pela de não compreendermos como os sujeitos sociais realizam atividades juntos.

Em alguns lugares, o uso da língua tem sido estudado como se fosse um processo inteiramente individual, como se residisse inteiramente dentro das ciências cognitivas [...]. Em outros lugares, ela tem sido estudada como se fosse um processo inteiramente social, como se residisse inteiramente dentro das ciências sociais [...]. Eu sugiro que ela pertença às duas áreas. Nós não podemos ter esperança de entender a língua a não ser tomando-a como um conjunto de ações conjuntas construídas a partir de ações individuais. (CLARK apud KOCH; LIMA-CUNHA, 2004, p. 255)

Em suma, a língua se constitui em um tipo de ação conjunta.

Não é nenhuma novidade também salientarmos que os gêneros são profundamente reconhecidos nessa seara. Como diz Marcuschi (2007, p. 19), “já se tornou trivial a ideia de que os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e

social”. As ações sociais, logo, mediadas pela linguagem, textualmente materializadas na forma de gêneros, resultam de um composto entre cognição, linguagem e práticas interacionais. A atividade linguística requer interação e compartilhamento de conhecimentos e de atenção, isto é, eventos linguísticos que, por sua vez, não decorrem de atos individuais e independentes; “são, ao contrário, uma atividade que se faz com os outros, conjuntamente” (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004, p. 283).

O sociocognistivismo, assim, relaciona os gêneros textuais a competências sociais e cognitivas de comunicação, compreendidas e regularizadas por sujeitos sociais nas diversas práticas de uso linguístico. A materialização de textos em gêneros está completamente relacionada à competência sociocomunicativa desses sujeitos. Essa competência legitima o que é apropriado ou não a cada situação social, além de proporcionar aos sujeitos as particularidades dos variados padrões genéricos. Ela, segundo Koch (2006), estabelece relações com o conhecimento sobre como a linguagem planeja, elabora e desempenha estratégias de construção e interpretação de textos. E mais:

A competência textual de um falante permite-lhe, ainda, averiguar se em um texto predominam sequências de caráter narrativo, descritivo, expositico e/ou argumentativo. O contato com os textos da vida cotidiana, como anúncios, avisos de toda ordem, artigos de jornais, catálogos, receitas médicas, prospectos, guias turísticos, literatura de apoio à manipulação de máquinas, etc., exercita a nossa capacidade metatextual para a construção e intelecção de textos. (KOCH, 2006, p. 53)

A abordagem sociocognitivista tem como foco de investigação a cognição de forma situada, ou seja, as relações de confluência entre o cognitivo e o social. Sob esse escopo, analisar gêneros significa compreender como “os objetivos das ações comunicativas são dinâmicas e variavelmente flexíveis, a depender do tipo de interação”, conforme Koch e Cunha-Lima (2004, p. 284).

Para essas autoras, em alguns eventos linguísticos, predominam interações altamente ritualísticas e previsíveis – uma cerimônia de casamento ou uma posse em cargo público, por exemplo –, enquanto em outros os participantes se encontram mais livres e podem estabelecer novos objetivos na interação ou até mesmo deixar de pertencê-la. Elas também afirmam que o tipo de ação comunicativa é caracterizado pelos participantes da interação; enquanto que em

um evento determinadas pessoas estão inseridas, outras excluídas. É o que ocorre numa conversa entre amigos, em um ônibus, ao se deslocarem para o trabalho.

Além disso, poderá haver uma relação simétrica entre os participantes da interação, no qual todos têm inúmeras possibilidades de iniciativas e atitudes – é o que ocorre em conversas espontâneas –, e assimétrica, nos casos em que cada participante desempenha um papel específico, como professor e aluno, para ilustrar.

Em todos esses casos, e mais fortemente em ações menos ritualizadas, existe a negociação por parte dos agentes, que precisam estabelecer conjuntamente qual é a ação que está em curso. Usam, para isso, uma série de pistas de contextualização; uma pista de contextualização pode ser o próprio recinto onde se dá a interação (certas coisas são mais prováveis numa sala de aula que numa igreja, por exemplo); outras pistas podem ser os vários sinais corporais como olhares, posturas, expressões faciais, além, é claro, das verbalizações. (KOCH; CUNHA-LIMA, 2004, p. 284).

Apesar de reconhecer a importância da ação conjunta dos agentes da interação, essas autoras apontam que a linguagem requer uma abordagem mais ampla; é necessário entendê-la como ‘ação social’. A produção de determinados sentidos, pelos sujeitos sociais, está diretamente vinculada às relações sociais complexas, cultural e historicamente situadas.

Para ilustrar, elas citam os contextos de interação em sala de aula e também contexto de interação médico-paciente. Tanto o professor quanto o médico se encarregam de reinterpretar a fala de seu interlocutor, de autorizá-lo ou não a utilizar certa expressão diante de fenômenos ou objetos específicos e de determinar interpretações finais aos textos dele, ainda que contra a vontade do interlocutor. Isso não significa, no entanto, que a intenção – e, por conseguinte, a produção do interlocutor – não tenha valor algum; ela pode não se constituir na parte mais importante da construção dos textos produzidos na interação. Além disso, nem sempre nos casos de relações assimétricas, como as citadas acima, acontece dessa forma. O professor, por exemplo, poderá realizar uma reclamação e o aluno poderá recebê-la ironicamente e torná-la sem efeito algum; o professor, inclusive, conforme a interação local, poderá validar a fala do aluno, dizendo que queria, de fato, alcançar o sentido da fala dele. Em síntese, todas as influências realizadas na interação são igualmente importantes sob a ótica da relação socialmente situada.

A apresentação de objetivo(s) na interação verbal é mais um elemento que corrobora a contextualização necessária ao interlocutor. Todas essas considerações – ação/prática social, papéis sociais, processo de negociação de sentidos, competências sociocognitivas e processamento linguístico – incidem no conhecimento sobre gêneros textuais.

Em Ler e compreender: os sentidos do texto, Koch e Elias (2008) advogam pela mobilização de redes de conhecimento que facilitam a interação dos sujeitos sociais no uso de diversos gêneros textuais, a saber: linguístico (conhecimento da gramática da língua e do conjunto de palavras e expressões que a compõe), enciclopédico (conhecimento geral sobre o mundo e conhecimentos alusivos a vivências pessoais e eventos) e interacional (conhecimento sobre o processo de comunicação, particularmente no que se refere à fazer-se entender pelo ouvinte/leitor, considerando a situação de enunciação e à imagem que se tem do co- enunciador, o registro de nível de formalidade da interação e o grau de informatividade dos participantes do evento linguístico). O papel do contexto é pontuado como fator de efetiva importância para a interação e um dos pontos fulcrais da linguística Textual. As primeiras pesquisas sobre ‘texto’ contemplavam o contexto estritamente como o entorno verbal do texto, denominado ‘co-texto’. A partir da teoria dos Atos de Fala de Searle (1969) – que desconsiderou a importância do interlocutor no estabelecimento de interpretações e na validação de sentido – e da teoria da Atividade Verbal de Leontiev (1978) – que levou em consideração o homem como ser corporal, fisiológico e natural, que atua através de atividade, tornando-se executor das relações sociais objetivas do processo sócio-histórico –, o contexto sociocognitivo foi observado como necessário à interlocução entre os sujeitos sociais. Isso permitiu o entendimento de que o contexto reúne não somente o co-texto mas também a situação de interação imediata e o contexto cognitivo dos interlocutores.

Essas autoras asseguram que os sujeitos sociais desenvolvem uma competência metagenérica ao entrarem em contato com um número significativo de gêneros textuais. A competência genérica orienta a compreensão sobre os gêneros textuais materializados em diversos suportes (revistas, jornais, livros, internet etc.) e eventos (conversas informais, mesa- redonda, palestras etc.) de textos. E isso lhes possibilita interagir adequadamente com diversos tipos de texto que circulam nas mais variadas esferas de práticas sociais, uma vez que, por exemplo, o leitor, ao identificar o gênero, saberá o que encontrar no texto que lê. A competência genérica, sucintamente, corresponde a saber escolher o gênero textual, pelo menos, a partir dos critérios da intencionalidade, do contexto social e dos agentes envolvidos na interação.

Partindo da perspectiva bakhtiniana, Koch e Elias (2008) certificam a relativa estabilidade dos gêneros textuais. Os gêneros são marcados sócio-historicamente, logo relacionam-se às situações sociocomunicativas e sofrem modificações por sua natureza dinâmica.

Afirmar que os gêneros são produzidos de determinada forma não implica dizer que não sofrem variações ou que elegemos a forma como o aspecto definidor do gênero textual em detrimento de sua função. Apenas chamamos a atenção para o fato de que todo gênero, em sua composição, possui uma forma, além de conteúdo e estilo. (KOCH; ELIAS, 2008, p. 106)

Para Koch (2009, p. 54), as transformações sociais incidem na configuração do gênero, trazendo-lhe “novos procedimentos de organização e acabamento da arquitetura verbal” e “modificações de lugar atribuído ao ouvinte”. Será, portanto, a competência genérica que dará aos sujeitos sociais condições de usar e de reconhecer os gêneros textuais, já que, nessa abordagem, os gêneros se apresentam como elementos recorrentes para a comunicação verbal.

É importante também considerar, como afirma Marcuschi (2008, p. 163), que, apesar de contarmos com uma metalinguagem riquíssima para designarmos os gêneros que produzimos, não é tão simples denominarmos certos gêneros, sobretudo porque não há uma relação biunívoca entre eles e as formas textuais: “e isso fica comprovado no caso de um gênero que tem a função de outro”, situações em que um gênero se mistura com outro. Esse fenômeno de hibridização, o autor designa de ‘intergenericidade’. Contudo, de modo geral, e considerando que a denominação dos gêneros foi constituída histórica e socialmente, não há tanta dificuldade na identificação deles.

Como vimos, a abordagem sociocognitiva se vale de meios advindos de perspectivas sócio-histórica e congnitivas. Nesse sentido, as práticas sociais são essenciais para revelar a relação entre linguagem e cognição.