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370idem, ibidem.

17. Os partidos em filosofia e o não-partidarismo

Como sublinha o próprio Lénine, em cada questão gnosiológica, em cada questão posta pela nova física, observámos a luta entre o materialismo e o idealismo448. “Por detrás do amontoado de novas

subtilezas terminológicas, por detrás do lixo de uma escolástica erudita, encontrámos sempre sem excepção duas linhas fundamentais”449, diz. Tomar a matéria como primário e o espírito com secundário,

ou o inverso, continua a ser a questão fundamental que “de facto” continua a dividir os filósofos em dois grandes campos. Lénine, analisa, assim, a questão de saber se existem partidos em filosofia e a importância do não-partidarismo.

“A fonte de milhares e milhares de erros e de confusões neste domínio”, afirma Lénine, “consiste precisamente em que, por trás da aparência dos termos, da definições, dos subterfúgios escolásticos, dos artifícios verbais, não se vê estas duas tendências fundamentais”450. E foi exactamente isto – o

obscurecimento da questão por meio de artifícios verbais, o jogo escolástico de novos “ismos” - que Marx e Engels combateram, nota Lénine. “A recusa de ter em conta os projectos híbridos de conciliação do materialismo e do idealismo” constitui o seu grande mérito. Caminharam “para a frente por um caminho filosófico nitidamente definido”; “desenvolveram o materialismo, fizeram avançar uma corrente fundamental da filosofia, não se contentaram em repetir questões gnosiológicas já resolvidas, mas aplicaram consequentemente, e mostraram como se deve aplicar este mesmo materialismo no domínio das ciências sociais[...]”; “sem nunca tomar a sério […] as infindáveis tentativas de «ultrapassar» a «unilateralidade» do materialismo e do idealismo, de proclamar uma nova linha, quer seja o «positivismo», o «realismo» ou o charlatanismo professoral”451. Tal “positivismo”, tal “realismo”, “que

seduziram e seduzem um número infindável de confusionistas”, eram, diria Engels, “no melhor dos casos um processo filisteu de introduzir sub-repticiamente o materialismo, criticando-o e refutando-o publicamente”452.

“Marx e Engels foram, em filosofia, partidaristas do princípio ao fim, souberam descobrir os desvios do materialismo e as condescendências para com o idealismo e o fideísmo em todas e quaisquer correntes «modernas»”453, resume Lénine. Também J. Dietzgen. Dietzgen exigia decisão e clareza.

Considerava que “o clericalismo científico esforça-se muito seriamente por ajudar o clericalismo religioso”454, nota Lénine. E que a teoria do conhecimento materialista constituía uma “arma universal

contra a fé religiosa”, não só contra a “religião conhecida de todos, formal e comum”, mas também contra a “refinada e elevada religião professoral dos idealistas inebriados”455.

Lénine, tomando em consideração a escola de Mach e de Avenarius do ponto de vista dos

448Cf. idem, ibidem, p. 254. 449idem, ibidem. 450idem, ibidem. 451idem, ibidem, p. 254-255. 452Cf. idem, ibidem, p. 256. 453idem, ibidem.

454J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257. 455Cf. idem cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 257-258.

partidos em filosofia, observa que “estes senhores gabam-se do seu não-partidarismo”456, que pretendem

colocar-se acima do materialismo e do idealismo, “ultrapassar esta oposição «antiquada»”. “Mas de

facto”, continua Lénine, “toda esta confraria cai a cada o instante no idealismo, travando contra o

materialismo uma luta incessante e tenaz”. “De facto”, sublinha Lénine “nas condições gerais da luta das ideias e das tendências da sociedade contemporânea, o papel objectivo destes artifícios gnosiológicos é um e só um: abrir caminho ao idealismo e ao fideísmo, servi-los fielmente. De facto, não é por acaso que à pequena escola dos empiriocriticistas se agarram tanto os espiritualistas ingleses do género de Ward como os neo-criticistas franceses que elogiam Mach pela sua luta contra o materialismo, e os imanentistas alemães”457.

Lénine tem em grande conta o trabalho destes “professores” que considera capazes dos mais valiosos contributos nos domínios especiais da química, da história, da física, afirmado aqui e mostrado ao longo da presente obra. Mas não se pode crer nas suas considerações no domínio da filosofia458, diz. A

razão é a mesma pela qual “não se pode acreditar numa só palavra de nenhum professor de economia política, capaz de realizar os trabalhos mais valiosos no domínio das investigações factuais e especializadas, quando se trata da teoria geral da economia política. Porque esta última é na sociedade contemporânea uma ciência tão partidarista como a gnosiologia”459.

O exame da ligação do empiriocriticismo com a religião é importante e insere-se na questão mais vasta do partidarismo em filosofia. Assim, conclui Lénine, “a atitude para com a religião e a atitude para com as ciências da natureza ilustra excelentemente esta real utilização de classe do empiriocriticismo pela reacção burguesa”460. Tomando Petzoldt, discípulo de Mach e Avenarius, ouvimo-lo dizer que o

empiriocriticismo “não está em contradição nem com o teísmo nem com o ateísmo”461. Para Mach, “as

opiniões religiosas são um assunto privado”462. Cornelius (que elogia Mach e que Mach elogia) é fideísta

aberto e ultra-reaccionário, diz Lénine.

“A neutralidade de um filósofo nesta questão é já servilismo em relação ao fideísmo, e Mach e Avenarius não se elevam nem se podem elevar acima da neutralidade, devido aos pontos de partida da sua gnosiologia”, diz Lénine, e explica: “uma vez que negais a realidade objectiva, que nos é dada na sensação, já perdestes todas as armas contra o fideísmo, porque já caístes no agnosticismo ou no subjectivismo, e o fideísmo não precisa de mais”. Por outro lado, “se o mundo sensível é uma realidade objectiva, a porta está fechada a qualquer outra «realidade» ou pseudo-realidade (recordai-vos que Bazárov acreditou no «realismo» dos imanentistas, os quais declaram que Deus é um «conceito real»)”463.

Assim como a atitude do empiriocriticismo para com a religião, Lénine examina também a atitude do machismo como corrente filosófica para com as ciências da natureza. Como vimos, “o

456V. I. Lénine, ibidem, p. 258. 457idem, ibidem.

458Cf. idem, ibidem, p. 259. 459idem, ibidem.

460idem, ibidem, p. 260.

461J. Petzoldt cit. por V. I. Lénine, ibidem. 462E. Mach cit. por V. I. Lénine, ibidem. 463V. I. Lénine, ibidem.

machismo combate do princípio ao fim a «metafísica» das ciências da natureza, designando com este nome o materialismo das ciências da natureza, isto é, a convicção espontânea, involuntária, informe, filosoficamente inconsciente, que a imensa maioria dos naturalistas tem da realidade objectiva do mundo exterior reflectida pela nossa consciência. E os nossos machistas calam hipocritamente este facto, obscurecendo ou confundindo a ligação indissolúvel do materialismo espontâneo dos naturalistas com o

materialismo filosófico como corrente há muito conhecida e confirmada centenas de vezes por Marx e

Engels”464.

Avenarius, como chama Lénine a atenção, combate a metafísica das ciências da natureza do ponto de vista do idealismo gnosiológico; Mach, ao combater igualmente a metafísica das ciências da natureza, confessa que o seguem “uma série de filósofos”, “mas muito poucos naturalistas” e que “a maioria dos naturalistas se atém ao materialismo”; Petzoldt afirma que “as ciências da natureza estão inteiramente impregnadas de metafísica” e que “a sua experiência tem ainda de ser depurada” (com isto querendo significar, como vimos, a eliminação do reconhecimento da realidade objectiva); Willy considera que “as ciências da natureza, no fim de contas, representam em muitos aspectos uma autoridade da qual nos devemos livrar”465. Isto, como bem diz Lénine, é “completo obscurantismo” e os imanentistas,

“muito legitimamente, tiravam desta ideia machista sobre o «carácter metafísico» do materialismo histórico-natural conclusões directa e abertamente fideístas”. Se as ciências não nos dão nas suas teorias a realidade objectiva, então é indiscutível que a humanidade tem o direito de criar noutro campo “conceitos” não menos “reais” como o de Deus, afirma Lénine.

Lénine faz referência a uma obra de Ernst Haeckel, Enigmas do Universo, que, segundo ele, provocara uma tempestade que evidenciou com singular relevo o partidarismo da filosofia da sociedade contemporânea, bem como o verdadeiro significado social da luta do materialismo contra o idealismo e o agnosticismo. Haeckel é um naturalista que “exprime indubitavelmente”, diz Lénine, “as opiniões, sentimentos e tendências mais firmemente implantados, embora mal definidos, da esmagadora maioria dos naturalistas de fins do século XIX e começos do século XX”466. Aquilo que Heackel expõe, sem

querer “romper com os filisteus”, é absolutamente inconciliável com quaisquer matizes do idealismo filosófico dominante, considera Lénine. Assim, foi desencadeada contra Heackel uma verdadeira guerra da parte dos teólogos, dos “professores oficiais de filosofia”, dos imanentistas, kantistas. “dos sacerdotes da ciência pura e da teoria aparentemente mais abstracta” que “soltam verdadeiros gritos de raiva”. Ouve- se nitidamente um motivo fundamental, diz Lénine: “contra a «metafísica» das ciências da natureza, contra o «dogmatismo», contra o «exagero do valor e da importância das ciências da natureza», contra o «materialismo histórico-natural»”467.

É especialmente característico desta “tragicomédia”, diz Lénine, o facto de Haeckel não se declarar francamente materialista, renunciar ao materialismo e rejeitar esta designação; nele estão

464idem, ibidem, p. 262. 465idem, ibidem. 466idem, ibidem, p. 265. 467idem, ibidem, p. 264.

ausentes objectivos partidaristas definidos e deseja mesmo respeitar o preconceito dominante contra o materialismo. Mas o que este naturalista – que não entra na análise das questões filosóficas, que não sabe contrapor as teorias materialista e idealista do conhecimento – faz é troçar de todos os “artifícios idealistas, ou, mais ainda, de todos os artifícios especialmente filosóficos, do ponto de vista das ciências da natureza, não admitido sequer a ideia de que seja possível outra teoria do conhecimento que não seja o

materialismo histórico-natural. Troça dos filósofos do ponto de vista do materialista, sem ver que se situa

no ponto de vista de um materialista!”468. Lénine, concluindo, afirma que “a «guerra» contra Haeckel provou que este nosso ponto de vista corresponde à realidade objectiva, isto é, à natureza de classe da

sociedade contemporânea e às suas tendências ideológicas de classe”469.

Lénine dá ainda outro exemplo em que se manifesta o partidarismo em filosofia. Karl Snyder, americano, escreveu um livro sobre uma série de descobertas em vários ramos da ciência. O machista Kleinpeter, que traduz a obra de inglês para alemão, acrescenta-lhe um prefácio em que declara insatisfatória a gnosiologia Snyder porque, diz Lénine, o autor nem por um momento admite dúvidas que o quadro do mundo é um quadro de como a matéria se move. No seu livro seguinte, Snyder dedica o seu livro a Demócrito, dizendo que, embora a sua escola filosófica esteja um pouco fora de moda, “é digno de nota que praticamente todo o progresso moderno das nossas ideias acerca do mundo se baseou nos princípios do materialismo. A bem dizer, os princípios do materialismo são simplesmente inelutáveis nas investigações científicas”470. Snyder troça do idealismo:

“Evidentemente, se quiser, pode sonhar juntamente com o bom bispo Berkeley que é tudo um sonho. Mas por mais agradáveis que sejam as prestidigitações de um idealismo idealizado, não haverá muitas pessoas que, pensem o que pensarem acerca do problema do mundo exterior, duvidem que elas próprias existem. Não é preciso correr muito atrás dos fogos-fátuos dos Eus e

Não-Eus para se convencer de que, admitindo a nossa própria existência, abrimos as seis portas

dos nossos sentidos a uma série de aparências. A hipótese das nebulosas, a teoria da luz como movimento do éter, a teoria dos átomos e de todas as doutrinas semelhantes, podem ser tomadas simplesmente como cómodas 'hipóteses de trabalho', mas é preciso lembrar que, enquanto estas doutrinas não forem refutadas, elas assentam mais ou menos na mesma base que a hipótese de que um ser a que tu, indulgente leitor, chamas 'tu', percorre neste momento estas linhas”471.

Assim, pergunta Lénine, “será de admirar que Rudolf Willy, em 1905, combata Demócrito como se fosse um inimigo vivo, ilustrando deste modo admiravelmente o partidarismo da filosofia e revelando uma e outra vez a sua verdadeira posição nesta luta de partidos?”472. Willy dizia de Demócrito não ser este

“suficientemente livre” para para compreender que os átomos eram conceitos fictícios, auxiliares; da mesma forma, “os nossos naturalistas contemporâneos, com poucas excepções também não o são”. Mas os naturalistas troçam deste berkeleyanismo e seguem Haeckel, nota Lénine.

468idem, ibidem, p. 266. 469idem, ibidem, p. 267.

470K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem.

471K. Snyder cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 267-268. 472V. I. Lénine, ibidem, p. 268.