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Ao pôr o problema da verdade, Lénine chamava a atenção para dois aspectos desta questão: em primeiro lugar, o de saber se existe a verdade objectiva (isto é, saber se existe um conteúdo nas representações humanas que não depende do sujeito) e, em segundo lugar, o de saber se essa verdade objectiva é dada ao homem de uma só vez ou apenas de forma aproximada. Esta é a importante questão da relação entre a verdade absoluta e relativa – que apenas é resolúvel dialecticamente.

Bogdánov acusa Engels de eclectismo por este admitir verdades eternas. Não interessa aqui apresentar os argumentos de Bogdánov, nem a forma como Lénine mostra que eles não passam de “declamações” e de um mero “amontoado de palavras”. Interessa, sim, retomar a discussão, a que Bogdánov se referia, entre Engels e Dühring, materialista dogmático. Este último lançava a torto e a direito, diz Lénine, as palavras verdade última, eterna, definitiva. Engels refutou e ridicularizou Dühring que não sabia aplicar a dialéctica à questão da relação entre a verdade relativa e absoluta, diz. Apesar de tudo, responde Engels, existem certamente verdades eternas, verdades definitivas e sem apelo: Napoleão morreu a 5 de Maio de 1821, Paris é em França ou um homem privado de alimento morre de fome, por exemplo. Mas estas, em geral, não são mais do que banalidades, do que lugares-comuns da pior espécie149. “Ser materialista”, esclarece Lénine, “significa reconhecer a verdade objectiva que nos é

revelada pelos órgãos dos sentidos. Reconhecer a verdade objectiva, isto é, não dependente do homem e da humanidade, significa reconhecer duma maneira ou doutra, a verdade absoluta. É este «duma maneira ou doutra» que separa o materialista metafísico Dühring do materialista dialéctico Engels”150, conclui.

Engels põe a questão de saber se os produtos do conhecimento humano, e quais, podem ter uma validade soberana e um direito incondicional à verdade. Eis, então, a forma como Engels resolve dialecticamente esta questão da relação entre a verdade absoluta e relativa:

“A soberania do pensamento realiza-se numa série de homens que pensam de modo extremamente pouco soberano; o conhecimento que tem um direito incondicional à verdade, numa série de erros relativos; nem um nem outro podem ser realizados completamente senão através de uma duração infinita da vida da humanidade.

Temos aqui de novo a contradição que já tínhamos encontrado atrás, a contradição entre o carácter do pensamento humano concebido necessariamente como absoluto, e a sua concretização nos indivíduos isolados, que pensam apenas de modo limitado. Esta contradição só pode ser resolvida numa série de gerações humanas sucessivas que, pelo menos para nós, é praticamente infindável. Neste sentido, o pensamento humano é tão soberano como não soberano, e a sua capacidade de conhecimento é tão ilimitada como limitada. Soberano e ilimitado pela sua natureza, vocação, possibilidade e objectivo histórico final; não soberano e limitado pela sua realização individual e pela realidade dada num ou noutro momento.

O mesmo acontece com as verdade eternas [...]”151

149F. Engels cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 100. 150V. I. Lénine, ibidem.

Este raciocínio é extremamente importante, considera Lénine, para a questão do relativismo. Todos os machistas se afirmam relativistas, nota Lénine, significando com isto a exclusão da mínima admissão da verdade absoluta. Para Engels, por seu turno, a verdade absoluta compõe-se de verdades relativas. Esta é a diferença entre o relativismo e a dialéctica. Lénine, mais à frente, desenvolve esta ideia, considerando que colocar o relativismo na base da teoria do conhecimento significa condenar-se inevitavelmente ao cepticismo absoluto, ao agnosticismo e à sofística, ou ao subjectivismo. “O relativismo, como base da teoria do conhecimento”, continua, “é não somente o reconhecimento da relatividade dos nossos conhecimentos, mas é também a negação de qualquer medida ou modelo objectivo, existente independentemente da humanidade, da qual se aproxima o nosso conhecimento relativo”152. A dialéctica, como explicava Hegel, e Lénine aqui sublinha, contém um elemento de

relativismo, de negação, mas não se reduz ao relativismo. Portanto, a dialéctica de Marx e Engels, “reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objectiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade”153, diz Lénine.

Outro raciocínio importante de Engels, considera Lénine, é o que diz respeito à relação entre verdade e erro, também ela apenas compreensível num quadro dialéctico:

“A verdade e o erro, como todas as categorias lógicas que se movem em oposições polares, só têm valor absoluto nos limites de um domínio extraordinariamente limitado, como acabámos de ver e como o sr. Dühring o saberia também se conhecesse minimamente os primeiros elementos da dialéctica, as suas primeiras premissas, que tratam precisamente da insuficiência de todas as oposições polares. Desde que aplicamos a oposição entre a verdade e o erro fora dos limites do domínio estreito que indicámos atrás, esta oposição torna-se relativa e portanto, imprópria para a expressão científica exacta. E se tentamos aplicá-la como oposição absoluta, fora dos limites do domínio indicado, fracassamos completamente: ambos os pólos da oposição se transformam no seu contrário, isto é, a verdade torna-se erro e o erro verdade.”154

E aqui Lénine faz referência ao exemplo de Engels sobre a lei de Boyle. Engels diz:

“Tomemos como um exemplo a bem conhecida lei de Boyle. De acordo com ela, se a temperatura permanece constante, o volume do gás varia inversamente com a pressão a que está sujeito. Regnault descobriu que esta lei não é exacta em certos casos. Tivesse sido ele um filósofo da realidade [como Dühring], teria de ter dito: a lei de Boyle é mutável, logo não é uma verdade genuína, logo não é de todo uma verdade, logo é um erro. Mas se tivesse feito isso, teria cometido um erro muito maior do que o que estava contido na lei de Boyle; o seu grão de verdade teria desaparecido num monte de erros; ele teria distorcido a sua conclusão originalmente correcta transformando-a num erro comparado com o qual a lei de Boyle, junto com a pequena partícula de erro que comporta, teria parecido verdade. Mas Regnault, sendo um homem de ciência, não se

152V. I. Lénine, ibidem, p. 103. 153idem, ibidem.

entregou a tais infantilidades, mas continuou as suas investigações e descobriu que, em geral, a lei de Boyle é apenas aproximadamente verdadeira e que, em particular, perde a sua validade no caso dos gases que podem ser liquefeitos pela pressão, nomeadamente no momento em que a pressão se aproxima do ponto em que a liquefacção começa. A lei de Boyle foi provada verdadeira, mas apenas dentro de determinados limites. Mas, dentro desses limites, ela será verdadeira de um modo absoluto e definitivo? Nenhum físico o pretenderá. Diria que é válida dentro de certos limites de pressão e temperatura e para certos gases; e mesmo nestes limites mais restritos, não excluiria a possibilidade uma limitação ainda mais estreita ou de uma formulação alterada como resultado de futuras investigações.”155

Assim, conclui Lénine, o “grão de verdade” contido nesta lei só representa uma verdade absoluta dentro de certos limites, a lei é uma verdade apenas aproximadamente. “Cada degrau no desenvolvimento da ciência acrescenta novos grãos a esta soma de verdade absoluta, mas os limites de cada tese científica são relativos, sendo ora alargados, ora restringidos à medida que cresce o conhecimento”156.

J. Dietzgen põe a questão nos seguintes termos: “É evidente que o quadro não esgota o objecto, que o pintor fica atrás do seu modelo...Como é que o quadro pode «coincidir» com o modelo? Aproximadamente, sim”. “Só de maneira relativa podemos conhecer a natureza e as suas partes; porque cada parte, embora seja somente uma parte relativa da natureza, tem contudo a natureza do absoluto, a natureza de toda a natureza em si, que o conhecimento não pode esgotar”157.

Lénine evidencia assim que, para o materialismo dialéctico, não existe nenhuma fronteira intransponível entre a verdade absoluta e relativa.

“Do ponto de vista do materialismo contemporâneo, isto é, do marxismo, são historicamente condicionais os limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação à verdade objectiva, absoluta, mas é incondicional que nós nos aproximamos dela. […] Numa palavra, é historicamente condicional qualquer ideologia, mas é incondicional que a qualquer ideologia científica (diferentemente, por exemplo, da ideologia religiosa) corresponde uma verdade objectiva, uma natureza absoluta. Direis: esta distinção entre a verdade absoluta e a verdade relativa é indefinida. Responder-vos-ei: é suficientemente «indefinida» para impedir a transformação da ciência num dogma, no mau sentido desta palavra, numa coisa morta, cristalizada, ossificada, mas é ao mesmo tempo suficientemente «definida» para nos demarcar, da maneira mais resoluta e irrevogável do fideísmo e do agnosticismo, do idealismo filosófico e da sofística dos seguidores de Hume e de Kant”158.

155F. Engels, Anti-Dühring, in Karl Marx-Frederick Engels Collected Works, New York, International Publishers, v.25, 1987, p. 111. p. 84-85.

156V. I. Lénine, ibidem, p. 101.

157J. Dietzgen cit. por V. I. Lénine, ibidem, p. 102. 158V. I. Lénine, ibidem.