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A verdade objectiva vs a verdade como “forma organizadora da experiência humana” A realidade objectiva como a fonte das sensações

Para Lénine, o problema da verdade objectiva é uma das questões filosóficas fundamentais123. Ao

tratar esta questão, Lénine comenta a posição de Bogdánov que não se reconhece machista mas que, como vimos, subscreve as posições fundamentais desta doutrina. Bogdánov nega a verdade objectiva. Mas tal negação, como sublinha Lénine, não lhe pertence pessoalmente. Decorre, sim, dos fundamentos da doutrina de Mach e Avenarius124: “a objectividade é definida de tal maneira que esta definição inclui a

doutrina da religião»125”.

A propósito de uma uma afirmação de Bogdánov – na qual declara que, para ele, o marxismo contém uma negação da objectividade incondicional de qualquer verdade, a negação de todas as verdades eternas, devendo esta ser entendida como a verdade objectiva no sentido absoluto da palavra – Lénine evidencia que nela estão duas questões confundidas e coloca a questão nos seus termos correctos:

“1) existe uma verdade objectiva, isto é, pode haver nas representações humanas um conteúdo que não depende do sujeito?

2) se sim, podem as representações humanas que exprimem a verdade objectiva exprimi-la de uma vez, integralmente, incondicionalmente, absolutamente, ou apenas de maneira aproximada, relativa? Esta segunda questão é a questão da relação entre a verdade absoluta e a verdade relativa”126.

Bogdánov defende a verdade como “uma forma ideológica, uma forma organizadora da

121F. Engels cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 87-88. 122V. I. Lénine, ibidem, p. 88.

123Cf. idem, ibidem, p. 92. 124Cf. idem, ibidem, p. 94. 125idem, ibidem, p. 93. 126idem, ibidem, p. 92.

experiência humana”127. Nesta afirmação está presente a negação da verdade objectivapois “se a verdade

é somente uma forma ideológica, quer dizer que não pode haver verdade independente do sujeito, da humanidade [...], se a verdade é uma forma da experiência humana, não pode haver verdade independente da humanidade, não pode haver verdade objectiva”128, replica Lénine. Aceitar que a verdade é apenas uma

forma organizadora da experiência é aceitar, por exemplo, que a doutrina do catolicismo é uma verdade, denuncia Lénine, “porque está de fora de qualquer dúvida que o catolicismo é uma «forma organizadora da experiência humana»”129.

Bogdánov, procurando evitar cair em tais conclusões, remete o fundamento da objectividade para a esfera da experiência colectiva: “A objectividade dos corpos físicos que encontramos na nossa experiência é estabelecida, em última análise, na base da verificação mútua e da concordância das opiniões de diferentes pessoas. Dum modo geral, o mundo físico é a experiência socialmente concertada, socialmente harmonizada, numa palavra, a experiência socialmente organizada”130. Esta é uma definição

idealista, considera Lénine de forma peremptória. A afirmação das ciências da natureza de que a Terra existia antes da humanidade é uma verdade objectiva, afirma Lénine131. Ora, “se a verdade é uma forma

organizadora da experiência humana, não pode ser verdadeira a afirmação da existência da Terra fora de toda a experiência humana”132.

Por mais correcções que Bogdánov faça – como, por exemplo, tentar estabelecer uma diferença entre a experiência social (na qual inclui crenças mitológicas) e a experiência socialmente organizada alegando que aquela não se harmoniza com as formas organizadoras da experiência colectiva como a cadeia da causalidade – não corrige o erro fundamental da sua posição, afirma Lénine.

“A definição feita por Bogdánov da objectividade e do mundo físico cai absolutamente por terra, porque a doutrina da religião tem «significado universal» num grau mais elevado do que a doutrina da ciência: a maior parte da humanidade atém-se ainda hoje à primeira doutrina. O catolicismo está «socialmente organizado, harmonizado, concertado» pelo seu desenvolvimento secular; «encaixa-se» do modo mais indiscutível «na cadeia da causalidade», porque as religiões não surgiram sem causas, não é de modo nenhum por acaso que nas condições actuais se mantêm na massa do povo, e é perfeitamente «lógico» que os professores de filosofia se adaptem a elas. Se esta experiência social-religiosa, sem dúvida de significado universal e sem dúvida altamente organizada, «não se harmoniza» com a «experiência» da ciência, quer dizer que existe entre uma e outra uma diferença essencial, fundamental, que Bogdánov apagou quando rejeitou a verdade objectiva. E por mais que Bogdánov se «corrija», dizendo que o fideísmo ou o clericalismo não se harmonizam com a ciência, continua a ser um facto indubitável que a negação da verdade objectiva por Bogdánov «se harmoniza» completamente com o fideísmo. O fideísmo contemporâneo não rejeita de forma nenhuma a ciência; rejeita apenas as «pretensões excessivas» da ciência, a saber, a pretensão à verdade objectiva. Se existe uma verdade objectiva (como

127Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem, p. 92. 128V. I. Lénine, ibidem, p. 92-93.

129idem, ibidem, p. 93.

130Bogdánov cit por V. I. Lénine, ibidem. 131V. I. Lénine, ibidem.

pensam os materialistas), se as ciências da natureza, reflectindo o mundo exterior na «experiência» humana, são as únicas capazes de nos dar a verdade objectiva, qualquer fideísmo é absolutamente refutado. Mas, se não há verdade objectiva, se a verdade (incluindo a verdade científica) é apenas uma forma organizadora da experiência humana, reconhece-se deste modo a premissa fundamental do clericalismo, abre-se-lhe a porta, arranja-se lugar para as «formas organizadoras» da experiência religiosa”133.

Lénine mostra assim que a definição de verdade como forma organizadora da experiência humana – independentemente de se tratar de uma experiência individual ou colectiva – é uma definição idealista que conduz directamente ao fideísmo e que decorre da negação da verdade objectiva.

Vimos que considerar que no mundo há apenas sensações ou que os corpos são complexos de sensações, como o fazem, respectivamente, Avenarius e Mach é subjectivismo puro. Ora, esse subjectivismo conduz inevitavelmente à negação da verdade objectiva, nota Lénine. Quando Mach e Avenarius reconhecem que as sensações são a fonte do nosso conhecimento, colocam-se consequentemente do ponto de vista do empirismo (todo o conhecimento deriva da experiência) ou do sensualismo (todo o conhecimento deriva das sensações), nota Lénine. Mas tanto o idealista subjectivo como o materialista pode tomar as sensações como a fonte do conhecimento; esta é, aliás, a primeira premissa da teoria do conhecimento, diz Lénine. A partir daqui, pode seguir-se uma das duas deduções possíveis das premissas do empirismo e do sensualismo: “partindo das sensações, pode seguir-se a linha do subjectivismo, que conduz ao solipsismo («os corpos são complexos ou combinações de sensações») e pode seguir-se a linha do objectivismo, que conduz ao materialismo (as sensações são imagens dos corpos, do mundo exterior)”134, clarifica Lénine. Para o agnosticismo ou, indo mais longe, diz Lénine,

para o idealismo subjectivo, não pode haver verdade objectiva. Para o materialismo, o reconhecimento da verdade objectiva é essencial. Mach, reconhecendo a primeira premissa – a de que as sensações são a fonte do conhecimento –, embrulha a segunda importante premissa – a da realidade objectiva, dada ao homem nas suas sensações – por meio de malabarismos verbais com a palavra “elemento” diz Lénine. Assim, a negação da verdade objectiva por Bogdánov é o resultado inevitável do machismo, e não um desvio dele, conclui Lénine.

Considerar a realidade objectiva como fonte das sensações é tomar uma posição materialista. “Se não, sois inconsequente e chegareis infalivelmente ao subjectivismo, ao agnosticismo, tanto fazendo que negueis a cognoscibilidade da coisa em si, a objectividade do tempo, do espaço e da causalidade (como Kant), ou que não admitais sequer a ideia da coisa em si (como Hume). A inconsequência do vosso empirismo”, continua Lénine, “da vossa filosofia da experiência, consiste nesse caso em que negais o conteúdo objectivo da experiência, a verdade objectiva no conhecimento experimental”135. Os

materialistas reconhecem a realidade objectiva que nos é dada pela experiência, reconhecem uma fonte objectiva, independente do homem, das nossas sensações. Os agnósticos negam a realidade objectiva

133idem, ibidem, p. 94. 134idem, ibidem, p. 95. 135idem, ibidem, p. 96.

como fonte das nossas sensações. Daqui a negação da verdade objectiva feita pelos agnósticos, nota Lénine, e a tolerância para com doutrinas religiosas e místicas. Se os machistas, que são subjectivistas e agnósticos, não vêem nas sensações uma reprodução fiel da realidade objectiva, os materialistas vêem “o mundo mais rico, mais vivo e mais variado do que parece, porque cada passo do desenvolvimento da ciência, descobre nele novos aspectos. Para o materialista, as nossas sensações são imagens da única e última realidade objectiva – última não no sentido de que ela já é conhecida até ao fim, mas no sentido de que não existe nem pode existir outra senão ela”136, diz Lénine.