• Nenhum resultado encontrado

Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

3. DA DGE ÀS RUAS: A COLETA DE DADOS

3.3 ESTRUTURA E OPERAÇÃO LOGÍSTICA

3.3.2 Estrutura: Comissões Locais

Ao lançar mão do censo como instrumento de legibilidade de sua população, o Estado brasileiro, na ânsia de ver o todo de forma homogênea, precisou lidar com suas partes heterogêneas, ou seja, trabalhar bem as articulações entre Corte e províncias, e das províncias com as paróquias. A uniformidade no processo garantiria que, por mais heterogêneas que fossem as características da população, elas seriam

264 Alexandre Moreau de Jonés, 1778-1870. 265 DGE, 1873, p. 42-43.

266 Pierre-Armand Dufau, 1795-1877. 267

DGE, 1875, seção “Recenseamento da população do Império”, p. 1.

268 Adrião Pereira Forjaz de Sampaio, 1810-1874. Informações disponíveis em

coletadas de forma a se acomodar dentro das categorias propostas na lista de família. Ademais, o censo não poderia ser executado com muitas variações, devendo obedecer às formas do Regulamento: data de entrega das listas, formas de preenchimento, data-referência das informações, bem como as atribuições de cada agente no processo. E tal feito só foi possível pelo esforço físico e moral dos recenseadores que levaram o instrumento de coleta, a lista, a todos os domicílios. Mesmo sem muito conhecimento acerca do processo do censo de 1872, é fácil supor que nem todos os lares foram recenseados. No entanto, a própria noção de que se propôs tal meta e que se chegou muito perto desse objetivo já é em si impressionante, dadas as condições de acesso a tantos desses lares Brasil adentro.

Os agentes recenseadores eram indicados diretamente pela comissão paroquial e deveriam ter os atributos já citados como “inteligência”, conhecimento da sua jurisdição, além de, claro, saber ler e escrever corretamente.269 A comissão paroquial, por sua vez, era composta de cinco membros indicados pelo presidente da província. Não havia no Regulamento nenhuma disposição para que fossem autoridades civis, eclesiásticas ou militares, mas apenas que também fossem pessoas de boas habilidades para coordenar o recenseamento no nível local.

Em linhas gerais, segundo o artigo 9º do Regulamento, a comissão censitária seria responsável pela divisão da paróquia em seções, pela escolha dos agentes e prestação de assistência a eles, distribuição do material, pequenas correções, aplicação de multa aos reticentes (agentes e chefes de família), indicação dos agentes “dignos de louvor ou recompensa” por seus bons serviços no recenseamento e, ao final, a remessa de todo o material à presidência da província.270

Já que as comissões locais estavam autorizadas a preencher lacunas, corrigir erros e demandar informações de chefes de família e agentes recenseadores, teriam elas feito uso dessas atribuições com que frequência e com que intensidade? Sobre essa questão, Nelson Senra afirma que:

O difícil é dar a necessária uniformidade ao preenchimento do formulário, o que exige instruções visíveis e simples, de fácil leitura e apreensão. Em tempo de coleta, há ocorrências imprevisíveis, e, não raro, assustadoras, implicando inevitáveis improvisos, o que se

269 BRASIL. Decreto nº 4.856, 30/12/1871, Art. 9º, § 2º. 270 Ibidem, Art. 9º.

agrava quando diante de instruções flutuantes. De fato, se instruções insuficientes e desconexas fazem a coleta frágil, contudo, havê-las em mudança sobremodo a descontrola, implicando voltas atrás, revisitando o visitado, refazendo o feito, o que é muito difícil (se factível). Assim, é razoável sugerir que as instruções que nortearam o trabalho de coleta foram aquelas dispostas no formulário.271

Ao mesmo tempo em que reconhece o espaço para o “inevitável improviso” e a dificuldade em impor a uniformidade no preenchimento das listas, Senra também crê que a excessiva alteração de informações por parte dos agentes e comissões resultaria em implicações legais para eles próprios (visto que legalmente apenas o chefe da família seria responsável por sua veracidade).272 Dessa forma, embora pequenas retificações de nomes, números e somas possam ter sido operadas pelas comissões, é provável que as alterações não tenham passado muito daí. Essas “pequenas” retificações precisariam ser mais bem exploradas, pois sendo a maior parte dos chefes de família analfabetos, coube no fundo aos agentes recenseadores classificar a cor, a condição social, a profissão e tantos outros elementos para cada indivíduo recenseado.

De um grupo de correspondências obtidas junto ao Arquivo Público do Estado de Santa Catarina, entre comissões paroquiais e a presidência da província, a maior parte dessas comunicações relata agradecimentos ao presidente pela indicação à comissão paroquial, geralmente acompanhados de declarações de modéstia quanto às próprias habilidades, seguidas de promessas de empenho e esforço. Evidenciam as relações pessoais e o reconhecimento social que marcaram as nomeações dessas comissões. No entanto, uma dessas correspondências, traz algumas informações a mais, que utilizo como exemplo para se apontar algumas dinâmicas que envolveram as comissões censitárias.

Trata-se de uma resposta dada por membros da comissão censitária de São João Batista em 28 de maio de 1873 ao presidente da província em relação a uma petição de Bernardino Carlos Henrique da Costa. Segundo o que indica a carta, o citado Bernardino foi multado pela comissão, no uso de suas atribuições previstas pelo Regulamento (artigos 7º, 9º e 11 – citados na própria carta) porque este buscava

271 SENRA, 2006, p. 357. 272 Ibidem.

eximir-se de suas responsabilidades como agente recenseador. Ao que parece, Bernardino recorreu dessa decisão, o que motivou um pedido de explicação à comissão sobre os motivos dessa atitude, resultando na correspondência que agora analisamos. Responderam os membros da comissão que Bernardino “recusara aceitar esse encargo” na data de “1º de julho do ano pretérito”273

e como “chegava o dia designado pela Lei para o recenseamento; reunindo a mesma [comissão] no dia 28 [de julho], nomeou Outro Agente, que debaixo de copiosas chuvas, com grande custo e sacrifício, pôde cumprir o seu dever”.274

Quais os motivos que levaram Bernardino a recusar-se ao trabalho a ponto de ser substituído e multado? Diz a comissão que foram “frívolos pretextos” que o motivaram: pedia ele que “[…] a Comissão lhe garantisse a vida, e se lhe prestasse uma escolta a seu bel prazer, frases estas que não deixam de atacar a Comissão”.275

Justifica-se ainda:

Não estando na esfera dessa Comissão atribuições criminais, nem podendo garantir vidas, nem tendo às suas disposições força alguma armada, para prestar ao sup[licante] escoltas de pessoas de sua escolha, mormente o sup[licante] que é completamente recalcitrante e desobediente às autoridades locais.276

Por achar o pedido frívolo, fora do alcance dos poderes da comissão, por demandar uma substituição de emergência no quadro dos recenseadores e, por fim, por ser Bernardino “desobediente às autoridades locais” julgou a comissão por bem aplicar-lhe multa “na quantia de 50$000” entendendo-a como “único recurso que tem para fazer sentir aos que se desviam da Lei e desobedecem às Autoridades”.277

Por fim, há uma consideração moral que indica que o castigo também foi exemplar, disciplinar: “[…] e que se um, outro e outro se exemissem [sic] de aceitar esse passageiro encargo mui custoso seria conseguir-se a ultimação do recenseamento no devido tempo”.278

Bernardino da Costa teria usado o pedido de escolta como pretexto ou estava amedrontado com alguma intimidação (manifesta ou

273 APESC. Correspondências de correspondentes diversos para o governo da capitania / presidente da província. Período 1748-1889. Livro jan/dez 1873, fls. 44-44v.

274 Ibidem. 275 Ibidem. 276 Ibidem. 277 Ibidem. 278 Ibidem.

possível) da parte da população? O seu suposto corpo mole quanto às suas atribuições nesse “passageiro encargo” seriam suficientes para a aplicação da multa? Era de fato desobediente ou sofreu alguma perseguição da parte da comissão censitária paroquial? Essas questões levantam a dúvida quanto aos limites da atuação dessas pessoas: as comissões poderiam multar os agentes que se eximissem do serviço, mas, como separar motivações válidas dos “frívolos pretextos”? Como identificar se um agente, indicado para um trabalho não-remunerado e inédito, aplicando uma pesquisa cuja aceitação costumava ser frágil, estaria encontrando dificuldades e temores ou apenas sendo “recalcitrante”? Tudo bem que o encargo fosse “passageiro”, mas o substituto de Bernardino não deve ter percebido de forma tão suave, visto que só conseguiu terminar sua missão “debaixo de copiosas chuvas, com grande custo e sacrifício”.279

Mais uma vez, seria necessário aprofundar-se nessas correspondências, buscar mais exemplos como esse, que forneçam subsídios para compreender as relações desenvolvidas dentro das comissões e destas com os chefes de família, de um lado, e com as autoridades superiores, de outro. A operação censitária certamente se fez entre medos, pretextos, recusas e improvisos, afora os atrasos na chegada de materiais e a inacessibilidade de algumas populações, fatores explorados abaixo.