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Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

1. ESTADO E ESTADÍSTICA

1.1 O EMBATE PELA VISÃO

Não pretendo tomar a ideia de “moderno” ao pé da letra, como se fosse possível separar os Estados em modernos e pré-modernos de maneira óbvia. Penso nesse termo, antes, como uma aspiração ou projeto de vários Estados que a si mesmo atribuíam adjetivos que lhes serviriam para qualificarem-se como tais. Dessa forma, penso ser possível associar características a um modelo ou outro de Estado, sem que isso signifique a proposição de um esquema inflexível de interpretação. Para Scott, a diferenciação entre o Estado moderno (ou em modernização32 – o que traduz melhor a ideia de projeto em andamento) e o Estado pré-moderno que o precedia era justamente a visão:

O Estado pré-moderno era, em muitos aspectos cruciais, parcialmente cego; ele sabia demasiado pouco sobre seus súditos, sua riqueza, suas propriedades agrárias e suas produções, sua localização, sua própria identidade. Ele não possuía nada como um “mapa” detalhado de seu terreno e de sua população. Ele não possuía, na maior parte dos casos, uma medida, uma métrica, que lhe permitisse “traduzir” o que ele sabia em um padrão comum necessário para uma visão sinóptica.33

De um lado, portanto, o Estado pré-moderno tinha pouco conhecimento de fato acerca dos bens que estavam sob seu domínio, sabendo-o de maneira fracionada, indireta, irregular. Por outro lado, esse pouco sabido não era agregável a outros esparsos saberes, pois as várias pesquisas e inquéritos realizados raramente possuíam parâmetros e métodos equivalentes que permitissem a serialização dos dados. Não permitiam sequer a soma de simples informações pela falta de padrões de medida e critérios de pesquisa uniformes. A afirmação de Scott não é, portanto, de uma cegueira total desses Estados, mas parcial. Via-se um pouco, mas via-se de maneira fragmentada. A visão plena deveria produzir uma síntese, um resumo, uma simplificação que permitisse agregar informações elementares de realidades distintas e apresentá-las de maneira uniforme.

Segundo a historiadora estadunidense Andrea Rusnock, a consciência da necessidade de uma visão sinóptica desenvolveu-se na política em diálogo com as transformações científicas dos séculos XVI e XVII que criaram instrumentos de precisão, como o barômetro, por exemplo.34 Se a realidade física poderia ser apreendida com precisão, então por que não o Estado ter a mesma ambição quanto à sua população, seu território e seus recursos? No quesito de contagem populacional, a mesma historiadora aponta que todas as tentativas empreendidas na França pré-revolucionária foram parciais ou mesmo ineficazes. No período de Luís XIV, o marquês de Vauban35 desenvolveu um método de recenseamento local que poderia ser

33 SCOTT, 1998, p. 2, tradução minha.

34 RUSNOCK, Andrea. Quantification, Precision and Accuracy: Determination of Population

in the Ancien Régime. In: WISE, M. Norton. (org). The Values of Precision. Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 17.

aplicado universalmente em período posterior: não o foi. O mesmo Luís XIV propôs em seu Code Louis que as funções de produção e guarda de registros de população fossem paulatinamente transferidas da Igreja para o Estado, mas sua proposta caiu em desuso após sua morte. Outros estudiosos, admitindo a impossibilidade (ao menos na época) de tal transferência de funções, pretendiam tomar os dados eclesiásticos de empréstimo, como fez Joseph Marie Terray, controlador-geral na época de Luís XV.36 Sua proposta era analisar retrospectivamente os dados eclesiásticos de nascimentos, casamentos e óbitos para obter uma linha de tendência que pudesse ajudar na formação de estimativas para o futuro. Embora sua proposta tenha sido utilizada, nunca foi universalizada. Outros estudiosos, ainda, como La Michodière37 propuseram utilizar a quantidade de domicílios ou famílias e aplicar sobre elas um “multiplicador universal”, um algarismo genérico baseado na média estimada de pessoas por família. Oscilando entre 4, 5 ou 6 (pessoas por domicílio), esse número forneceria um algarismo aproximado, mas plausível, da população da França.38

Os exemplos aqui citados foram ordenados em ordem decrescente de visão por parte do Estado: o método de Vauban levaria a um censo universal, coletado pelos agentes do Estado no nível das ruas. A proposta de Terray contentava-se no empréstimo de dados eclesiásticos para compor, por meio deles, o número total da população. A ideia do multiplicador universal, por fim, é ainda mais redutiva, pois tinha por base o número de domicílios e dispensava registros individuais de população. De qualquer forma, todos os métodos, exceto o de um censo geral, tomariam de empréstimo dados eclesiásticos ou fiscais e todas as suas conclusões deveriam partir do pressuposto de que tais registros fossem confiáveis. Segundo Rusnock, o foco desses estudiosos estava mais no arquivo do que na planilha numérica: “La Michodière era o típico de muitos administradores desse período: sua preocupação com exatidão focava na manutenção de registros, não nos métodos de cálculo”39

O problema não residia apenas na confiabilidade dos párocos ou dos declarantes de impostos, mas em toda a estrutura burocrática francesa do Antigo Regime: cargos comprados, fontes de pagamento

36 Joseph Marie Terray (1715-1778) 37 Jean-Baptiste de la Michodière (1720-1797) 38 RUSNOCK, 1995, p. 28-31.

39

Ibidem, p. 27, tradução minha: “La Michodière was typical of many administrators of this period: his concern with accuracy focused on record-keeping, not on the methods of calculation.”

diversas, sobreposições de jurisdições e misturas de atribuições com o clero tornavam a delegação de funções nacionais como a coleta de dados um sério problema.40 Ao aceitar o empréstimo de dados eclesiásticos, o Estado reconhecia a primazia da Igreja na administração de dados de população, mas não resolvia a questão.

O ponto desenvolvido por Rusnock é que há um espaço de tempo entre o despertar de uma consciência a favor da precisão e o contexto em que essa consciência passa a render ações concretas por parte do Estado. Segundo Ken Alder, apenas algumas medidas encontraram uma unificação mais sensível antes da Revolução, principalmente as relacionadas à defesa nacional (como a administração de fortalezas) e a alguma referência comercial (como a utilização de medidas parisienses como comparativas às medidas locais nas maiores cidades).41 No entanto, da mesma forma que o censo, outras medidas de impacto na visão do Estado, embora tenham sido ensaiadas no período, não conseguiram efetivar-se e regularizar-se.

Se o Estado era parcialmente cego, isso não significa que as pessoas necessariamente o fossem. Elas possuíam suas formas próprias de contar, medir, negociar, gerenciar seus bens e essas formas variavam de tempo a tempo, de lugar a lugar. A chuva poderia ser quantificada em “suficiente” ou “insuficiente” para um tipo específico de lavoura, ao invés de seu volume expresso em alguma unidade numérica. A terra poderia ser medida em quantidade de dias de trabalho de uma pessoa ou animal, ao invés de sua área. Da mesma forma, poderia ser adjetivada como “boa” ou “ruim” para determinada cultura ou ter sua fertilidade medida em quantidade de vacas que conseguiam pastar nelas.42 Esses exemplos implicam que, como afirma Scott, “as medidas são decididamente locais, aplicadas, contextuais e historicamente específicas. O que supre as necessidades de subsistência de uma família pode não suprir as necessidades de subsistência de outra”.43

Mesmo quando produtos eram medidos em valores numéricos, os padrões eram variados: Alder aponta que vinho, azeite, sal, feno, madeira e carvão encontravam unidades diferentes entre si, entre diferentes regiões e até

40 Ibidem, p. 23.

41 ALDER, Ken. A Revolution to Measure: The political economy of the metric system in

France. In: WISE, M. Norton. (org). The Values of Precision. Princeton: Princeton University Press, 1995, p. 47.

42 SCOTT, 1998, p. 26-27. 43

Ibidem, p. 27, tradução minha: “The measurements are decidedly local, interested,

contextual, and historically specific. What meets the subsistence needs of one family may not

mesmo entre uma vila e outra.44 Tratavam-se de medidas associadas ao cotidiano e às necessidades práticas e funcionavam perfeitamente bem dentro de um grupo em particular, mas não serviam para uma visão sinóptica e unificada do ponto de vista estatal.

A diversidade de pesos e medidas não refletia apenas a diversidade de condições de vida e de produção econômica. Não eram, portanto, apenas resultados naturais das diferenças regionais no produzir, trocar, medir, viver. Essa diversidade estava também atrelada e sujeita aos poderes locais (principalmente grandes senhores de terra) e refletia a correlação entre esses poderes e suas formas de governar certa região ou grupo. Padrões locais, portanto, não eram apenas resultado das vivências das pessoas que os utilizavam, mas símbolos de poder e das formas de governar dos grupos detentores de poder sendo muitas vezes administrados mais pelo costume do que por alguma regulamentação técnica:

Todo ato de medição era um ato marcado pelo jogo de relações de poder. Para entender práticas de medição na Europa pré-moderna, como Kula demonstra, é preciso relacioná-las com os interesses conflitantes dos principais grupos: aristocratas, clero, comerciantes, artesãos e servos.45

Witold Kula, economista polonês citado por Scott, teve sua obra destacada pelos estudos de relações econômicas e sociais de poder do Antigo Regime, incluindo em suas análises as formas de medição como componentes importantes do jogo de poder. Criados, administrados e gerenciados localmente, esses padrões locais não somente eram diversos, como também baseados em necessidades cotidianas e arraigados em costumes consolidados. Como prerrogativa dos senhores locais, a criação de leis e padrões de medida chocou-se em vários momentos com as ambições do Estado unificado. Esse Estado, que Scott chama de “pré-moderno” e que os autores citados chamaram de “pré- revolucionário” (para o caso francês) encontrava-se numa transição entre o despertar de uma consciência a favor da unificação – consciência esta compartilhada por alguns intelectuais e até comerciantes e

44 ALDER, 1995, p. 43.

45 SCOTT, 1998, p. 27, tradução minha: “Every act of measurement was an act marked by the

play of power relations. To understand measurement practices in early modern Europe, as Kula demonstrates, one must relate them to the contending interests of the major estates: aristocrats, clergy, merchants, artisans and serfs.”

aristocratas nas maiores cidades46 – e a manutenção de características feudais, como o profundo vínculo com a terra, os direitos consuetudinários, a força das relações familiares, as atribuições mistas do clero dentro da burocracia secular, e a esparsa unidade territorial.

Nesse contexto, é óbvio que o Estado tinha seus meios de administração, mas eram bastante indiretos. Segundo Scott, o caso da França mostra que o conhecimento sobre população e produção econômica era obtido por meio da análise dos valores arrecadados em impostos sobre produtos, mercadorias, pedágios e outras trocas sem investigar diretamente a fonte produtora da riqueza.47 Dessa maneira, o Estado recebia seus tributos sem ter muito embasamento sobre as condições de sua produção e a realidade de seus habitantes. Para além da taxação indireta, os conhecimentos do Estado na resposta a guerras, fomes e outras catástrofes deixava a desejar: “Obrigado a abrir caminho na base de informação vaga, rumor e relatos locais cheios de interesse pessoal, o Estado frequentemente respondia atrasada e inapropriadamente”.48

É importante lembrar que a carência de informações não se resolvia pela simples soma de dados provenientes das várias regiões, visto que seus padrões eram amplamente (quando não totalmente) discrepantes. Registros e medidas feitos em locais diferentes, épocas diferentes e com intenções e métodos diferentes não poderiam ser agregados: “eles definitivamente não se prestariam à agregação em uma série estatística única que permitiria aos agentes do Estado fazer comparações significativas”.49

Além de serem baseados em fenômenos cotidianos e estarem sob o controle dos poderes locais, existe uma terceira característica dos padrões de contagem e medida que acentuava a dificuldade em unificá- los: a diversidade de condições não era apenas característica desse sistema, mas era uma das suas mais eficazes formas de defesa. Ao falar uma língua parcial ou totalmente distinta daquela falada na capital, por exemplo, certa vila ou região tinha um trunfo contra a centralização. Uma cidade com arruamento confuso era apenas confusa (estrategicamente) aos que vinham de fora dela, mas protegia seus habitantes. A aparente confusão de pesos, medidas, desenhos urbanos e

46 ALDER, 1995, p. 47. 47 SCOTT, 1998, p. 23.

48 Ibidem, p. 29, tradução minha: “Obliged to grope its way on the basis of sketchy

information, rumor, and self-interested local reports, the state often responded belatedly and inappropriately.”

49 Ibidem, p. 27, tradução minha: “They definitely would not lend themselves to aggregation

mesmo das formas de nomear as pessoas resultava na autonomia dos grupos que os praticavam.50 Assim, o caos ilegível ao Estado que buscava centralizar seu conhecimento era uma das ferramentas de preservação dos sistemas locais de pesar, medir, negociar e gerenciar as riquezas.

Nota-se que existe um embate, que se desenrola em vários países, do século XVI em diante, entre a preservação de traços locais e costumeiros e necessidades maiores que surgem à medida que o comércio se intensifica e que Estados veem a necessidade de unificar certos aspectos de sua existência para garantir defesa, produção econômica e taxação. Para não tratar esse Estado como um ser personificado, faz-se necessário perceber que, embora houvesse grupos poderosos que buscavam a preservação de poderes e saberes locais, havia outros (como os intelectuais e grandes comerciantes) que viam oportunidades nas unificações e na construção de um Estado que tivesse real visão de seus domínios.