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Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

2. PRODUÇÃO ESTATÍSTICA NO BRASIL ATÉ 1872

2.3 O “RECENSEAMENTO GERAL DO IMPÉRIO DO BRASIL”

O início da década de 1870 marca um novo momento de tentativas e realizações na área estatística. Ao lado do ensaio já citado de Joaquim Norberto Sousa e Silva, encontramos o recenseamento da Corte, em abril de 1870, presidido por Jerônimo Martiniano Figueira de Melo. Em meados daquele ano, ocorrem discussões parlamentares que culminam, em setembro, na promulgação da lei nº 1829, que estabelecia algumas diretrizes fundamentais: que o Brasil teria censos decenais com a referência em 30 de dezembro de 1870, que o governo se comprometia a organizar a estatística do estado civil da população, que para isso criava-se uma Diretoria Geral de Estatística, responsável por organizar tais trabalhos.185

A DGE iniciou suas atividades em março de 1871 e, no final daquele ano, o decreto nº 4856 (de 30 de dezembro) regulamentou a execução do primeiro recenseamento geral do Império do Brasil para agosto do ano seguinte. No ano do censo, também se iniciou, de modo paralelo, a matrícula dos escravos determinada pela Lei do Ventre Livre

183

RMNI, 1870, p. 26.

184 Ibidem, p. 25.

e, na mesma época, ocorria Congresso Internacional de Estatística em São Petersburgo, no qual o Brasil participou pela primeira vez. O ano de 1872 também foi aquele que, segundo a Lei nº 1.157 (de junho de 1862) encerrava-se o prazo de transição para o sistema métrico decimal,186 cujos desdobramentos se sentem nos anos seguintes.187

Essa enumeração indica um novo momento de concentração de medidas importantes, de organização administrativa em que o Estado consegue desvencilhar-se dos obstáculos e estabelecer visão para o Império, especialmente o censo e a matrícula. Esses dois marcos não se podem compreender isolados, mas dentro do contexto de mudança que eles carregavam: o censo estava embutido num programa estatístico de longo prazo que deveria desenrolar-se nas décadas seguintes enquanto a matrícula estava relacionada com a organização da propriedade escrava e uma lenta e gradual abolição – que também deveria prolongar-se pelas próximas décadas. A associação entre censo e matrícula, dado o seu paralelismo, é sempre oportuna, e terá lugar nos próximos capítulos.

Quanto ao censo especificamente, ele foi regulamentado pelo já citado decreto nº 4856 assinado pela “Princesa Imperial Regente” e pelo Ministro e secretário dos Negócios do Império, João Alfredo Correa de Oliveira. Com 19 artigos, ele definia a realização do levantamento para 1º de agosto de 1872. À semelhança da proposta de vinte anos antes, as famílias seriam as unidades básicas e seriam recenseadas por meio de fichas próprias (ver Anexo 2) desenvolvidas para a contagem. Caberia aos chefes de família preencher as informações e devolvê-las aos agentes recenseadores num prazo de quinze dias a partir de sua entrega. Nesse caso, utilizou-se o termo família ao invés de fogo e o artigo 3º do regulamento preocupou-se em definir o que seria entendido por “família” naquela contagem:

§ 1º. Constitui uma família, para os efeitos do recenseamento (art. 6º, 1ª parte e art. 7º), a pessoa livre que vive só e sobre si, em uma habitação ou parte de habitação, ou um certo número de pessoas que, em razão de relações de parentesco, de subordinação ou de simples dependência, vivem em uma habitação ou parte de habitação, sob o poder, a direção ou a proteção de um chefe,

186

BRASIL. Lei n.º 1157 de 26/06/1862, art. 2º, parágrafo 1º.

187 Dentre esses desdobramentos, a revolta do Quebra-Quilos, ocorrida no nordeste entre 1874

dono ou locatário da habitação e com economia comum.188

Para os legisladores do censo de 1872, a família envolvia coabitação e dependência de uma “economia comum”. Nesse agrupamento estavam inseridos todo tipo de parentesco, criadagem e escravos, todos orbitando em torno do chefe da família “ou de quem fizer suas vezes”. Apesar da escolha da palavra “família”, a expressão “lista de fogos” aparece algumas vezes no regulamento, demonstrando certa fluidez desses conceitos.

As pessoas listadas (nesse caso, escravos também) deveriam ter os seguintes dados preenchidos: nome, cor, idade, estado civil, lugar do nascimento, nacionalidade, profissão, religião, instrução e condições especiais/observações.189 Pessoas com domicílio especial seriam recenseadas à parte: internos de colégios e conventos, presidiários, hospitalizados, militares aquartelados além de órfãos e mendigos em seus respectivos abrigos. Seus nomes seriam listados pelos diretores, comandantes e superiores de cada uma das respectivas instituições e possuiriam igual procedimento e prazo ao dos chefes de família.190

Para os que se recusassem a obedecer às ordens do regulamento, foi instituída multa entre 20$ e 100$ de acordo com o grau da infração. A autuação seria feita pelos agentes censitários e a aplicação da multa pelos fiscais da Fazenda em cada jurisdição. Essa mesma multa seria aplicável às autoridades civis, militares e eclesiásticas que porventura não colaborassem na prestação de dados aos agentes.191

O regulamento deixava claro que as seguintes atitudes seriam consideradas “crime de desobediência”: recusar-se a preencher ou não entregar no prazo a lista de família e errar ou alterar informações deliberadamente. Mas havia multas também para os agentes censitários: os que se recusassem a servir nessa função poderiam ter que desembolsar 200$ para os cofres públicos.192 Se cometessem enganos, inexatidões ou descumprissem os prazos, as multas seriam as mesmas dos chefes de família.193

Para os bons recenseadores, no entanto, propunham-se recompensas. A comissão censitária municipal deveria listar e enviar ao

188 BRASIL. Decreto nº 4856, art. 3º. 189 Ibidem, art. 3º.

190 Ibidem, arts. 4º ao 6º. 191

Ibidem, art. 16.

192 Ibidem, art. 8º, §1º, inciso 1º. 193 Ibidem, art. 11.

presidente da Província e este, ao Ministro do Império, a lista de todas as pessoas cujos “bons serviços” as tivessem tornado “dignas de remuneração honorífica”.194 A natureza dos bons serviços não fica clara para quem lê o regulamento e abriu grande margem de interpretação nos anos seguintes, inclusive porque, dado o ineditismo do trabalho, a dimensão territorial brasileira e os recursos disponíveis, muitos agentes sentiram-se “dignos” de uma recompensa financeira.

Os agentes locais respondiam a uma comissão paroquial composta por cinco indivíduos responsáveis por sua fiscalização e correção. Essas pessoas “além de saberem ler e escrever”, deveriam ter os seguintes atributos morais: “sejam inteligentes, ativas, probas e muito conhecedoras da paróquia ou das seções para que forem nomeadas”.195

A divisão da paróquia em seções não obedecia (e não haveria como) a um geoprocessamento anterior, mas era critério da comissão local. O trabalho de cada comissão paroquial deveria ser fiscalizado pelo presidente da província (assumindo uma função de “diretor provincial” do censo) auxiliado por “escriturários” designados de outras repartições públicas para aquela finalidade.

A função da província era reunir os “elementos originais” do recenseamento (fichas preenchidas, cadernetas dos recenseadores, listas das famílias) e enviá-las à Corte para que a apuração dos dados se desse de forma centralizada nos escritórios da DGE.196 Assim, finalizadas todas as etapas, o Brasil teria um mapa nacional do Censo e volumes publicados sob a insígnia do Ministério do Império via Diretoria de Estatística.

Salvo imperfeições pontuais, o censo transcorreu de maneira satisfatória. Seu material foi coletado, enviado à Corte e, em 1875, publicava-se o “algarismo exato da população do país”: o Brasil havia recenseado 9.930.478 habitantes. Enquanto a estatística deu este serviço por encerrado, é aqui que começam as problematizações históricas acerca desse “algarismo”, não pelo valor numérico, mas pelo que ele representa enquanto visão para o Estado brasileiro. Os próximos capítulos são dedicados a destrinchar a história dessa produção de informação estatística operada pelo Estado desde a legislação regulamentadora até a publicação dos dados finais, passando pelas etapas de distribuição de material, coleta de dados, recolhimento do material preenchido, o processamento do material e suas conclusões.

194

Ibidem, art. 15.

195 Ibidem, art. 9º. 196 Ibidem, art. 13, 14.

Dentro desse processo há ainda espaço para pensar nas dinâmicas locais de coleta, as relações políticas entre as comissões locais e suas superiores, os métodos de trabalho da DGE, suas limitações, escolhas e operações desenvolvidas para se chegar ao resultado final.