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Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

3. DA DGE ÀS RUAS: A COLETA DE DADOS

3.2 AS LISTAS DE FAMÍLIA

3.2.3 Um aparte: A questão nacional, os africanos, o censo e a

A questão relativa aos africanos e aos escravos em geral abre espaço para questão da matrícula e das suas possíveis interferências no censo. Como ambas as coletas foram iniciadas paralelamente em 1872, que efeitos podem ter produzido mutuamente? Primeiramente, vejamos as diferenças nos dois processos, a começar pelas abordagens diferentes: enquanto o recenseamento trouxe agentes às portas de cada domicílio, a matrícula exigiu o deslocamento dos senhores às coletorias. A empreitada censitária foi coordenada pela DGE (vinculada ao Ministério do Império) e a matrícula foi coordenada pelo Ministério da Agricultura. O primeiro inquérito tinha funções estatísticas puras, sem fins práticos imediatos, de acordo com as apologias já citadas a respeito da “imparcialidade” do número, ao passo que o segundo elaborava um registro legitimador da posse escrava, envolvendo questões judiciárias e multas caso não fosse cumprido, além de regulamentar as formas de transmissão e comercialização dos cativos.

Em termos de “visão” do Estado, censo e matrícula representam grandes avanços: o censo foi mais abrangente, mais detalhado, porém, de aplicação mais abstrata. A matrícula foi menos abrangente (no sentido populacional, não geográfico), envolveu mais o esforço dos senhores do que do Estado, mas tinha finalidades administrativas muito mais evidentes: representava um inventário atualizável dos escravos e de seus respectivos proprietários. Ao mesmo tempo em que a Lei do Ventre Livre tornou certo o fim da escravidão, também gerou, por meio da matrícula, a sobrevida da propriedade escrava, pois acabou por legalizar

a propriedade sobre todos os cativos que fossem matriculados, não interessando se a sua procedência fosse ilegal. Essa ferramenta tornou- se, segundo Mamigonian, um dos últimos recursos para garantir sua propriedade sobre africanos ilegalmente importados ou seus descendentes:

O receio da difusão deste argumento [da liberdade para os africanos ilegalmente escravizados] se materializava na defesa incondicional que os senhores e vários jurisconsultos faziam da propriedade sobre os escravos e a prova está no consenso formado em torno da matrícula, que finalmente lhes serviria de prova irrefutável da legalização da propriedade adquirida por contrabando, reconhecidamente instável até então.236

De um lado, a consciência política de muitos desses indivíduos escravizados lhes compeliu a insistir em sua liberdade, demandando-a judicialmente inclusive; de outro, a consciência dos senhores – e dos dirigentes do Estado – parece ter ficado satisfeita com a anulação de facto, embora não de jure, das distinções entre escravos africanos legais e ilegais (a maioria).

E isso é importante frisar: que a matrícula legitimou a posse de uma forma, mas não aboliu a lei de 1831, deixando margem para várias interpretações legais acerca do estatuto atribuído aos africanos e seus descendentes. Embora muitos senhores se apegassem a ela como palavra definitiva, a conscientização acerca da presumida liberdade a partir da legislação de 1831 foi crescente na década de 1870. Logo, é evidente que o lugar dos africanos e descendentes (maioria da população escrava), não era consensual e, dependendo do ponto de vista adotado, a matrícula não era suficiente para anular o crime da escravidão ilegal.

Não sendo óbvio o lugar desse grande contingente populacional na própria vida social, seria mais óbvio nos inquéritos do Estado? Proprietários e governantes estariam dispostos a registrar um africano ilegal no censo ou na matrícula? Em conhecido artigo, Robert Slenes comparou censo e matrícula, em busca de sub-registros, e concluiu que, de modo geral, a matrícula representou a população escrava com mais sinceridade, provavelmente por causa de seus efeitos práticos imediatos,

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MAMIGONIAN, Beatriz G. O tráfico ilegal e a instabilidade da propriedade escrava no século XIX. In: Hermes & Clio – Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica, Seminário, 2009, p. 17, grifos meus.

ou seja, a interferência direta sobre a propriedade.237 Se de um lado se supunha que os senhores pudessem aumentar a idade de seus cativos para mais de quarenta anos para declarar que tivessem entrado no país antes de 1831, por outro lado a antecipação de uma lei de sexagenários teria demovido pelo menos uma parte deles de tal prática.

Analisando o recenseamento do Município Neutro realizado em 1870, ainda antes da aprovação da Lei do Ventre Livre, é possível detectar práticas variadas.238 Dos 93 escravos africanos listados nas listas de família de alguns quarteirões de São Cristóvão, 14 deles são nomeados abaixo de 39 anos sem maiores constrangimentos (idade- limite para a ilegalidade naquele ano em relação a 1831). É assim que encontramos Maria, Cabinda, solteira, de 30 anos, de propriedade de dona Maria Agostinha do Amaral, 60 anos, brasileira e viúva, moradora da casa D da Rua da Feira.239 Da mesma forma encontramos João, “da nação Congo”, 38 anos, cozinheiro na casa de Francisco Ferreira Pitança, carpinteiro português de 56 anos, casado, residente também na Rua da Feira.240 E assim ainda nos deparamos com Ivo, mina de 32 anos;241 Inácio, 35 anos, de nação242 ou Lucrécia, 35 anos, Benguela,243 dentre outros. Em nenhum dos casos há qualquer menção ou justificativa sobre sua possível ilegalidade.

Outra prática, no entanto, envolve o arredondamento de idades. Dos 93 escravos africanos encontrados naqueles quarteirões, 22 deles, pouco mais de um quinto, foi registrado com exatos “40 anos” enquanto que a faixa entre 40 e 50 anos é de 56 pessoas, quase 60% da amostra. Quarenta anos completos significava um ano a mais que o suficiente, em 1870, para eximir os proprietários de qualquer complicação ou constrangimento. Apesar de reconhecer que a prática de arredondamentos era comum e que às vésperas da lei de 1831 um grande contingente de escravos foi comprado, a generosa quantidade de pessoas inseridas na faixa dos quarenta anos parece ao menos indicar a possibilidade de que alguns desses arredondamentos fossem mais do que

237 SLENES, Robert W. “O que Rui Barbosa não Queimou: Novas fontes para o estudo da

escravidão no século XIX.” Estudos Econômicos, vol. 13, nº 1, 1983.

238 BISSIGO, 2010, p. 68-75.

239 IBGE, Parochia de São Christovão do Municipio da Corte. Rio de Janeiro: IBGE-BICEN,

s.d., cópia digitalizada, ficha 0014. Trata-se de um conjunto de fichas remanescentes do recenseamento da Corte, de 1870. 240 Ibidem, lista 0049. 241 Ibidem, lista 0130. 242 Ibidem, lista 0254. 243 Ibidem, lista 0143.

descuidos e representassem mais do que a geração que foi comprada no temor do fechamento do tráfico no final da década de 1820.

Junto às conclusões de Slenes, esses indícios parecem razoáveis para deduzir que os senhores possam ter declarado sua propriedade ilegal com relativa tranquilidade no censo de 1872. Com a Lei do Ventre Livre aprovada, a simultaneidade da matrícula, a possibilidade de se arredondar as idades e o fato de haver menos africanos ilegais vivos (embora milhares de descendentes, o que não vinha ao caso), é muito possível que, se tivéssemos acesso às listas originais do censo, encontraríamos muitos africanos ilegais, ora explícitos, ora um pouco camuflados pela idade. Quanto aos seus descendentes, seriam todos “brasileiros”, sem maiores aprofundamentos.244

Pode-se concluir que, de modo geral, censo e matrícula tiveram pouca influência mútua dadas as diferenças de objetivo e metodologia e que, em ambos os casos, o registro de africanos ilegais foi executado sem grandes constrangimentos por parte dos senhores. E o Estado por sua vez, por meio da DGE, transformaria esses ilegais em “estrangeiros” sem permitir o cruzamento dessa informação com suas idades.