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Baseada nas descrições do

Relatório de 1876 Províncias que “apresentaram maior proporção de escravos” Províncias que “mais aproximavam-se da média” Províncias com proporção de escravos “abaixo da média”

“Províncias onde o elemento servil menos avultava”

Fonte: DGE, 1877, p. 8-9, com dados baseados na apuração do censo de 1872.

Essa preocupação com a proporção sugere a consciência da DGE quanto à perspectiva do fim da escravidão após 1871, e lida com essa “condição social” como algo em extinção, o que se reforça pela fala do diretor interino José Maria do Couto, no relatório de 1875, quando reforça a necessidade de conhecer-se a “diminuição anual” do número de escravos (por meio de atualizações da matrícula) para “conseguir-se aproximadamente calcular o número de anos precisos para a completa extinção dos escravos no Império”.332

No relatório de 1874, o diretor geral Manoel Francisco Correia também comentou a importância e necessidade da averiguação da condição social, considerando-a uma característica particular brasileira:

Que na estatística de outros países, onde não existem escravos, não era necessária discriminação entre a pessoa livre e escrava; mas que no Brasil era de suma vantagem fazê-la em mapas separados, para mais facilmente se poder apreciar no próximo recenseamento a proporção em que tiver decrescido a população escrava.333

332 DGE, 1875, seção “Escravos existentes no Império”, p. 2. 333 DGE, 1874, p. 52.

Mais uma vez se confirma a preocupação do decréscimo da população escrava e sua observação pela estatística (neste caso, o diretor sugere que a comparação dar-se-ia com um segundo recenseamento). O fato de a escravidão ser considerada declinante e requerer “mapas separados” para melhor acompanhamento de sua extinção criou um paradoxo, pois a ânsia de eliminar essa divisão acabou reforçando-a: ao mesmo tempo em que a escravidão foi tratada com menos atenção, dando ênfase ao corpo social livre, a divisão entre os livres e não-livres tornou-se mais vital, mais crucial, mais enfatizada. Em outras contagens, a existência dos libertos indicava gradação, trânsito, transformação. Já no censo de 1872, a estatística operada pela DGE tornou essa divisão dual, binária, radicalmente oposta e irreconciliável: ou se era livre, ou se era escravo, e a segunda dessas duas condições estava em extinção.

Gráfico 1: População quanto às condições sociais, 1872.

Fonte: DGE, 1877, p. 8.

A diluição dos libertos dentro dos “livres” reduziu o impacto da escravidão sobre o número final, deixando o Brasil com “apenas” 15% de pessoas cativas e catalisando a percepção de que ela era um fenômeno residual. Vimos também que a lista de família era absolutamente confusa quanto ao lugar da condição social. Talvez esse fator tenha contribuído para a dualização da condição social, atribuindo- se o status de livre a todos que não foram indicados por “escravos” nas listas. De qualquer forma, a confusão do formulário não pode ser encarada como acidente, já que passou por planejamento e elaboração. Se era tão prioritário à DGE separar os livres e os libertos, por que não se criou uma coluna específica para condição social com uma instrução de preenchimento do tipo “declara-se se a pessoa é…”?

Resultante de um formulário de coleta ruim ou de opções mais deliberadas, a condição social polarizada em livres e escravos resultou em 85% de liberdade em contraste a 15% de escravidão, num processo que ao mesmo tempo simplificou essa condição, mas reforçou as diferenças entre elas. Nesse movimento, o trânsito entre cativeiro e liberdade perdeu seu degrau intermediário, o que tornou mais brusca a diferença entre um estado e outro, e mais preponderante a condição dos livres em detrimento da dos escravos. No entanto, as listas de família brutas, não tabuladas, mostram uma outra composição social. Usando, a título de exemplo e com alguma liberdade, as famílias Galvão e Gravatá para analisar a condição social numa abordagem que levasse em conta a presença dos libertos, que diferenças se evidenciam em relação às mesmas famílias, em comparação à metodologia utilizada pela DGE?

Na família de Rafael Galvão, das 17 pessoas listadas, três foram identificados como escravas, três como libertas e as demais 11, presumidas livres.334 No censo, as livres e libertas foram somadas, totalizando 14 indivíduos “livres”, em oposição a apenas 3 “escravos” quando, na verdade, nessa residência, o dobro desse número de pessoas teve ao menos alguma vinculação com o cativeiro, ainda que, na melhor das hipóteses, tivessem sido alforriados na pia. Essa pequena população, falando de grosso modo, poderia ser representada de duas formas: uma incluindo os libertos (categoria tradicionalmente presente em outras tabelas demográficas), e outra sem eles. No primeiro caso, teríamos 64% livres, 18% libertos e 18% escravos. Na versão mais simplificada, similar à que foi feita no censo, temos 82% livres e 18% escravos, ampliando o predomínio da liberdade sobre o da escravidão.

Na família de Antônio Gravatá, encontramos dois livres, cinco escravos, quatro libertos (condicionais) e mais três pessoas cuja condição era ou ilegível, ou difícil de deduzir.335 Embora essa lista não tenha sido apurada no recenseamento, ela é válida para o exercício proposto. Os dois indivíduos cuja condição está ilegível por causa das condições da ficha serão removidos da análise. O indivíduo cuja condição é difícil de deduzir é o caso do menino Teodorico, já citado, sobre o qual não podemos saber como a DGE o consideraria: se pela ausência do “idem” relacionado à indicação de “escravo”, ele seria livre, ou, se, ao contrário, pela continuidade da lista e por ser “filho da escrava Flora” ele seria automaticamente escravo. Não sabemos se a resposta seria óbvia aos apuradores do censo, nem se elegeram algum critério

334 BNRJ, [Lista de família – Rafael Arcanjo Galvão] 335 IBGE, [Lista de família – Antônio Gonçalves Gravatá]

para esses casos, mas é fato que há indivíduos sobre os quais não se declarou explicitamente sua condição. E, nesse caso e para os fins do exercício que proponho, esse indivíduo também será removido da análise.

Restam, portanto, 11 pessoas no domicílio de Antônio Gravatá com identificação clara de condição social – ainda que a dos livres se dê por exclusão das demais. Segundo uma divisão tripartite da sociedade, eles seriam 18% livres, 36% libertos e 46% escravos. Segundo a divisão dual, utilizada pelo censo, tornam-se 54% livres e 46% escravos, mais uma vez, elevando drasticamente a proporção dos livres para mais da metade dessa “população”.

Está certo que nem o lar de Antônio Gravatá, de Salvador, nem o lar de Rafael Galvão, da Corte, podem ser tomados como modelos das proporções nacionais na questão da condição social. No entanto, enquanto amostras de domicílios reais, indicam como a radical simplificação da população em duas condições sociais causou efeitos notáveis nas proporções e direcionou o olhar do leitor das tabelas para uma sobrevalorização dos livres e para uma menor presença da escravidão. Ao optarmos por “ver” os libertos, ainda que com as dificuldades de identificação na lista de família, enxergamos uma gradação, uma escala de liberdade que certamente resultava em efeitos práticos para as pessoas nelas inseridas. Ao optar por “ver” apenas livres e escravos, a DGE forneceu ao Estado uma imagem excessivamente simplificada, desinteressada nos pormenores da escravidão, bem como nos pormenores da liberdade, condição esta vivida das maneiras mais variadas, sob os mais diferentes arranjos jurídicos, de trabalho e de vivências. Exemplo disso é justamente o fato de que os quatro libertos de Antônio Gravatá, vinculados à condição de servir ao antigo senhor até que ele falecesse, seriam considerados livres, caso essa lista tivesse sido apurada.336 No entanto, tantas outras fichas o foram, com pessoas em situações similares a eles que foram ascendidas a “livres” ainda que com obrigações legais e morais que remetiam muito mais ao cativeiro. Assim se sobrevalorizou e generalizou a liberdade em detrimento da escravidão.

A Diretoria Geral de Estatística, portanto, prevendo o declínio da condição social escrava, acabou por, paradoxalmente, reforçá-la e consolidá-la nas tabelas do censo, ao optar por páginas separadas para expor seus dados, ao ignorar a camada de libertos que reforçariam a marca da escravidão na vida social brasileira e ao escolher abordar

menos dados relativos aos escravos do que em relação aos livres, como veremos nas próximas categorias das Considerações Estatísticas.

4.3.2 População por sexos

Segunda classificação explorada no relatório, a divisão da população por sexos reflete também uma preocupação com as proporções: “Em 8.419.672 habitantes livres, encontram-se no Império do Brasil 4.318.699 varões e 4.100.973 mulheres. O número dos varões excede o das mulheres em proporção considerável, de 51,29 para 48,71”.337

O diretor Correia, provável autor do relatório, apontou que essa proporção excedia a de países como Bélgica, Itália, França e Inglaterra, e especulou: “creio que nenhum outro país oferece relativamente uma população masculina superior à do Brasil”.338

Mapa 3: Proporção de sexo, 1872.