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Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

3. DA DGE ÀS RUAS: A COLETA DE DADOS

3.3 ESTRUTURA E OPERAÇÃO LOGÍSTICA

3.3.3 Logística: Simultaneidade, atrasos e adiantamentos

No relatório da DGE datado de maio de 1872, assinado pelo interino Joaquim de Medeiros e Albuquerque, uma seção intitulada Preparos para o primeiro recenseamento geral da população do Império dava conta da operação logística desencadeada para que o censo ocorresse simultaneamente (e com os devidos materiais) em 1º de agosto daquele ano: “Com a devida antecedência mandou-se preparar 3.000.000 de listas de família e 25.000 cadernetas para os agentes recenseadores, as quais ficaram prontas no mês de fevereiro próximo passado”.280

A base numérica para essa divisão resultou da análise das “últimas qualificações de votantes” e também “pela força da Guarda

279 Ibidem.

Nacional” sendo acrescidos ao número estimado mais cadernetas e listas “que cobrisse[m] quaisquer erros de cálculo”.281

Várias companhias foram acionadas para que as listas chegassem aos seus destinos: companhias de navegação subvencionadas para as províncias “marítimas” (e as províncias “centrais” acessíveis pela navegação – Amazonas e Mato Grosso), a Estrada de Ferro Pedro II e a companhia da estrada de rodagem União e Indústria, para Minas Gerais. Até a data daquele relatório, as companhias de navegação ainda não haviam recebido a ordem de serviço e o diretor, preocupado com os prazos, pediu para “ser esta repartição autorizada a contratar diretamente o transporte de volumes”.282

Muitos relatórios provinciais não registraram atrasos nessa entrega. Todavia, a província do Rio Grande do Sul, por exemplo, notificou alguns atrasos. O relatório assinado em 11 de julho de 1872 alertou: “As listas de família chegaram tão tarde, que julgo pouco provável que elas possam alcançar as paróquias mais longínquas em tempo de serem utilizadas para o dia 1º de agosto, marcado para o recenseamento geral”.283

Em 1º de março do ano seguinte, outro relatório confirmou esses problemas:

O mau estado e imperfeição das vias de comunicação desta província impediram que as listas de família fossem entregues às respectivas comissões com a desejável prontidão, e foram causa de ser retardado o recenseamento em diversas paróquias, acrescentando que muitas daquelas listas foram extraviadas ou inutilizadas.284

O fenômeno repetiu-se pontualmente em todo o Brasil: “No dia 1º de agosto efetuou-se em todo o Império o recenseamento da população, à exceção somente das províncias de Goiás e Mato Grosso e de algumas paróquias de outras, por circunstâncias extraordinárias e imprevistas que ocorreram”.285 A função dessa data, 1º de agosto, era garantir a simultaneidade da coleta. Não representava a data de preenchimento das fichas, mas a data em relação a qual deveriam se referir as informações da lista. Por isso, os atrasos na entrega de 281 Ibidem. 282 Ibidem, p. 26. 283 RPP-RS, 1872, p. 18. 284 RPP-RS, 1873, p. 35. 285 RMNI, 1872(b), p. 24.

material, ou o preenchimento das listas de família com informações anteriores ou posteriores à data-referência causavam a perda do sentido de simultaneidade, aumentando a probabilidade de pessoas ausentes não serem recenseadas, e pessoas em trânsito recenseadas mais de uma vez.

Enquanto que algumas províncias registraram atrasos completos ou parciais, há indícios de que, em outros casos, o problema de sincronia se deu pelo adiantamento das informações, como evidencia um recorte do jornal O Despertador, de Desterro, datado de 27 de julho de 1872:

A nós que escrevemos estas linhas, e a muitos outros, foi dado o seguinte recado da parte do recenseador da seção: — O Sr. F. manda esta lista para V. encher, e logo que estiver cheia mande levá-la. — Ora segue-se daqui o ficarem hoje mesmo cheias muitas das listas distribuídas, as quais serão entregues talvez amanhã.

Perguntamos: desta maneira cumprir-se-ão as disposições dos arts. 1º, 2º e § 2º do art. 10 do regulamento? Certamente não. 286

A queixa dos autores de uma coluna de opinião (que assinaram como “Nautilus”) referia-se ao município de Laguna e era a de que, por serem “ignorantes” ou “fátuos”,287

os próprios agentes recenseadores estariam orientando as pessoas a devolver a lista de família “logo que estiver cheia”, o que poderia ocorrer já no dia seguinte, antes da data proposta pelo artigo de legislação citado por eles. Aproveitaram para alfinetar a conduta dos agentes, interessados nos “estéreis, porém públicos agradecimentos do governo” e na “estulta glória de mandarem seus nomes para o rol dos dignos de remuneração honorífica”.288

A questão que esse grupo levantava era de que essa prática poderia estar ocorrendo “em todas as pequenas vilas, freguesias e simples povoações” invalidando o recenseamento: “afinal terá o país, depois de haver dispendido grossas somas, um censo inexato, aleijado; um censo inútil, pois não corresponderá aos fins para que foi decretado”.289

Pode ser que estivesem exagerando nesses argumentos para depreciar o recenseamento, mas, de qualquer modo, levantaram questões válidas quanto aos impactos dessa assincronia da coleta.

286 O Censo. O Despertador, Desterro, 27 de julho de 1872, p. 4, grifos originais. 287

Ibidem.

288 Ibidem, grifos originais. 289 Ibidem.

No balanço final, comentado pelos diretores da DGE principalmente nos relatórios anuais de 1874 e de 1876, encontra-se uma série de percalços que não invalidaram a contagem, mas descompassaram seus ritmos e exigiram o preenchimento de lacunas por meio de estimativas, como se vê no mapa abaixo, representação visual da tabela sistematizada que se encontra na página seguinte:

Mapa 1: Falhas na aplicação do censo

Legenda Populações remotas/errantes não recenseadas. Paróquias específicas não recenseadas (25) Atraso na coleta dos dados

Sem ocorrências registradas

Fonte: Informações obtidas nos relatórios da DGE (1874, p. 49-50; 1876, p. 6-7). Mapa desenvolvido pelo autor com base no contorno das províncias no Atlas de Cândido Mendes de Almeida (1868, p. 11).

Às informações da tabela e do mapa, somar-se-iam inúmeras outras ocorrências de maior ou menor impacto sobre a coleta de dados, e que por algum motivo, não foram mencionadas nesses relatórios.

As ocorrências mencionadas indicam dois principais tipos de problemas: nas paróquias não recenseadas e nas províncias em que o censo como um todo atrasou, as questões de transporte de material devem ter sido preponderantes, como indicou a citação a respeito do mau estado das listas em certas paróquias do Rio Grande do Sul. No caso dos dois últimos exemplos, os grupos não-recenseados no Pará e Amazonas refletem uma conjunção de grande área territorial, dificuldade de acesso e, especialmente a vida “errante” dessas populações. A definição de família no censo não está apenas vinculada às pessoas em uma relação de economia e dependência comum, mas também que essas pessoas morem em determinada residência sejam quais forem as suas condições. As migrações sazonais representaram (e

ainda representam) um grande desafio aos recenseadores, cuja busca pela uniformidade é constantemente minada por essa mobilidade que escapa às jurisdições previamente estabelecidas.

A data-referência, que se referia à “provável maior aglomeração da população na força do inverno”, segundo recomendações dos Congressos de Estatística, certamente não levou em conta o clima tropical, o povoamento esparso de algumas regiões e os ritmos diferenciados de trabalho e habitação de muitas populações (não só as indígenas). Não à toa, a sedentarização também foi apontada por Scott como medida de simplificação e legibilidade: sem ela, seria impossível criar um banco regular de dados, delimitar propriedades, recensear populações.290

Tabela 4: Ocorrências relacionadas à coleta de dados do censo de 1872

Província(s) Tipo de ocorrência

Causas / Explicações / Descrição Correções / Adaptações / Soluções São Paulo Minas Gerais Mato Grosso

Atraso na data de referência de 1º de agosto (em toda a

província) devido a

“inconvenientes”291 e “circunstâncias

imperiosas”292

O censo foi realizado, embora com atraso, e

seus dados foram

validados, mesmo que

não tivesse sido

respeitada a data de referência. Maranhão (1) Piauí (2) Sergipe (5) Rio de Janeiro (3) Rio Grande do Sul (3) Minas Gerais (11)

“Não se levou a efeito o

recenseamento em 25

paróquias”293 dessas

províncias. O número de

paróquias não

recenseadas em cada uma delas está indicado entre parênteses. O número 25 equivale a 1,7% das 1.467 paróquias do Império. Número acrescentado posteriormente por estimativa “[…] tomando por base o número de eleitores que cada uma [das paróquias] dava na época do recenseamento e aceitando a proporção de 1 para 400 habitantes, de conformidade com o que dispõe a nova lei eleitoral.”294 290 SCOTT, 1998, p. 2. 291 DGE, 1874, p. 49 292 DGE, 1877, p. 6 293 Ibidem. 294 Ibidem, p. 7.

Província(s) Tipo de ocorrência

Causas / Explicações / Descrição

Correções / Adaptações / Soluções

Amazonas Vários grupos indígenas

não recenseados nessa província “[…] não só em consequência de sua vida errante, como também pelas

dificuldades de

transporte”.295 Em outros

casos, “[…] pela

impossibilidade de se chegar às suas malocas”.296

Esses grupos (“baficurás e xirianas”, “maués”, entre outros) foram estimados em 10.200 indivíduos.297

Pará Parte da população do

interior não foi

recenseada: “A explicação do fato está na vida errante

dos habitantes das

povoações à margem dos rios, e no abandono em que deixam seus lares as pessoas que, em número considerável, entregam-se, durante muitos meses do ano, à indústria extrativa da seringa”.298

Nenhuma solução ou adaptação foi apontada no relatório.

Demais províncias

Sem menções a atrasos ou problemas específicos

--- Fonte: DGE, 1874, p.49-50 e DGE, 1876, p. 6-7.

A “vida errante” de certas populações também abre o questionamento sobre quantos indígenas foram de fato recenseados. Citaram-se casos no Amazonas porque se havia conhecimento da existência daqueles grupos a ponto de poder-se estimar o número de indivíduos. No entanto, os relatórios não mencionam nenhuma estimativa de outras populações indígenas não-aldeadas, mas cuja existência era conhecida, fenômeno que ocorria em toda parte do 295 Ibidem, p.6 296 DGE, 1874, p. 49; DGE, 1877, p. 6 297 Ibidem; Ibidem. 298 DGE, 1877, p. 6.

Império, embora talvez em proporções menores que as do Amazonas e do Pará.

Sobre as paróquias não-recenseadas, os próprios relatórios avisaram que se aplicou a proporção de 4 pessoas por eleitor (um multiplicador universal, em certo sentido) adicionando-se mais de 180 mil habitantes ao Império apenas ao final do processamento de dados. Ou seja, a publicação oficial e os relatórios até 1876 trabalham apenas com os dados recenseados dos 9.930.478 habitantes, e não com a cifra de “10.112.061 habitantes” à qual se chegou após essas correções. Por respeitar o dado que as fontes mais utilizaram (e sobre o qual desenvolveram as suas tabelas publicadas), também considerarei o algarismo menor.299