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Mapa 4: Proporção de estrangeiros em relação à população brasileira,

3. DA DGE ÀS RUAS: A COLETA DE DADOS

3.2 AS LISTAS DE FAMÍLIA

3.2.2 Lugar de Nascimento e Nacionalidade

A questão nacional também foi bastante enfatizada no censo de 1872, assim como já tinha sido a proposta em 1852. As colunas de “lugar de nascimento” e “nacionalidade” possuíam cada uma delas uma subdivisão: em ambos os casos, separavam-se nacionais e estrangeiros. O “lugar de nascimento” pedia “a província em que nasceu” caso a pessoa marcasse seu nascimento “No Brasil” e “o Estado ou País em que nasceu” caso a pessoa identificasse seu nascimento em “Fora do Brasil”. O segundo quadro, de “Nacionalidade”, pedia a identificação da pessoa como “Brasileiro” ou “Estrangeiro”. No primeiro caso, a lista instruía: “Declara-se se é nato, adotivo ou naturalizado”. E, no segundo: “Declara-se o Estado ou Nação a que pertence”.234

Ambas as questões eram complementares e, no caso dos estrangeiros (caso não fossem naturalizados), bastante repetitivas. Em linhas gerais, essas duas categorias (que se desdobravam em quatro quadros) possibilitariam criar uma hierarquia por nível de nacionalidade:

os brasileiros natos, os brasileiros adotivos ou naturalizados e os não- brasileiros.

Na prática, portanto, preenchia-se em pares: quem citasse um lugar de nascimento “no Brasil”, automaticamente colocaria, em “nacionalidade”, a palavra “nato” ou “naturalizado” sob a coluna de “brasileiro”. Quem preenchesse um lugar de nascimento “fora do Brasil”, informaria, em “nacionalidade”, sua nacionalidade “estrangeira”. Talvez uma melhor leitura desse formulário far-se-ia possível colocando-se antes a “nacionalidade” (separando o estrangeiro do brasileiro – nato, adotivo, naturalizado) e depois, lendo-se o “lugar de nascimento”, o qual serviria para confirmar a informação anterior (de que os “natos” obrigatoriamente deveriam citar uma província brasileira e os demais, um “Estado ou país” estrangeiro).

Inicialmente, essa divisão complexa facilitaria a leitura dos agentes apuradores, pois detectariam, com um golpe de vista, os brasileiros listados numa coluna e os estrangeiros em outra. Entretanto, na prática, o preenchimento pode ter sido mais confuso: os membros do domicílio de Antônio Gravatá foram todos listados na coluna “no Brasil”, inclusive os pretos que nasceram “n’África”. Depois, como se para evitar deixar a outra coluna em branco, todos os pretos foram listados sob “Fora do Brasil”, inclusive os que nasceram “Na B[ahi]a”.

Na coluna seguinte, da nacionalidade, todos foram listados sob “Brasileiro” e nenhum deles sob “Estrangeiro”. Levando essa disposição de informação a termo, todos os membros da família seriam brasileiros natos ou naturalizados, mas não é isso que ocorreu. Temos que Flora, preta, “mais de 40” anos, solteira, nascida “n’África”, aparece, em “nacionalidade”, no quadro atribuído aos “brasileiros” e, no quadro específico para anotar se “nato, adotivo ou naturalizado”, a expressão “estrang[eir]ª”.235

Em uma mesma lista temos, num dos quesitos, a repetição de informações em duas colunas (sendo que em nenhuma das colunas a informação contida é exatamente aquela que deveria estar lá) e, em outro dos quesitos, a citação de todos os indivíduos numa só coluna (inclusive os que não deveriam estar lá).

A listagem da família Paulínio, por ser menor e mais homogênea, foi mais bem preenchida: todos os membros encontram-se listados, em “lugar de nascimento” sob “no Brasil” sendo citada a província do “Espº Sto” para o chefe e o sinal de “idem” (") para os demais. A coluna seguinte está corretamente vazia, visto que nenhum deles nascera fora

do Brasil. Em “nacionalidade”, estão todos sob “brasileiro”, sendo o termo “nato” aplicado ao pai e estendido aos demais membros ("). A coluna seguinte, “estrangeiro”, está corretamente vazia.

Por fim, a família de Rafael Galvão volta ao improviso. Lembrando que a própria lista é uma reprodução da original, os quadros “lugar de nascimento” e “nacionalidade” foram simplificados e não possuem suas respectivas subdivisões. Logo, há automaticamente apenas uma coluna para cada uma dessas categorias e, em todos os casos, os brasileiros e estrangeiros misturam-se, sendo identificados um a um: os adultos da família nasceram no “Rº Gr.de do Norte”, exceto duas mulheres: uma no Rio Grande do Sul, outra em Sergipe. Os netos nasceram na “Corte”, a “agregada” Dorothéa na “África” (a única africana listada) e as “criadas a jornal” em variados lugares: Maria e Simphorosa na “Prov. do Ep.to S.to”, Cesária em “Sta. Cruz do Rº de Jan.ro” e a menina Faustina na “Corte”. Quanto à nacionalidade (coluna seguinte), são todos indicados por “Braz.o” ou “Braz.ra” ou mesmo por “dº” [“dito”]. Para Dorothéa, repete-se “Africa”.

A questão da nacionalidade envolvia aspectos variados, como a possibilidade de cidadania plena ao indivíduo, questões de defesa nacional, a medição da imigração europeia, dentre outros. Mas ela criava, também, uma configuração cuja intencionalidade não é fácil medir, mas cujos efeitos pesam simbolicamente contra um determinado grupo: o dos africanos. Trazidos à força por séculos e na ilegalidade absoluta a partir de 1831, essas pessoas e seus descendentes ocupavam espaços indeléveis na constituição demográfica e na vida social e econômica do Brasil, mas foram várias vezes posicionadas à margem do corpo social brasileiro, por meio de sua associação com os demais grupos de estrangeiros. Ao serem listados no censo de 1872, foram classificados automaticamente como “estrangeiros” sendo seu lugar de nascimento “fora do Brasil”. No entanto, essa condição os associa aos imigrantes voluntários e ignorava as especificidades de sua travessia e as dinâmicas de sua inserção na sociedade brasileira. Transformou esses milhares de pessoas em “estrangeiras” da “África” ao lado de “argentinos”, “alemães”, “belgas”, dentre outros, e ignorou todos os seus inúmeros descendentes, muitos deles ainda cativos, cuja “nacionalidade” brasileira derivava de uma violação legal anterior dos direitos de seus pais e avós. A nacionalidade, portanto, ajudava a dissimular a questão do tráfico ilegal ao separar os africanos cativos dentre os estrangeiros e ao apagar as marcas desse cativeiro em relação aos africanos libertos.

Ademais, a lista de família, ao escolher cindir a população em nacionais e estrangeiros, criava um corpo social principal, formado pelos brasileiros (ainda que escravos) oposto aos estrangeiros, aos nascidos “fora do Brasil”, aos apêndices. Nos levantamentos anteriores que separavam a população por cor, condição social e , as tabelas incluíam entre os “pretos” os africanos, sem distinções do maior corpo social – ainda que fossem hierarquizados pela cor ou condição. No caso do censo, a violência foi usar a nacionalidade como um dos grandes divisores das tabelas aplicando-a também aos indivíduos nascidos no continente africano, tornando-os meros estrangeiros num país onde eram, há séculos, mais integrados ao tecido social e que era muito mais dependente deles do que de outros grupos de imigrantes. Volto a essa discussão no próximo capítulo.

3.2.3 Um aparte: A questão nacional, os africanos, o censo e a