Capítulo II R EVISÃO DA L ITERATURA
2.1.2 A abordagem hedónica: O bem‐estar subjectivo
2.1.2.5 O bem‐estar subjectivo em adolescentes
2.1.3.4.6 Estudos transculturais
Este é provavelmente o domínio que mereceu menor atenção no âmbito de investigação centrada no modelo de Ryff (1989a, 1989b, 1995), existindo, porém, um volume crescente de publicações centradas na aplicação deste modelo em outras culturas/países (e.g. Cheng & Chan, 2005; Kitamura et al., 2004; Van Dierendonck, 2005).
A importância da cultura na concepção individual do sentimento de si, na relação inter‐ individual e nas conotações sociais da doença e saúde tem merecido uma importância acrescida nas últimas décadas (Christopher et al., 2000), sendo muita da pesquisa científica orientada para a influência de diferentes orientações culturais, podendo estas ser delimitadas por uma concepção individualista/colectivista (Triandis, 2001) ou independente/interdependente do eu (Markus & Kitayama, 1991). O único estudo que conhecemos actualmente acerca deste tópico é o de Ryff, Lee e Na (1993) que comparou as EBEP numa amostra adulta norte‐americana e noutra sul‐coreana. De acordo com o hipotetizado, os aspectos mais orientados para o indivíduo (aceitação de si e crescimento pessoal) evidenciaram maior significância na amostra norte‐americana, ao invés das relações positivas com os outros que foram mais valorizadas pelos indivíduos da Coreia do Sul. A comparação entre sexo e culturas diferentes revelou similitudes em ambas as amostras, tendo as mulheres reportado níveis mais elevados de relações positivas com os outros e de crescimento pessoal. Por sua vez, ao nível de uma análise qualitativa realizada pelos autores deste estudo, constatou‐se que os sul‐coreanos (comparados com os norte‐americanos) enfatizaram mais o bem‐ estar de outras pessoas (e.g. crianças) aquando da sua própria definição de bem‐estar psicológico, o que em parte corrobora a concepção interdependente do eu (culturas colectivistas) na qual o indivíduo é entendido como inerentemente relacionado com os outros e inseparável do seu contexto
sociocultural (Gauvin, 1998; Kanagawa et al., 2001; Lu et al., 2001; Matsumoto, 2003; Matsumoto, Takeuchi, Andayani, Kouznetsova & Krupp, 1998; Radhakrishnan & Chan, 1997; Shweder, 1990, 1999; Shweder & Haidt, 2000; Triandis, 2001). 2.1.3.4.7 Perspectiva psicossomática do bem‐estar A separação da mente do corpo é um dos postulados mais prevalecentes no conhecimento científico actual, embora enraizado em princípios platónicos e cartesianos. Tal concepção originou a criação de barreiras ideológicas e empíricas entre a medicina e a psicologia, na medida em que as suas áreas epistemológicas eram distintas e isoladas de possíveis inter‐relações empíricas. Este paradigma foi retratado por Engel (1992), tendo este autor argumentado que (no caso da medicina) a adesão a um paradigma do século XVII (cartesiano) predicou uma perspectiva mecanicista, reducionista, determinista e dualista sugeridas por Newton e Descartes, o que por sua vez, excluiu o objecto de estudo “verdadeiramente” humano do contexto científico. Sofrendo dos mesmos “males”, a definição conceptual de saúde ignorou os diversos aspectos positivos do desenvolvimento humano, excluindo a importância das relações positivas interpessoais, a delimitação de objectivos significativos na vida e outros aspectos fulcrais ao florescimento do ser humano (Ryff & Singer, 2000a). Como tal, diversos autores têm argumentado por uma abordagem mais holística do comportamento humano (Ryff & Singer, 1998a, 1998b; Sperry, 1992; Vasconcelos‐Raposo, 1993), centrada nas dimensões positivas da saúde (Jahoda, 1958; Ryff, 1989a, 1989b; Waterman, 1993), não descurando a relação dialéctica entre o domínio fisiológico e mental do bem‐estar, área epistemológica esta que não tem merecido muita atenção empírica (Ryff & Singer, 2000a).
No âmbito destas sugestões, a mente e o corpo devem ser considerados como duas dimensões da saúde inseparavelmente relacionadas, que apesar de distinguidos e separados por propósitos epistemológicos e metodológicos, requerem pontos de análise integradores; isto é, assume‐se como fundamental a integração de diversos campos de conhecimento no sector de investigação centrado na saúde, de modo a melhorar a condição humana (Ryff & Singer, 2000b, 2002; Sperry, 1992). Assim, a medicina psicossomática na medida em que define o seu interesse nos factores comportamentais, contextuais, psicológicos e sociais que promovem o tratamento da doença e promoção do funcionamento humano óptimo (Borrell‐Carrió, Suchman & Epstein, 2004; McLaren, 1998; Sulmasy, 2002; Smith & Strain, 2002; Waldstein, Neumann, Drossman & Novack,
2001), surge como um espaço empírico privilegiado para uma abordagem biopsicossociocultural do florescimento humano (Ryff & Singer, 2000b, 2005).
Nesta medida, constata‐se existirem diversos esforços para reformular os modelos médicos centrados na doença, salientando estes aspectos multidimensionais do funcionamento humano e qualidade de vida. Contudo, embora providenciando importantes passos na formulação conceptual da saúde enquanto estados de bem‐estar invés de mal‐estar, estas propostas pecam no pressuposto de que focam efeitos/consequências primordialmente negativas (Borrell‐Carrió et al., 2004; McLaren, 1998; Secker, 1998; Sperry, 1992). Deste modo, o modelo de bem‐estar psicológico de Ryff (1989a, 1989b) anteriormente retratado, é claramente um modelo que se centra nos aspectos psico‐ filosóficos da vida significante orientada para o bem‐estar e florescimento humano, assumindo unicamente a adversidade e vulnerabilidade proveniente dos aspectos negativos da doença como factores indiciadores dos processos de resiliência conducentes a óptimos níveis de funcionamento psicológico (Heidrich & Ryff, 1993; Ryff & Essex, 1992; Ryff & Singer, 2000a, 2000b, 2002, 2005); i.e., uma centralização na capacidade de adaptação do ser humano às contingências e desafios da vida (Kwan et al., 2003; Marmot, Fuhrer, Ettner, Marks, Bumpass & Ryff, 1998; Keyes, 2003; Keyes & Ryff, 2000; Ryff, 1991).
Como tal, compreender o funcionamento do organismo durante estados de bem‐estar, invés
de sob condições de doença, assume‐se como a reorientação fulcral do paradigma científico inerente à delimitação e investigação sobre a saúde enquanto estado completo e extremo do desenvolvimento humano (Keyes & Grzywacz, 2005). Neste ponto, a compreensão dos substratos fisiológicos associados a experiências enriquecedoras do ponto de vista da saúde mental, constitui o parâmetro essencial nesta evocação por novas perspectivas teórico‐empíricas, nas quais as emoções parecem desempenhar o efeito mediador mais proeminente entre o corpo e a mente (Ryff & Singer, 1998a, 2000b).
Um dos primeiros estudos de Carol Ryff centrados na investigação entre os domínios físico e mental da saúde (Heidrich & Ryff, 1993) evidenciou que os efeitos negativos da saúde física e seu detrimento através do processo de envelhecimento são mediados pela integração e comparação social em mulheres idosas, pelo que indivíduos que reportam relações interpessoais mais favoráveis (maior nível de integração social e maior adequação nas comparações sociais) tendem a possuir maiores níveis de bem‐estar psicológico (modelo PWB) e subjectivo (modelo SWB). Perante a
similitude de resultados obtidos para distintas (mas relacionadas) conceptualizações de bem‐estar que possuem características próprias inerentes ao desenvolvimento humano, verificou‐se recentemente uma preocupação mais vincada acerca do esclarecimento da importância de certos indicadores fisiológicos na definição de experiências de bem‐estar hedónico e eudaimónico. No estudo de Ryff et al. (2004) com 135 mulheres idosas com idades compreendidas entre os 61 e os 91 anos, verificou‐se que os elementos da amostra com maiores níveis de bem‐estar psicológico possuíam menores níveis de produção de cortisol salivar diário, risco cardiovascular, resposta inflamatória e maiores períodos do ciclo de sono REM (em comparação com as mulheres que evidenciavam menores níveis de bem‐estar eudaimónico). Por sua vez, o bem‐estar subjectivo revelou mínimas associações com os diversos indicadores fisiológicos, tendo‐se verificado unicamente uma relação positiva entre o colesterol HDL e o afecto positivo. Esta disparidade de correlatos neurobiológicos e tipos de bem‐estar analisados estendeu‐se à análise neuronal avaliada através de electroencefalogramas (Urry et al., 2004). Recorrendo explicitamente a uma amostra de adultos destros, estes investigadores verificaram que os dois tipos de bem‐estar correlacionaram‐se com níveis de activação superior assimétrica da porção frontal do córtex cerebral, pelo que somente o bem‐estar eudaimónico associou‐se a uma activação pré‐frontal do hemisfério cerebral esquerdo. No geral, os dados apresentados sugerem que “…left frontal region is more important for well‐being than the right, and that asymmetric activation over posterior cortical regions is not associated with well‐being” (p. 370). Passando da função cerebral para a imunitária, verificou‐se uma corroboração dos efeitos anteriores, na medida em que indivíduos com maiores níveis de activação cerebral pré‐ frontal direita e estilo afectivo mais negativo evidenciaram possuir um sistema imunitário mais débil, estando por isso mais vulneráveis à contracção de uma doença (Rosenkranz, Jackson, Dalton, Dolski, Ryff, Singer et al., 2003). Quando os investigadores foram além dos níveis de saúde auto‐reportados (Heidrich & Ryff, 1993), constatou‐se que o bem‐estar psicológico enquanto definido pelo modelo de Ryff (1989a, 1989b, 1995) revela maior variância relacional com indicadores objectivos (nível neurobiológico e fisiológico) de saúde, quando confrontado com o modelo SWB (Diener, 1984). Assim, pode‐se afirmar placidamente que o bem‐estar psicológico não constitui apenas um indicador de saúde mental, mas também da saúde em geral (Novo, 2003; Ryff & Singer, 1998a, 1998b).
Perante este enquadramento empírico, torna‐se fulcral que a prevenção primária vá além da necessidade de alterar/mudar os comportamentos não saudáveis (negativos), devendo para o efeito
contemplar uma perspectiva da saúde subjugada a uma compreensão genético‐contextual, em que se salienta a importância das práticas e factores sociais que actuam como agentes protectores dos indivíduos com maiores níveis de susceptibilidade e vulnerabilidade de incidência de doenças (Ryff & Singer, 2002, 2005), pelo que o conhecimento das interacções genético‐contextuais permite definir o efeito dos contextos sociais positivos na mudança da expressão genética e fenómeno comportamental. Neste ponto, Ryff e Singer (2000b) sugeriram que as próximas décadas de investigação ir‐se‐ão centrar na ênfase da prevenção e compreensão das complexas inter‐relações entre os contextos interpessoais, económicos e histórico‐culturais, assumindo‐se desta forma como fulcrais, os contextos “encorajadores” de comportamentos positivos e orientados para o desenvolvimento óptimo humano.