Capítulo II R EVISÃO DA L ITERATURA
2.1.2 A abordagem hedónica: O bem‐estar subjectivo
2.1.2.4 Perspectivas de investigação e principais resultados empíricos
2.1.2.4.7 A interacção indivíduo‐ambiente
Após a investigação centrada nos factores demográficos e biossociais, assim como, as influências situacionais, verificou‐se uma centralização nos modelos interacção indivíduo‐ambiente (person x
situation interactions; Diener, Larsen & Emmons, 1984). No contexto psicológico, o termo
interacionismo foi aplicado de dois modos distintos, que reflectem diferentes disposições comportamentais na relação entre a pessoa e o meio envolvente. Um destes modos é o modelo de natureza mecanicista, estatística e de natureza aditiva. A sua forma mais típica verifica‐se nos estudos de análise de variância, em que a variância da variável dependente é fragmentada em diversas origens como as pessoas, situações e suas interacções, assumindo‐se unicamente uma influência unidireccional. A sua natureza aditiva refere‐se ao facto da interacção ocorrer como um contributo distinto do comportamento que acresce aos principais efeitos do contexto e personalidade. Por sua vez, o segundo modo de utilização do termo interacionismo reporta‐se ao processo dinâmico, recíproco e transaccional, também conhecido por interacionismo organísmico (organismic interactionism), em que as situações variam em função dos indivíduos, assim como, o comportamento das pessoas regula‐se em função da situação. Deste modo, “…situations and persons
are at the same time both independent and dependent variables, and there is assumed to be bidirectional causality between the two” (Emmons, Diener & Larsen, 1986, p. 815).
Assumindo este último modelo como aquele que de modo mais coerente e pragmático representa a relação entre personalidade e o contexto envolvente, Emmons et al. (1986) desenvolveram um estudo em que pretenderam analisar as interacções e os efeitos da escolha de situações com base na personalidade e na congruência entre esta e o meio em redor. Nesta investigação, os autores testaram dois modelos distintos de interacionismo dinâmico e recíproco, sendo que o primeiro enfatizava a autodeterminação e possibilidade de escolha das situações de acordo com os traços de personalidade, enquanto o segundo modelo centrava‐se na
congruência/adequação entre a pessoa e o contexto, pelo que níveis mais ajustados de congruência originariam melhores benefícios para o indivíduo. Os dados obtidos evidenciaram suporte empírico para ambos modelos, constatando‐se que as pessoas escolhem as situações em que se envolvem, de acordo com os seus traços de personalidade e tipo de consequência afectivo‐emocional. Deste modo, deve‐se considerar se a situação foi imposta ou não ao indivíduo (moderação indivíduo‐ambiente), dado que as escolhas/preferências baseiam‐se nas características da personalidade. Concomitantemente, o estudo de Emmons e Diener (1986) salientou que quer os traços temperamentais da personalidade, quer os não temperamentais relacionaram‐se com a frequência de certas emoções (e.g. alegria, ira, solidão), somente quando analisadas as situações escolhidas pelos indivíduos.
No entanto, até ao momento ainda não se verificou um extenso suporte empírico para os efeitos das interacções indivíduo‐ambiente, sendo necessária a utilização de metodologias mais específicas e avançadas para a clarificação deste processo dinâmico e recíproco (Diener et al., 1999). 2.1.2.4.8 Estudos transculturais Um dos referenciais actualmente vigentes neste contexto de investigação reporta‐se à análise inter‐ relacional entre o bem‐estar subjectivo, a personalidade e a cultura (Diener et al., 2003a; Schimmack, Radhakrishnan, Oishi, Dzokoto & Ahadi, 2002; Suh, 2002).
Anteriormente, o objecto de estudo cingia‐se à análise de diferentes nações
(conceptualizadas como fontes distintas de orientações culturais), tomando a variabilidade de factores causais (de natureza social, psicológica, cultural e económica) do SWB como elemento central da investigação. Estes estudos iniciais delimitaram a cultura como uma dimensão estática e isolada, estando cada nação restringida à sua própria identidade cultural. Contudo e tendo a globalização como um dos “motores de interacção”, verificou‐se uma certa reorientação da definição de cultura para um processo dinâmico, em que este conjunto de crenças e normas e valores alteram‐ se continua e mutuamente pelas pessoas e contexto envolvente (USDHHS, 2001), desempenhando os processos de socialização (enculturação e aculturação) um papel importante. Deste modo, a cultura passou a ser concebida como um conjunto de conhecimentos condicionais (crenças), conotativos (atitudes e valores) e pragmáticos (normas de procedimento), partilhados por indivíduos num período de vida comum e pertencentes a uma dada estrutura social (Basabe et al., 2002).
Uma das dimensões de cultura que tem permitido identificar as diferenças sistemáticas nos processos inerentes ao bem‐estar subjectivo é o individualismo/colectivismo (Triandis, 2001) ou a conceptualização independente/interdependente do sentimento de si (Kanagawa et al., 2001). Uma componente que delimita esta dimensão é o nível de avaliação das pessoas quanto às percepções de autonomia e auto‐suficiência, pelo que em culturas individualistas, os indivíduos procuram distinguir‐ se uns dos outros, considerando os sentimentos e afectos como fenómenos únicos ao indivíduo. Obviamente, não é de estranhar que os sentimentos acerca de si (e.g. auto‐estima) correlacionem‐se, a um nível superior, com a felicidade em culturas individualistas (Diener & Diener, 1995; Uchida, Norasakkunkit & Kitayama, 2004). Por sua vez, o objectivo nas culturas colectivistas não é a ênfase no indivíduo, mas sim, na manutenção da harmonia do grupo, pelo que as percepções e sentimentos dos indivíduos são subordinadas às do grupo e seu bem‐estar (Diener et al., 1999; Suh, 2002; Uchida et al., 2004). Assim, e devido à valorização do objecto de avaliação diferir entre diferentes culturas, o que se constitui como importante para a felicidade numa cultura, não se verifica necessariamente em outras. Isto não implica que existam diferentes dimensões de felicidade e satisfação com a vida em diferentes culturas, mas sim, que exista uma valorização diferenciada de certos aspectos da vida (incluindo recursos e objectivos), estando o conceito de felicidade implicitamente “embebido” num determinado contexto sociocultural (Lu et al., 2001; Suh, 2002; Uchida et al., 2004). As nações com orientações individualistas situam‐se predominantemente no “mundo” anglo‐saxónico, incluindo países como os EUA, Canadá, Europa Ocidental, Austrália e Nova Zelândia, enquanto as nações colectivistas situam‐se na Ásia (China, Índia e Japão), América Latina e outras regiões (Spector, Cooper, Sanchez, O’Driscoll, Sparks, Bernin et al., 2001).
Oishi, Diener, Scollon e Biswas‐Diener (2004) analisaram a consistência cross‐situational das experiências afectivas em 371 estudantes universitários de três nações (EUA, Japão e Índia). Os dados obtidos sugeriram que as experiências afectivas demonstraram um nível considerável de consistência em diversos contextos, verificando‐se que “…individual differences in the rank order of
mean affective experiences are generalizable across different situations in various cultures” (p. 469).
Apesar de se constatar existir uma consistência entre os traços afectivos para diferentes culturas, as diferentes situações demonstraram algum impacto na intensidade das experiências efectivas em termos de variabilidade intra‐individual, i.e., os indivíduos evidenciaram maior afecto positivo e menor afecto negativo em situações mais familiares (estar com um amigo, namorado ou família).
Este efeito foi mais notório nas culturas colectivistas, verificando‐se uma valorização da sociabilidade e contextualização social. No mesmo molde, o efeito de estar com uma pessoa estranha sobre o afecto negativo, foi superior para as culturas colectivistas. Assim, e embora a análise inter‐individual tenha evidenciado poucas diferenças culturais e a existência de traços afectivos comuns para diferentes nações, a análise intra‐individual revelou importantes discrepâncias no que se refere ao efeito de contextos específicos nas experiências afectiva de várias culturas. Deste modo, “…culture
plays an important role in determining specific situations that elicit affect, or ‘if…then’, patterns of relations between situations and affective experiences” (p. 470).
A análise dos recursos ao nível das nações e associação com a satisfação com a vida foi um dos primeiros objectivos de estudo ao nível das investigações transculturais. Diener et al. (1995a) efectuaram um estudo internacional que envolveu nações com uma representatividade de ¾ da população mundial. Os resultados obtidos evidenciaram que as pessoas em países industrialmente desenvolvidos (com elevados rendimentos, individualismo, direitos humanos e equidade social) possuem níveis superiores de SWB 11, pelo que após o controlo estatístico das outras variáveis, somente o individualismo evidenciou uma influência causal sobre o bem‐estar subjectivo.
Posteriormente, Diener (2000) apresentou os resultados preliminares de um estudo efectuado com base nos dados do World Values Study Group obtidos em amostras de cerca de 1000 indivíduos de diversos países entre 1990 e 1993. A capacidade de poder de compra ao nível nacional correlacionou‐se em 0.62 com os valores médios de satisfação com a vida dos países do estudo. Considerando outras pesquisas, os valores de correlação tendem a variar entre 0.51 e 0.70 (Diener & Biswas‐Diener, 2002). Uma das razões para as nações mais ricas (Ed Diener e seus colegas denominam‐nas de nações desenvolvidas, embora só analisem parte dos factores que sustentam esta delimitação) serem mais felizes, deve‐se ao facto de estas mais facilmente poderem satisfazer as suas necessidades básicas de alimentação, abrigo/residência e saúde, assim como, possuírem melhores direitos humanos (Diener et al., 1995a). Contudo, nas últimas décadas, as sociedades mais ricas aumentaram os seus recursos económicos, o que por sua vez, não se traduziu num incremento dos níveis de felicidade, pelo que Diener (2000) justificou esta situação pelo facto de paralelamente ao aumento da capacidade de compra, também se elevar o nível standard de avaliação da satisfação 11
Este conjunto de associações entre os rendimentos, individualismo, equidade social e direitos humanos permitiram explicar 73% da variância total entre as nações e o bem‐estar subjectivo (Diener et al., 1995a, p. 862).
com a vida. Outra explicação para este paradoxo residiu no facto das avaliações dos indivíduos suportarem‐se igualmente na comparação com as condições de vida dos amigos e vizinhos, verificando‐se a existência de uma insatisfação “materialista” contígua (Bjørnskov et al., 2005). Apesar da associação entre os recursos económicos e a satisfação com a vida, outros factores têm sido apresentados para justificar as diferenças do nível médio de felicidade reportado por diferentes países (Diener & Lucas, 2000). Deste modo, para além do estatuto socioeconómico, as outras justificativas são: a) as culturas individualistas evidenciam níveis mais elevados de lócus de controlo ao nível laboral, o que se traduz em níveis mais elevados de satisfação com o trabalho e bem‐estar subjectivo (Klonowicz, 2001; Spector et al., 2001); b) a satisfação com o sentimento de si e a liberdade pessoal são enfatizadas nas culturas individualistas, o que se associa com maiores níveis de satisfação com a vida (Diener et al., 2003a); e, c) as sociedades colectivistas salientam as normas sociais e suporte social (amigos, família…), pelo que este tipo de esfera interpessoal positiva e significativa aumenta os níveis de bem‐estar subjectivo (Myers, 2000).
Basabe et al. (2001) efectuaram uma análise conjunta de quatro estudos, tendo constatado que a dimensão cultural individualismo correlacionou‐se positivamente com o bem‐estar subjectivo e o equilíbrio afectivo positivo, mesmo após o controlo de outros factores culturais, do desenvolvimento socioeconómico e clima (avaliado com base na latitude terrestre). Tal parece dever‐ se à relevância evidenciada por estas culturas quanto ao nível individual de saúde mental e bem‐ estar. Outra explicação parece residir na diferenciação das delimitações conceptuais da felicidade, quando analisando conjuntamente diversas culturas. Isto é, enquanto as culturas individualistas consideram o positivismo e o negativismo como dimensões contraditórias (Diener et al., 1995b), as restantes culturas colectivas conceptualizam estas dimensões enquanto construtos complementares (Uchida et al., 2004).
Perante a súmula de estudos anteriores, Schimmack et al. (2002) efectuaram uma investigação onde analisaram conjuntamente a cultura, a personalidade e o bem‐estar subjectivo, propondo um modelo mediador‐moderador (figura 3). O modelo proposto sugere que a personalidade tem uma forte influência no equilíbrio afectivo (e não directamente na satisfação com a vida) e que a cultura medeia a relação entre a dimensão afectiva e cognitiva do SWB.
Extroversão Neuroticismo Equilíbrio Afectivo Satisfação com a vida Cultura Figura 3: Modelo mediador‐moderador da personalidade, cultura e bem‐estar subjectivo (adaptado de Schimmack et al., 2002)
Os resultados obtidos evidenciaram uma influência pan‐cultural da extroversão e neuroticismo no equilíbrio hedónico; a posterior relação entre o equilíbrio afectivo e a satisfação com a vida foi superior nas culturas individualistas, pelo que o modelo estrutural manteve‐se adequado para as culturas colectivas, embora com um menor valor de associação. Assim, além de explicar as inter‐relações entre personalidade, cultura e bem‐estar subjectivo, o presente modelo e os resultados auferidos demonstraram que o efeito da personalidade é mediado pelas orientações culturais.
A cultura e as formas de avaliação associadas aparentam influenciar as diferenças inter‐ nações no que se refere à felicidade, através dos recursos, expectativas e objectivos que as pessoas possuem com vista a promoverem a homogeneidade/consistência cultural, i.e., o nível de verosimilhança partilhada pelos elementos de uma mesma sociedade (Suh, 2002). Mais ainda, embora as diferenças inter‐culturais possam (ou não) dever‐se a erros metodológicos ou a uma “supremacia” ocidental da delimitação conceptual dos construtos em estudo, o que as principais investigações aparentam sugerir é que algumas diferenças de bem‐estar subjectivo entre nações, parecem dever‐se ao facto das pessoas valorizarem diferenciadamente a importância do SWB ao nível intra e inter‐individual (Diener et al., 2003a).