Capítulo II R EVISÃO DA L ITERATURA
2.2 A DOLESCÊNCIA E BEM ‐ ESTAR
2.2.5 Prática religiosa
A compreensão do sistema sociocultural português remete‐nos para a consideração da orientação filosófica judaico‐cristã prevalecente, que está intimamente relacionada com a educação que recebemos (Vasconcelos‐Raposo, 1993; Vasconcelos‐Raposo et al., 2005). Esta orientação caracteriza‐se por um conjunto de pressupostos filosóficos e ético‐morais que subsumem a formação do conceito de self/eu e que através da existência de um sistema unificado de crenças e práticas relativas às coisas sagradas (resumido numa única comunidade moral – a igreja) preservam a integridade estrutural da vida religiosa. Por sua vez, a religiosidade expressa‐se através de formas particulares de crenças que se legitimam por referência a esta tradição histórico‐cultural. Assim, entende‐se por religiosidade, a conjugação da frequência regular da prática religiosa e do valor subjectivo do envolvimento religioso associado às atitudes e comportamentos que possam reflectir este comprometimento (Pearce, Little & Perez, 2003).
De acordo com os dados obtidos em 1995 e presentes no The World Fact Book, 94% da população portuguesa era católica romana e os restantes 6% eram protestantes ou agnósticos. Mais recentemente, o relatório sobre a liberdade religiosa em Portugal23 indicou que mais de 80% da população com idade superior a 12 anos se identificava com a igreja católica, havendo, contudo, uma grande percentagem de indivíduos que afirmava não participar activamente em quaisquer práticas religiosas. As restantes religiões foram circunscritas do seguinte modo: 4% protestantes, 1% de religiões não cristãs e 3% afirmaram não se identificarem com qualquer religião. Os dados obtidos a partir do inquérito às atitudes sociais dos portugueses, integrado no International Social Survey
Programme, revelaram‐nos a seguinte conjuntura (Pais, Cabral & Vala, 2001): 90.2% declararam‐se
católicos, 1.7% protestantes, 0.8% afirmaram pertencerem a outra religião não cristã e os restantes 7.3% descreveram‐se como agnósticos. Este mesmo estudo numa amostra continental de 1201 indivíduos permite‐nos, ainda, conhecer mais detalhadamente o envolvimento e a prática religiosa da população portuguesa. Referentemente à prática religiosa, 27% da amostra estudada caracterizou‐a como regular, 16% como irregular, 41% como rara e os restantes 16% como nula/inexistente. Somente 42.6% reportou uma frequência regular ou inconstante à missa/serviços religiosos, sendo que as mulheres idosas e pouco instruídas da região centro e norte do país têm um
papel predominante na reprodução desta prática religiosa tradicional. Paralelamente, apenas 28% dos inquiridos se consideraram extremamente (4.6%) ou muito religiosos (23.6%), sendo que dos praticantes regulares, apenas 70% afirmaram orar/rezar diariamente, ao invés dos 88% que referiram não praticar qualquer acto religioso. Em suma, os autores deste estudo concluíram que a religiosidade dos portugueses já não representa uma reprodução hipostasiada do catolicismo mais tradicional, nem uma ressonância reificada daquilo que está social e religiosamente instituído, ou seja, o normativo, o doutrinal e o prescritivo. Assim, a religiosidade dos portugueses é de natureza heterodoxa, sincrética e pessoal, embora a identidade nacional ainda continue a estar profundamente ligada a um universo católico nominalmente unificante.
No contexto de investigação da psicologia, a religião foi uma área de estudo algo negligenciada e descurada. Apesar de alguns dos textos iniciais conterem referências à influência da religião na vida e personalidade dos indivíduos (Hall, 1904; James, 1902), só recentemente se verificou uma reemersão desta área de investigação (para um maior aprofundamento histórico ver Emmons & Paloutzian, 2003 e Johnson, 1997), embora a evidência empírica em adolescentes seja muito reduzida (Barnes et al., 2000; Pearce et al., 2003; Sveidqvist et al., 2003). Todavia, na opinião de Emmons (1999), o domínio da psicologia positiva e do desenvolvimento positivo juvenil representa uma área de investigação importante e fulcral para uma melhor compreensão das inúmeras (possíveis) relações e inferências entre a religião e o bem‐estar físico, social e mental. Para além dos estudos já mencionados anteriormente, outros resultados importa aqui aduzir. Assim, além da evidência empírica moderada da relação entre a religião e o bem‐estar subjectivo (Diener et al., 1999; Diener & Seligman, 2004; Ellison, 1991; Francis & Kaldor, 2002), que tende a diminuir quando os investigadores recorrem a amostras de maiores dimensões e de contextos culturais diferenciados (Diener & Clifton, 2002), existem inúmeros estudos em amostras adultas que nos apresentam uma relação positiva entre a religiosidade e menores níveis de ansiedade (Petersen & Roy, 1985; Ryan, Rigby & King, 1993), menores níveis de depressão e maior auto‐estima (Emmons, 1999; Ryan et al., 1993), níveis mais elevados de saúde física auto‐reportada (Idler, Musick, Ellison, George, Krause, Ory et al., 2003; Ryan & Fiorito, 2003), maiores percepções de auto‐eficácia (Harrison, Koenig, Hays, Eme‐Akwari & Pargament, 2001) e suporte social (Exline, 2002; Idler et al., 2003; Pargament, 2002), a existência de um senso positivo de objectivos na vida e inerente significado individual (Exline, 2002; Pargament, 2002; Petersen & Roy, 1985; Ryan & Fiorito, 2003),
níveis mais elevados de optimismo (Emmons, 1999; Harrison et al., 2001) e, por fim, maiores capacidades de coping/resiliência (Harrison et al., 2001; Idler et al., 2003; Ryan & Fiorito, 2003). Em adolescentes, tende‐se a verificar o mesmo padrão de associações, embora a investigação existente seja mais escassa. O estudo de natureza qualitativa desenvolvido por Sveidqvist et al. (2003) em 51 adolescentes constatou que a maioria destes considerava que a espiritualidade era positiva para a sua saúde mental, através das seguintes influências: a existência de um senso de significado e propósitos de vida, de sentimentos de segurança e paz devido a saberem que “tudo acontece por uma razão”, de sensos de conforto e suporte social e de melhorias no seu crescimento pessoal e bem‐estar. Embora distinta da religiosidade, esta análise aos testemunhos destes adolescentes verificou que a espiritualidade desempenha um papel importante na auto‐regulação e saúde mental destes indivíduos, a par de uma possível influência na formação de uma identidade congruente, autêntica e adequada às expectativas/exigências socioculturais.
Pearce et al. (2003) pretenderam analisar as possíveis associações entre a religiosidade e os sintomas depressivos em adolescentes. Recorrendo para o efeito a uma amostra de 744 adolescentes (média de idades de 13.06±0.45 anos) e a uma medida multidimensional de religiosidade, estes investigadores constataram que a frequência, a auto‐avaliação subjectiva e as experiências interpessoais positivas derivadas da prática religiosa correlacionaram‐se com menores níveis de sintomas depressivos. Contudo, dadas as experiências interpessoais positivas evidenciarem uma maior relação com a depressão (em comparação às outras medidas usuais de religiosidade), mesmo após o controlo do sexo e etnia, os autores concluíram “…that adolescents’ psychological
well‐being is more strongly associated with their social experience in religious environments than with their attendance at religious services” (p. 274).
Deste modo, parece evidente que um senso de espiritualidade ou de envolvimento numa comunidade religiosa por parte dos adolescentes, pode providenciar uma estrutura para este lidar satisfatoriamente com as situações adversas da vida (Barnes et al., 2000). Como tal, além deste envolvimento permitir o desenvolvimento de esquemas interpretativos de natureza religiosa para compreenderem o significado da sua existência e agirem de modo a realizar os seus objectivos/propósitos de vida (Emmons, 1999; Exline, 2002; Petersen & Roy, 1985; Ryan & Fiorito, 2003), parece evidente que a religiosidade desempenha um papel preponderante na tomada de decisões aliadas a estilos de vida saudáveis. Os adolescentes mais religiosos tendem a consumir
menos drogas, álcool e tabaco (Barnes et al., 2000; Dalgalarrondo, Soldera, Filho & Silva, 2004; Tavares, Béria & Lima, 2004), a obter melhores resultados académicos e a envolverem‐se em mais actividades extracurriculares (Zaff et al., 2003) e a efectuarem menos actos delinquentes, a demonstrarem menos pensamentos/tentativas de suicídio e a adoptarem comportamentos mais saudáveis, como o exercício físico, o sono, a higiene dental, o uso do cinto de segurança e práticas alimentares adequadas (Barnes et al., 2000; Smith, 2003).
Por fim, e de acordo com as propostas de Smith (2003) baseadas numa extensa revisão dos
efeitos religiosos em adolescentes norte‐americanos, sugerimos que a religiosidade pode influenciar a vida dos adolescentes através de, pelo menos, nove factores/condições (pp. 20‐26):
1. A religião promove directivas morais específicas de auto‐controlo e de virtudes individuais sustentadas na autoridade de antigas tradições e narrativas históricas nas quais os seus membros são induzidos, de tal forma que os adolescentes podem internalizar essas normas morais e empregá‐las nas escolhas de vida e compromissos morais;
2. A religião providencia o contexto organizacional e a substância cultural que promovem as experiências espirituais dos adolescentes, que por sua vez, podem auxiliá‐los na solidificação dos seus compromissos morais e experiências de vida;
3. A religião possibilita modelos de referência nos adultos e no grupo de pares, providenciando exemplos de práticas de vida moldadas pelas normas morais religiosas que podem influenciar a vida dos adolescentes e facultar o estabelecimento de relações interpessoais positivas;
4. A religião proporciona certos contextos organizacionais em que os adolescentes observam, aprendem e praticam capacidades/tarefas de vida comunitária e de liderança, as quais podem ser extrapoladas em outras situações de vida além das actividades religiosas;
5. A religião promove uma variedade de crenças e práticas que pode auxiliar os indivíduos a lidar satisfatoriamente (coping) com o stress e diversas adversidades da vida, fomentando o bem‐estar e as capacidades adaptativas dos adolescentes;
6. A religião providencia aos adolescentes oportunidades alternativas (para além dos contextos familiar, escolar e dos amigos) para adquirir/desenvolver elementos de
práticas culturais que possam directamente influenciar o bem‐estar destes e que identicamente possam ser extrapoladas para outros contextos sociais;
7. A religião é uma das poucas instituições sociais que não é rigidamente estratificada por idades e que enfatiza as interacções pessoais ao longo do tempo; assim, possibilita a existência de relações com pessoas de outras faixas etárias para além do contexto familiar e fornece‐lhes maiores fontes de informação, recursos e oportunidades para a vida;
8. A comunidade religiosa desenvolve um conjunto denso de relacionamentos interpessoais nos quais os adolescentes estão integrados, existindo assim pessoas deferentes à vida destes e que podem providenciar certas informações aos pais acerca dos filhos e igualmente, encorajar certas práticas positivas de vida dos adolescentes; e,
9. A religião possibilita a relação dos adolescentes com inúmeras experiências positivas e eventos para além das suas comunidades, nos quais estes podem ampliar as suas aspirações/objectivos de vida, fomentar a sua maturidade intelectual e emocional, além de desenvolverem competências e aprenderem novos conhecimentos.