Capítulo II R EVISÃO DA L ITERATURA
2.2 A DOLESCÊNCIA E BEM ‐ ESTAR
2.2.10 O bem‐estar psicológico em adolescentes: Um novo modelo?
O objectivo central do presente estudo situa‐se na compreensão do bem‐estar psicológico enquanto definido por Ryff (1989a, 1989b, 1995), no período de vida da adolescência. Assim, duas questões se colocam perante esta proposição. Não haverá já evidência suficiente acerca desta relação na literatura especializada? E porquê mais um modelo de bem‐estar nesta fase de vida?
Como pretendemos esclarecer posteriormente, a primeira questão afirma‐se como
verdadeira quando contemplado que essas investigações se têm orientado por modelos de tradição de investigação hedónica ou similar, verificando‐se muitas das vezes que estes estudos são desprovidos de suporte e coerência teórica. Assim, dimensões de funcionamento psicológico como os objectivos na vida, o crescimento pessoal e o domínio do meio são constantemente negligenciados na compreensão do bem‐estar durante a adolescência. Mais preocupante é esta situação, quando a bibliografia existente aponta para uma importância acrescida destes construtos na formação e definição da identidade pessoal (Kroger, 2000; Meeus, 1996; Moshman, 2005;
Vleioras, 2005; Vleioras & Bosma, 2005) e no desenvolvimento do florescimento humano (Keyes, 2002; Ryff & Singer, 2000a). Por sua vez, embora à primeira vista a segunda questão possa parecer provida de validade, tal não se afirma como totalmente verídico. Embora conscientes do facto do modelo PWB ter sido desenvolvido em amostras em idade adulta e avançada (Heidrich & Ryff, 1993; Keyes & Ryff, 1998; Ryff, 1989a, 1989c), pensamos que as diferentes dimensões deste modelo de bem‐estar psicológico têm merecido alguma consideração em investigações com adolescentes, embora muitos desses estudos tenham em conta estas dimensões de forma isolada e desprovidas de um campo teórico devidamente formulado. Deste modo, a conjugação destas dimensões de bem‐estar com a evidência teórico‐empírica existente acerca do modelo PWB, assume‐se como um ponto forte desta investigação, o que nos permitirá compreender de forma mais abrangente e multifactorialmente o bem‐estar em adolescentes.
O nosso interesse no campo de estudo da adolescência centra‐se na preocupação da identificação dos demais factores de influência do bem‐estar e inerentes dimensões expressivas do funcionamento psicológico positivo, de acordo com uma abordagem cognitivo‐desenvolvimentista. Esta perspectiva procura explicar o desenvolvimento humano de uma forma abrangente e multidisciplinar, em que a operacionalização qualitativa é faseada na forma de delimitação de estádios (estrutura cognitiva que engloba um conjunto relativamente homogéneo de operações mentais). Deste modo, definem‐se cinco características fundamentais: a) o ser humano é um ser proactivo, intencional nas suas acções e com a capacidade de cognição (processamento de informação); b) as diferenças entre estádios são de natureza qualitativa (“desenvolvimento”), considerando características específicas a esta fase da vida; c) os estádios consideram uma sequência lógica e gradual, em que o sentido é direccional (não permite retrocessos) e que não permite a omissão dos mesmos; d) a cada estádio específico corresponde um domínio específico de processamento humano; e, e) o crescimento resulta da interacção indivíduo‐ambiente (Sprinthall & Collins, 2003). Em suma, este processo interactivo é a base essencial para a estimulação do desenvolvimento humano (Bandura, 1986; Bronfenbrenner, 1979, 2001, 2004; Papalia et al., 2004; Shweder, 1990; Vasconcelos‐Raposo et al., 2005; Vygotsky, 1962, 1978).
Atendendo às premissas antecedentes, é consensual na literatura especializada que o processo de formação da identidade consiste na principal tarefa desenvolvimentista da adolescência.
Enquadrada na teoria de desenvolvimento psicossocial de Erikson (1959, 1968, 1981), o senso de identidade consiste no quinto estádio do modelo epigenético de desenvolvimento da personalidade e concerne um vasto e complexo agregado de representações pessoais e sociais, situadas num determinado contexto histórico‐cultural. Esta teoria de desenvolvimento psicossocial considera o desenvolvimento da personalidade como uma sequência hierárquica de estádios incrementalmente complexos, em que o processo de evolução é regido pelo princípio epigenético de maturação – assumpção da conjugação das forças biológicas e socioculturais na determinação do desenvolvimento, em que os factores socioculturais influenciam os estádios geneticamente predeterminados (Erikson, 1959). Deste modo, para este autor, o desenvolvimento humano processa‐se com base numa organização e sequência universal (hereditariamente determinada), em que os elementos situacionais e contextuais desempenham um papel fulcral na resolução dos conflitos pessoais e inerente progressão para um estádio superior (i.e., a especificidade da universalidade).
As etapas de desenvolvimento que Erik Erikson preconizou para o desenvolvimento da personalidade humana representam períodos de inter‐relação das forças biológicas (soma), psicológicas (psyche) e socioculturais (polis/ethos), em que as capacidades adaptativas e criativas permitem a cada indivíduo forjar o seu próprio e único estilo de vida (Erikson, 1959, 1981). Assim, neste modelo precursor das teorias dialécticas de desenvolvimento, o ser humano depende de três processos de organização complementares: o processo biológico da organização hierárquica do sistema de órgãos que constituem o corpo, o processo psicológico de organização da experiência individual pela síntese do ego e o processo comunal da organização sociocultural da interdependência das pessoas (Franz & White, 1985; Novo, 2003). Resumindo, esta premissa está de acordo com a abordagem biopsicossociocultural de compreensão do desenvolvimento humano, implicitamente subjugada aos princípios orientadores da presente investigação.
Não obstante algumas reminiscências freudianas prevalecentes na teoria de Erik Erikson, este autor salienta o livre‐arbítrio da condição humana no que concerne o desenvolvimento da identidade do ego24, ao invés da perspectiva psicanalítica em que as forças inconscientes (id) é que regem o comportamento humano (Hamachek, 1988; Meacham & Santilli, 1982; Schultz & Schultz,
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Termo utilizado pela primeira vez por Erik Erikson para definir um síndrome de guerra experienciado por “neuróticos” durante a II Grande Guerra Mundial (Erikson, 1964).
2002). Como tal, as pessoas são responsáveis pelos seus actos, atitudes e comportamentos, sendo estes influenciados por certas forças e exigências socioculturais que despoletam a necessidade de adaptação e resolução adequada de “crises” específicas a cada estádio proposto. Deste modo, estas “crises” consistem em períodos de certa tensão e agitação, mas também constituem oportunidades de crescimento e desenvolvimento pessoal, pelo que a adolescência é uma fase vital da formação de uma identidade própria e saudável (Erikson, 1968, 1981). A forma como o adolescente consegue resolver com êxito a crise da identidade, é especificada no plano de fundo desta teoria de desenvolvimento psicossocial através de uma dimensão bipolar específica (identidade vs difusão) (Erikson, 1959, 1968). Esta resolução, bem sucedida, resulta numa força sintetizadora básica de nível superior – a fidelidade (Erikson, 1962), em que o domínio da tensão gerada pela “crise” ou pelas exigências de desenvolvimento é conseguido através de via dinâmica, verificando‐se assim uma necessidade constante de um equilíbrio apropriado entre os dois pólos opostos com predomínio das qualidades positivas que emergem, de modo a que o plano de fundo continue a desenvolver‐se em direcção ao estádio seguinte (Novo, 2003; Sprinthall & Collins, 2003).
Desta forma, de acordo com a teoria eriksoniana, o adolescente deverá enveredar em actividades exploratórias de auto‐conhecimento e compreensão do mundo em redor, estando sujeito às influências de sociedades exponencialmente industrializadas e “globalizadas” e às exigências da comunidade adulta e suas normas vigentes, a par de um certo relativismo moral prevalecente e erudição de inúmeras ideologias tecnológicas, económicas, religiosas e políticas (Franz & White, 1985; Kidwell et al., 1995; Thom & Coetzee, 2004). Como tal, a formação da identidade é encarada como um processo integrador destas transformações pessoais, das exigências socioculturais e das expectativas em relação ao futuro. Estas proposições teóricas já obtiveram alguma demonstração empírica a um nível transcultural (Meeus et al., 2005; Thom & Coetzee, 2004; Wang & Viney, 1997). Em síntese, Erikson (1962, 1968, 1981) sustentou que a formação da identidade envolve o desenvolvimento de capacidades cognitivas e emocionais que conferem um sentido de unicidade, em que a unidade da personalidade é percepcionada pelo adolescente e reconhecida pelos outros, como tendo uma certa consistência ao longo do tempo e como sendo demarcada de um universo previsível que transcende a família e o grupo de pares.
Concomitantemente, a resolução e extrapolação da fidelidade consequente do processo de