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Institucionalização e as vivências emocionais na adolescência

4. Evidências empíricas do desenvolvimento dos jovens na institucionalização

Atendendo às críticas que são tecidas em torno da institucionalização, a literatura tem vindo a apontar que a instituição proporciona um suporte distinto do sistema familiar tradicional, diferença que é apontada sobretudo quando na família intacta existe um ambiente de estabilidade e grande envolvimento afectivo e comportamento adaptativo. Todavia ressaltamos que apesar de representar um contexto diferente do tradicional ele é capaz de potenciar o desenvolvimento de adolescentes seguros sob o ponto de vista da vinculação.

Curiosamente os interesses de Bowlby partem na sequência do trabalho com crianças cuja privação de cuidados parentais teria originado, sob o seu ponto de vista, uma disrupção na vinculação. Nesta medida, o trabalho de Bowlby, ainda em início de carreira, num internato de crianças e jovens problemáticos reporta uma associação entre as dificuldades dos jovens e as experiências adversas ocorridas na infância. Os seus casos clínicos, citados em 1940, defendem assim o papel determinante de factores ambientais no desenvolvimento dos primeiros anos da criança, e mais concretamente a separação materna enquanto geradora de perturbações psicológicas. Foram pontos de referência na sua observação, a necessidade de fomentar as visitas diárias da mãe às crianças hospitalizadas e ainda o trabalho terapêutico com as mesmas, analisando as próprias dificuldades enquanto impacto no seu desempenho parental. Mais tarde, Bowlby (1944) sistematiza estas ideias mediante um estudo realizado com 44 jovens com histórias de roubos e ainda um outro grupo de jovens sem este comportamento mas com perturbações, analisando as suas respectivas histórias clínicas, onde distingue a designação “psicopata vazio de afecto” (affectionless psychopath). Ao longo deste estudo verificou que esta designação se aplicava a jovens sujeitos a uma separação prolongada da mãe nos primeiros tempos de vida. Esta constatação suscitou interesse sublinhando a importância dos cuidados parentais iniciais e particularmente a frieza e distanciamento emocional, ausência de calor, comportamento não responsivos e insensíveis à punição ou reconhecimento social positivo que caracteriza o “vazio de afeto”. Portanto a disfuncionalidade advinha desta carência de suporte afectivo que suscitava confusão e sentimentos de revolta nos jovens originando, segundo a perspectiva do autor, nada mais do que a agressão aos outros. Num enquadramento mais histórico da questão, esta publicação

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teve especial impacto no pós-guerra sendo distinguida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo que Bowlby tem aqui a oportunidade de reflectir mais profundamente em tornos dos resultados das suas investigações face aos efeitos da institucionalização em crianças. As conclusões de Bowlby estenderam-se mais para além da infância, constatando que as crianças institucionalizadas se podiam transformar em adultos emocionalmente frios, superficiais nos relacionamentos, com níveis de hostilidade e tendências hostis e anti-sociais (Bowlby, 1950). Note-se que este ponto de partida para a análise da qualidade da vinculação das figuras parentais enquanto preditor do desenvolvimento adaptativo das crianças, rapidamente se extendeu a várias instituições para além dos hospitais, alertando os profissionais das instituções para a importância dos cuidados emocionais, pelo que a satisfação das necessidades meramente físicas das crianças não seriam suficientes. Esta questão é particularmente interessante no presente estudo, percebendo-se que já nesta altura Bowlby estaria sensível à relevância dos cuidados, emocionais primários, mas também de todas, as figuras próximas das crianças enquanto fontes de suporte afectivo. Tal como já apontamos anteriormente, parece que as figuras adultas que rodeiam as crianças e estabelecem com elas laços emocionais de qualidade podem constituir fontes inestimáveis de segurança.

Partindo desta base, alguns estudos foram sendo realizados na tentativa de perceber os processos emocionais na institucionalização de crianças e jovens. Nesta medida Grusece e Lytton (1988) sublinham prejuízos cognitivos que a vivência institucionalizada proporciona, observando crianças mais distraídas e agressivas, com dificuldades emocionais e dificuldades no estabelecimento de laços afectivos duradouros. Todavia reflectindo sobre estes resultados, os jovens apresentavam maiores dificuldades na adaptação social, que segundo os autores, teriam a ver com as condições de estimulação e oportunidades relacionais proporcionadas, mais do que com o facto de viverem na instituição. Nesta medida, quando o meio familiar envolvente é empobrecido ou caótico, a institucionalização das crianças pode proporcionar recuperação e um certo crescimento psicológico.

Estudos anteriores, como o de Tizard, Cooperman, Joseph e Tizard (1972), reportaram os efeitos da qualidade do trabalho dos funcionários da instituição e o desenvolvimento de competências básicas como a linguagem, concluindo que atrasos não estariam necessariamente relacionados com a vivência institucional. Pelo contrário, cuidadores com maior nível de interacção com as crianças obtinham melhores resultados contrariando a ideia

de que os atrasos se deviam à entrada precoce na instituição. Grusec e Lytton (1988) destacam a ideia da existência de factores de origem multifactorial enquanto modificadores dos efeitos dos cuidados em institucionalização, a referir, o motivo de separação da criança e a sua família, a qualidade da relação prévia com a mãe ou figura cuidadora, facilidades para estabelecer ligações afectivas estáveis depois da separação, a idade da criança aquando da separação, o género e temperamento da criança e, ainda, a qualidade dos cuidados prestados na instituição. Este último aspecto é fundamental para a criança já que a diminuição das reacções negativas face à separação pode depender da presença de um ambiente ou objectos familiares à criança e a presença de cuidados maternais mesmo que exercidos por uma mãe substituta (Bowlby, 1988).

Na última década, Pasian e Jacquemin (1999) realizaram estudos sobre a imagem de si próprio em jovens institucionalizados e não institucionalizados, constatando que os jovens institucionalizados apresentavam maior número de indicadores emocionais positivos; por outro lado, quanto maior o tempo de institucionalização, maiores os elementos de uma auto- imagem efectivamente integrada. Segundo os autores o tempo de permanência na instituição com qualidade nas suas relações favorecia experiências de vida positivas que diminuiam os sinais de dificuldades emocionais. Este facto não implicava a inexistência de conflitos entre os adolescentes e os cuidadores, bem como o estabelecimento de regras (mais ou menos contestadas pelos jovens mas que, como sabemos, constituem um elemento securizante na relação com os adultos significativos). A proximidade desde cedo com as figuras cuidadoras da instituição tornava-se, nesta perspectiva, uma evidência de que as relações e laços afectivos se estreitavam e potenciavam a criação de bases seguras nos jovens.

Mais recentemente, Martins e Symanski (2004) analisaram a percepção de crianças institucionalizadas da noção de família, a partir de brincadeiras de “faz-de-conta”, destacando- se uma cooperação e ajuda mútua com organização das crianças dentro de papéis familiares onde se auxiliavam entre si em diversos momentos. De ressaltar ainda uma predominância de encenações de famílias nucleares apesar das famílias de origem das crianças não funcionarem com essa configuração, facto que permite assumir a apreensão e aceitação dos valores culturais do macrossistema.

Por tudo isto, a rede social e afectiva criada na instituição pode ter uma profunda influência na saúde e bem-estar do jovem. A percepção deste apoio promove um efeito

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protector que se relaciona com o desenvolvimento de capacidades para enfrentar as adversidades, potenciando o processo de resiliência e desenvolvimento adaptativo. Cada microssistema como a família, amigos, vizinhos, escola ou mesmo a instituição assume um papel de identidade social capaz de proporcionar apoio nas relações que o indivíduo estabelece com os outros.

Autores como Yunes, Miranda e Cuello (2004) apontam os benefícios dos “factores de protecção” da institucionalização, dado que as influências das relações podem melhorar ou alterar as respostas pessoais a determinados riscos de desadaptação, provocando modificações catalíticas que alteram o curso de vida dos jovens. Em alguns casos a instituição representa para as crianças e jovens o ambiente imediato de maior impacto nas suas vidas, um microssistema carregado de um elevado número de actividades, papéis e interacções simbólicas, pelo que, como já referimos, a pobreza dos relacionamentos nos sistemas relacionais anteriores pode significar uma “desnutrição” para o desenvolvimento humano.

Para os adolescentes institucionalizados, as estruturas interpessoais e as interacções são de extrema relevância para o desenvolvimento saudável. As inúmeras actividades, funções e interacções potenciam um ambiente para o desenvolvimento de relações recíprocas e de afecto. A consolidação destes padrões relacionais destaca a sua importância na criação de vínculos afectivos estáveis aumentando o reportório de respostas emocionais do jovem, remetendo-o para a exploração do ambiente imediato físico, social e simbólico. Com esta perspectiva pretende-se pois focalizar as características das relações interpessoais e afectivas enquanto elementos essenciais no microssistema, podendo influenciar a trajectória de vida dos adolescentes, inibindo ou incentivando a expressão de competências cognitivas, sociais e emocionais (Siqueira & Dell’ Aglio, 2006).

Deste modo, acreditamos que a sensibilidade e disponibilidade destes adultos, sejam eles professores, funcionários ou amigos pode resultar numa importante fonte de organização interna dos afectos. Arpini (2003) desenvolve estudos com adolescentes institucionalizados cujos relatos de vivência institucional descrevem o melhor período das suas vidas, sendo um meio privilegiado para o estabelecimentos de laços afectivos que se mantiveram ao deixar a instituição. Particularmente, a relação criada com os funcionários das instituições desempenha um papel central na vida destas crianças e adolescentes já que estes adultos assumem

verdadeiros papéis no sentido de os orientar, proteger e acarinhar, constituindo-se inclusive como os seus modelos vicariantes.

Zegers, Schuengel, IJzendoorn e Janssens (2006) expõem um estudo que descreve os efeitos das representações de vinculação dos adolescentes e dos seus cuidadores na instituição. Em 81 adolescentes e 31 cuidadores constatou-se que as representações de vinculação estavam fortemente correlacionadas com o aumento da confiança com os mentores e uma diminuição do evitamento com os funcionários da instituição. Ao mesmo tempo os autores constataram que as representações de vinculação dos mentores eram preditoras das mudanças na percepção dos adolescentes face ao conceito de si enquanto figuras merecedoras de apoio, melhorando significativamente o seu desempenho nas relações interpessoais.

Mais recentemente Hawkins-Rodgers (2007) apresenta um programa de reorganização do comportamento de vinculação e da construção do processo resiliente em adolescentes institucionalizados tendo como base a intervenção realizada pelos mentores e funcionários das instituições. A construção da resiliência e o desenvolvimento de competências sociais proporcionavam aos adolescentes a possibilidade de conduzir relações de longo termo, denotando e experienciando respostas empáticas face às situações traumáticas, para além da aprendizagem de estratégias de coping. Os cuidadores representavam figuras que trabalham na reorganização interna dos modelos internos dinâmicos dos jovens, moderando os comportamentos e proporcionando o que a autora designa de “intervenções de ensino terapêutico”. Este tipo de intervenções centravam-se na transmissão de níveis consistentes de segurança para explorar novos comportamentos de vinculação no sentido de promover maiores níveis de resiliência. A relação com os funcionários da instituição representaria, portanto, um esforço contínuo no sentido de uma positiva e substantiva mudança na vida dos adolescentes com vista a um maior ajustamento.

Ainda nesta perspectiva Simsek, Erol, Öztop e Munir (2007), num estudo conduzido com 461 adolescentes, sugerem que o contacto regular e o envolvimento afectivo com as figuras parentais, os professores e os funcionários da instituição determinavam uma percepção de maior suporte social, potenciando o desenvolvimento de factores de protecção face aos problemas emocionais e comportamentais. Não podemos deixar de comentar que o facto dos adolescentes integrarem este meio, muitas vezes torna-se extremamente recompensador sob o ponto de vista da melhoria da qualidade de vida, não só na sua vertente económica, mas

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também pelo ganho de estabilidade nas relações que podem assumir verdadeiras ligações de vinculação.

O desenvolvimento destes trabalhos vem ao encontro do objectivo geral desta análise, permitindo perceber as implicações das relações na instituição e a possibilidade de aperfeiçoar as condições de intervenção com jovens que experienciavam situações de privação contínua. A identificação dos factores de risco e factores protectores possibilita o trabalho dos adultos implicados na educação e desenvolvimento destes jovens, promovendo o seu desenvolvimento emocional e comportamental, eliminando o estigma e a discriminação que frequentemente circunda este contexto.