• Nenhum resultado encontrado

Vicissitudes no Processo de Vinculação do Adolescente

1. Risco, vulnerabilidade e resiliência na adolescência

1.1. Factores de desorganização na qualidade da vinculação

1.1.1. Maus-Tratos e o processo de vinculação

Os modelos contextuais e desenvolvimentistas (Belsky, 1984, 1999; Belsky & Jaffee, 2006; Bronfenbrenner, 1979) defendem a compreensão do desenvolvimento e comportamentos individuais através de uma leitura ecológica em que o indivíduo é capaz de

Vinculação Desorganizada Psicopatologia

Desempenho das Figuras Parentais

Ausência de

Caregiving Regulação Emocional

Negativa Intolerância/ Desorganização Parental Padrão de Vinculação Parental Inseguro Factores Individuais: -Género -Temperamento -Nível Desenvolvimental Factores Sociais/Económicos Factores Familiares/ Extra- Familiares Co-Parentalidade

Capítulo I I – Vicissitudes no Processo de Vinculação do Adolescente

__________________________________________________________________________________________________________________ 47

influenciar e ser influenciado por outros sistemas. Nesta medida, e tal como ficou esclarecido no ponto anterior, a relação que as figuras parentais estão capazes de estabelecer com os filhos parece determinar um importante preditor de organização da vinculação e mais concretamente da base segura das crianças. A desorganização da vinculação parental pode portanto originar comportamentos, como maus-tratos ou negligência, que colocam em risco o bem-estar da criança.

Os maus tratos constituem um tema de certa forma controverso, pela sua dificuldade em encontrar consenso ou estabelecer limites. Em muitos casos podem ser confundidos pelos cuidadores com tipos de educação e disciplina, não percebendo o quanto prejudicial pode ser para os jovens que vão interiorizando modelos negativos de si e dos outros.

Neste sentido, de uma forma genérica, uma aproximação da definição de maus tratos seria:

“qualquer forma de tratamento físico e (ou) emocional, não acidental e inadequado, resultante de disfunções e (ou) carências nas relações entre crianças e jovens, num contexto de uma relação de responsabilidade, confiança e (ou) poder. Podem manifestar-se por comportamentos activos (físicos, emocionais ou sexuais) ou passivos (omissão ou negligência nos cuidados e (ou) afectos. Pela maneira reiterada como geralmente acontecem, privam o menor dos seus direitos e liberdades, afectando, de forma concreta ou potencial, a sua saúde, desenvolvimento (físico, psicológico e social) e (ou) dignidade” (Magalhães, 2004, p. 33).

A negligência, por sua vez, é uma forma de maus-tratos em que o prestador de cuidados não garante o cumprimento das necessidades básicas de alimentação, higiene, educação e vigilância das actividades da criança (Alberto, 2004). Esta questão associa-se com a fragilidade da criança muitas vezes tida como um “objecto propriedade” das figuras cuidadoras.

Note-se que os maus tratos são descritos como um risco não só no momento em que ocorrem, mas também com efeitos ao longo do ciclo de vida. A mãe ou a figura primária cuidadora é, muitas vezes, a perpetradora dos maus tratos, frequentemente numa réplica do que ela própria em tempos fora vítima (Main & Hesse, 1990).

Nos anos 80 alguns estudos foram realizados de encontro a esta temática. Ainsworth com o paradigma da “Situação Estranha” observou crianças vítimas de maus tratos chegando-

se à conclusão que as suas vinculações eram inseguras, designadamente evitantes e resistentes (Main & Hesse, 1990). Partindo destes estudos, e como se referiu no ponto anterior, Main evidenciou que, em alguns casos, os pais destas crianças teriam sido vítima de negligência, o que teria tido um profundo impacto nas relações de vinculação desenvolvidas. Baseadas nestas observações, Main e Salomon (1986) identificaram adolescentes e adultos com histórias de pobreza de desempenho das figuras parentais em criança assumiam uma maior tendência para desenvolver modelos de vinculação insegura. Pais que têm medo e procuram segurança na criança (por inversão de papéis) parecem ser incapazes de prestar cuidados adequadamente, já eles próprios desenvolvem uma vinculação desorganizada (Main & Hesse, 1990).

Estudos posteriores têm vindo a analisar esta questão corroborando a ideia de que os maus tratos ou comportamentos negligentes (que não seriam realizados com intencionalidade de prejuízo da criança) comprometem significativamente o processo de vinculação da criança. Goldberg, Muir e Herr (2000) referem que crianças vítimas de comportamentos negligentes em idades precoces revelam dificuldades no desenvolvimento de comportamentos de vinculação como choro, sorriso, vocalização, preensão e seguimento aos 48 meses. Por outro lado, crianças e jovens com figuras cuidadoras ausentes, descrevem as suas relações como confusas e menos satisfatórias. Modelos de relacionamento com a mãe percebidos como pouco apoiantes parecem resultar em sintomatologia depressiva e percepção de baixas competências pessoais e sociais nos jovens (e.g. Connell & Wellborn, 1991; Lynch & Cichetti, 1991).

Estudos desta natureza são fundamentais para a análise da qualidade da ligação com a mãe, propondo algumas pistas face aos efeitos dos maus-tratos. De uma forma geral, as representações mentais dos jovens maltratados revelam relações caracterizadas por expectativas interpessoais negativas e dificuldade em resolver problemas relacionais, reflectindo um foco de dinâmica negativa nas relações afectivas (Shields, Ryan & Cicchetti, 2001). Percebe-se uma influência no desenvolvimento dos modelos internos constatando-se dificuldades de adaptação. Goldberg, Muir e Herr (2000) propuseram que a ausência de uma vinculação segura poderia predizer o reavivar das memórias de abuso, assim como desencadear um elevado número de desordens da personalidade, incluindo evitamento, dependência e mecanismos desadaptativos de defesa do self.

Capítulo I I – Vicissitudes no Processo de Vinculação do Adolescente

__________________________________________________________________________________________________________________ 49

Alguns factores permitem explicar o desenvolvimento destes prejuízos provocados deliberadamente de uma forma activa ou passiva por um adulto. Sousa, Martins e Fonseca (1993) consideram que a etiologia deste fenómeno pode dever-se a aspectos vários, nomeadamente às características pessoais das figuras cuidadoras. O bem estar dos pais ou figuras cuidadoras é um factor determinante para a qualidade da relação de vinculação. As mães que demonstram uma elevada ansiedade pré-natal são mais susceptíveis de ter crianças classificadas como inseguras. Lurigio, Skogan e Davis (1990) sublinham que figuras que teriam sido elas próprias maltratados de forma activa ou negligenciadas, apresentavam maior tendência a reproduzir o comportamento criando novas gerações de indivíduos inseguros e violentos. Consequentemente as práticas educativas deste tipo de indivíduos tenderiam a ser de agressão constante aos filhos. Pais inseguros quanto ao seu valor, incapazes de compreender o desenvolvimento dos filhos, tendem a ser demasiado exigentes. Smith (1984) acrescenta, ainda, que este tipo de figuras cuidadoras são psicologicamente rígidas, impulsivas, com baixo registo afectivo e marcadas por sentimentos de isolamento.

Evidências apresentadas por Egeland e Farber (1984) mostram que a vinculação insegura tem uma ligação sistemática com a personalidade, bem como com a conduta da mãe (rigidez, compulsividade ou perfeccionismo), e ainda com alterações emocionais, como é o caso das depressões. Estas características encontram-se muitas vezes presentes ao longo de todo o desenvolvimento da criança, pelo que a transmissão intergeracional de insegurança e medo se tornam inevitáveis. A percepção de uma mãe/cuidador inacessível, pouco presente e disponível traduz uma vinculação desorganizada, que mais tarde culmina em dificuldades emocionais e adaptativas no adolescente, aumentando a vulnerabilidade e o risco de manter condutas desviantes (Colin, 1996).

Guidano (1987, 1991) desenvolve a este propósito um modelo teórico que relaciona os padrões disfuncionais de vinculação e diferentes organizações de significado pessoal que se prendem com a construção do auto - conhecimento. Guidano e Liotti (1983) trabalham na linha de Bowlby no que respeita à construção de modelos complementares do self e da figura de vinculação. Por conseguinte a forma como a criança percebe as experiências precoces parece recriar uma imagem que lhe permite construir o conhecimento do self e do mundo. Numa escalada desenvolvimental, a infância seria assim marcada por um conhecimento implícito que permitiria a regulação da construção de experiências posteriores. Por sua vez, na

etapa da adolescência, com a emergência do pensamento abstrato, os conhecimentos adquiridos numa primeira fase seriam elaborados e reflectidos pelo jovem, transformando as suas crenças sobre a relação. Só assim seria possível que o jovem pudesse pensar sobre si mesmo, dando lugar ao auto - conhecimento explícito e à consciência que define a sua identidade. Nesta medida, de acordo com os autores, acontecimentos de natureza afectiva percebidos pela criança (nomeadamente perdas, restrições, ambivalências, negligências e/ou rejeição parental) poderiam corresponder a fracassos sistemáticos impedindo a criança de estabelecer relações seguras. Este padrão comportamental por parte dos pais levaria, segundo Guidano (1991), à elaboração de perturbações psicopatológicas (como organizações depressivas, fóbicas, obsessivo-compulsivas e distúrbios alimentares) por parte destas crianças e jovens.

Ainda no âmbito dos maus-tratos e da negligência cabe ressaltar, paralelamente aos aspectos relacionados com a personalidade das figuras parentais, alguns factores de ordem

sócio-situacional que podem agravar o processo de disfuncionalidade da vinculação. Assim,

factores de stress e frustração vivenciados em consequência da pertença a um meio social e afectivo desfavorecido, muitas vezes marcados pelo isolamento social podem conduzir ao fenómeno dos maus-tratos. Este fenómeno não se prende todavia, apenas com os estratos sociais desfavorecidos. Na realidade os maus-tratos, assim como outras variáveis, como por exemplo os conflitos interparentais, estão presentes em todos os níveis sócio-económicos. A forma como os jovens percebem este ambiente é fundamental para a elaboração dos seus modelos internos, traduzindo um forte impacto na formação das ligações de vinculação futuras (Miljkovitch, 2004).

A permanência num ambiente de instabilidade e conflitos associados a violência podem levar a que os jovens exibam uma variedade de estratégias de ajustamento que se ligam à internalização e externalização de comportamentos. A investigação tem vindo a demonstrar consistência na ideia de que uma má relação marital e o conflito interparental estão bastante associados a dificuldades de ajustamento dos jovens. O conflito marital parece associar-se a sentimentos depressivos, retraimento, competências sociais empobrecidas, problemas de saúde e alterações da conduta das figuras cuidadoras remetendo-as para uma indisponibilidade pessoal (Grych & Cardoza-Fernandes, 2001).

Capítulo I I – Vicissitudes no Processo de Vinculação do Adolescente

__________________________________________________________________________________________________________________ 51

Na continuidade deste capítulo, será apontada a importância da qualidade das relações estabelecidas com as figuras cuidadoras enquanto processo reorganizador. Esta questão é um elemento fundamental para o presente estudo já que ajudará a compreender, por um lado, a inevitabilidade que os jovens vivem face a variáveis de risco e, por outro lado, a possibilidade de ultrapassar barreiras e viver de forma mais adaptativa recorrendo a elementos externos ao seu seio familiar enquanto elementos securizantes.