• Nenhum resultado encontrado

Fernando Pessoa e os heterônimos

No documento Portugues (páginas 51-55)

Fernando Pessoa (1888-1935) é certamente o autor de maior destaque do Modernismo português. Além da literatura publicada em seu nome, é autor de obras assinadas por mais de 70 heterônimos com caracte-

rísticas próprias. Os principais são Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, que têm não só estilo próprio, mas também biografia e convicções ideológicas.

Fernando Pessoa

A obra lírica assinada pelo próprio Fernando Pessoa, reunida em Cancioneiro, retoma a tradição portugue-

sa e tem duas inclinações. Uma delas é o sensacionismo, segundo o qual as experiências conscientes provêm

de sensações, que podem ser expressas nas estruturas do poema. A outra é o interseccionismo, que invoca tais sensações para relacionar o mundo interior com o exterior, gerando um novo ambiente em que essas duas

51

Modernismo por

tuguês

esferas são inseparáveis. A metalinguagem também se faz presente na obra do autor, que reflete so- bre a vida e a arte e, frequentemente, aborda o tema da criação literária, principalmente a questão da

sinceridade na literatura.

Pessoa também é autor de Mensagem, obra épica que escreveu ao longo da vida, em que narra

a história e as glórias de Portugal, dialogando com Os Lusíadas, de Camões. Mensagem é associada

ao movimento saudosista, mas também é marcada pela ironia com que retrata o desequilíbrio de heróis portugueses, como dom Sebastião. É uma obra inovadora, cujos temas recorrentes são a saudade e a melancolia, distanciando-se da estrutura rigorosa dos poemas épicos.

Alberto Caeiro

A obra assinada por esse heterônimo tem caráter intelectual, abstrato e filosófico, e aborda o pen- samento e o conhecimento. Apesar disso, defende a simplicidade no contato com as coisas, sem a interferência da racionalização, e o uso dos sentidos para viver o momento com espontaneidade, longe de idealizações e teorias. Por isso, Pessoa e os outros heterônimos o viam como seu mestre.

Ricardo Reis

Inspirado por Alberto Caeiro, Ricardo Reis exalta a vida no campo como forma de se aproxi- mar da simplicidade e da espontaneidade, empregando a tradição do Arcadismo, que também influencia os aspectos formais de sua obra. Ela reflete sua visão sobre a inevitabilidade da morte e a passagem do tempo, mostrando a inutilidade dos bens materiais e do apego.

Álvaro de Campos

O último heterônimo contrapõe-se aos demais por ser um homem urbano, influenciado pelo Futurismo em sua exultação da técnica e da modernidade. Todavia, a postura entusiástica é somente uma de suas fases, que também refletem a descrença nessa mesma modernidade e a

crítica à decadência das relações humanas, que lhe causam amargura e vazio, como revelam estes versos de “Poema em linha reta”:

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu um enxovalho, Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida… Quem me dera ouvir de alguém a voz humana,

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? [...]

Pessoa, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 352-353.

52

Questões

Todas as questões f

oram reproduz

idas das pro

vas or

iginais de que fazem par

te.

(Mackenzie-SP) Texto para as questões de 1 a 3.

O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê, Nem ver quando se pensa.

Mas isso (triste de nós que trazemos a alma [vestida!)

Isso exige um estudo profundo, Uma aprendizagem de desaprender [...].

Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.

1. No contexto da obra do poeta, a imagem alma vestida (verso 6) pode ser cor-

retamente compreendida assim:

a) Desde a infância o indivíduo incorpora valores culturais com os quais de- fine sua percepção de mundo e de vida.

b) O ser humano é fundamentalmente mesquinho: nunca se revela sincero nos relacionamentos.

c) Porque nascemos com o pecado original, a realização religiosa estará sem- pre comprometida.

d) A essência da alma humana é inatingível.

e) Nosso espírito está sempre protegido dos apelos mundanos.

2. As estrofes confirmam a ideia de que, para Caeiro, o homem deve estabelecer

com o mundo uma relação eminentemente: a) metafísica.

b) emotiva. c) racional. d) sensorial. e) espiritual.

3. Considere os seguintes aspectos da poesia de Caeiro: a liberdade formal, o

vocabulário simples e a tendência ao discurso redundante. No contexto da obra do poeta esses traços:

a) são coerentes com o modo de ser despojado de um eu que busca integrar- -se plenamente na natureza, avesso, portanto, a requintes estéticos. b) são índices da relevante influência que o movimento futurista exerceu so-

bre Fernando Pessoa, criador do heterônimo.

c) são reflexos do equilíbrio interior de Caeiro, coerente, pois, com uma con- cepção clássica de vida.

d) revelam certa falta de maturidade estética do próprio Fernando Pessoa, já que Caeiro foi seu primeiro heterônimo.

e) são contrários a uma proposta modernista e, por isso, coerentes com o fato de esse heterônimo, segundo seu criador, ter vivido em época muito antiga.

4. (Uepa)

Como aludido, Ricardo Reis é um poeta doutrinário. Ele considera a existência humana um jogo em que, por definição, sairemos derro- tados – o xeque-mate nos é aplicado pelas mãos hábeis e insondáveis do Destino.

oliveira, Paulo. Revista Discutindo Literatura, ano 1, 2. ed.

Segundo a citação, Ricardo Reis – heterônimo pagão de Fernando Pessoa – põe a existência humana nas mãos das forças irrevogáveis do Destino. Há momentos que seus versos inflamam-se de tamanha consciência da brevi-

1 2 3 4 5 6 7 8 1. Resposta: a

A – CERTA – No poema, o eu lírico lamenta que a alma esteja vestida, referindo-se aos valores culturais que medeiam a relação do sujeito com o mundo, impedindo a visão verdadeira das coisas.

B – ERRADA – O poema reflete sobre como o homem deve interagir com o mundo e valoriza o ato de ver como fonte de conhecimento; não há referência a relações interpessoais. C – ERRADA – A referência à “alma” não leva o poema para o universo religioso; Caeiro rejeita concepções metafísicas.

D – ERRADA – Ao lamentar que a alma esteja vestida, o eu lírico refere-se à impossibilidade de se ver realmente o mundo e não a uma ten- tativa frustrada de compreender a própria in- terioridade.

E – ERRADA – A vestimenta da alma não é vista como aquilo que a protege, mas sim como o obstáculo para a real interação do sujeito com o mundo.

2. Resposta: d

Para Caeiro, o mundo só pode ser conhecido com a aplicação dos sentidos (“O essencial é saber ver”), dispensando o uso dos sentimen- tos (alternativa “b”), do pensamento racional/ científico (alternativa “c”) e de referências religiosas/transcendentais (alternativas “a” e “e”).

3. Resposta: a

A - CERTA – As construções linguísticas mais simples estão adequadas ao pensamento de Caeiro, que valoriza o contato com a natureza e a simplicidade do pensamento, conduzido pelos sentidos, sem o apoio de tradições culturais. B – ERRADA – Álvaro de Campos, outro heterô- nimo de Fernando Pessoa, revela influência do Futurismo em seus poemas sobre temas con- temporâneos e urbanos, marcados pelo ritmo febril que imita as máquinas. Tal influência não é sentida em Caeiro.

C – ERRADA – Ricardo Reis, também heterôni- mo criado por Fernando Pessoa, apoia-se nas concepções clássicas da vida, retomando ideias como o carpe diem, a busca pela felici- dade moderada ou a indiferença frente às leis do destino. Essa tradição, provinda da filosofia clássica, não é vista nos poemas de Caeiro. D – ERRADA – A opção por um estilo mais sim- ples resulta de uma operação consciente por parte de Fernando Pessoa, que busca a coe- rência de seu heterônimo, e não de uma fragi- lidade técnica.

E – ERRADA – Segundo Fernando Pessoa, Caeiro teria vivido entre 1889 e 1915.

53

Modernismo por

tuguês

dade da vida, que beiram a um pessimismo esnobe por considerar-se úni- co sabedor de que tudo passa. Deste modo investe-se de certo didatismo e convida o leitor a atentar para a consciência de que nada somos, de que nada sabemos. Com base na citação e nessa afirmação, interprete os ver- sos em que o poeta, afastando-se dessa linha, propõe uma meta apenas para si próprio.

a) “Ninguém, na vasta selva virgem Do mundo inumerável, finalmente Vê o Deus que conhece.”

b) “Seja qual for o certo, Mesmo para com esses

Que cremos sejam deuses, não sejamos Inteiros numa fé talvez sem causa.” c) “Deixemos, Lídia, a ciência que não põe Mais flores do que a Flora pelos campos Nem dá de Apolo ao carro

Outro curso que Apolo.” d) “Quero ignorado, e calmo Por ignorado, e próprio Por calmo encher meus dias. De não querer mais deles.” e) “Não te destines que não és futura. Quem sabe se, entre a taça que esvazias, E ela de novo enchida, não te há sorte Interpõe o abismo?”

5. (Unicamp-SP) No poema abaixo, Alberto Caeiro compara o trabalho do poeta

com o do carpinteiro.

XXXVI

E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas! ... Que triste não saber florir!

Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um [muro

E ver se está bem, e tirar se não está! ... Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. Penso nisto, não como quem pensa, mas como

[quem respira,

E olho para as flores e sorrio... Não sei se elas me compreendem Nem se eu as compreendo a elas,

Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade

De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao colo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermos E não termos sonhos no nosso sono.

Poemas completos de Alberto Caeiro. In: Pessoa, Fernando.

Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar. 1983. p. 156.

a) Por que tal comparação é feita? Por que ela é rejeitada pelo eu lírico na se- gunda estrofe do poema? Justifique sua resposta.

b) Identifique duas características próprias da visão de mundo de Alberto Caeiro presentes na terceira estrofe. Justifique sua resposta.

4. Resposta: d

A – ERRADA – Os versos trazem considerações de caráter genérico (“ninguém”) sobre a ine- xorabilidade do Destino, sugerindo que, mes- mo que antecipado pelo pensamento, ele será sempre desconhecido.

B – ERRADA – Os versos incluem o leitor na re- flexão, sugerindo que ambos – eu lírico e leitor – estejam atentos às condições do Destino, sem aderir integralmente a uma crença. C – ERRADA – As considerações sobre o mundo aparecem como orientação para Lídia, sua in- terlocutora, portanto, não há uma meta exclu- sivamente pessoal.

D – CERTA – A reflexão sobre o destino e o de- sejo de não lutar contra suas leis envolvem exclusivamente o eu lírico, que confessa o de- sejo de manter-se lúcido e calmo diante da consciência da brevidade da vida.

E – ERRADA – O eu lírico sugere a imprevisibili- dade da morte (a “sorte” que se pode colocar entre o esvaziar e o encher novamente uma taça) a partir de uma pergunta dirigida ao in- terlocutor, sugerindo um conhecimento supe- rior das leis da existência humana.

5. Respostas:

a) O eu lírico sugere que o “poeta” e o “car- pinteiro” aproximam-se por realizar um traba- lho calculado e técnico, representado na ima- gem da “construção de um muro”. Essa con- cepção racional da arte é rejeitada na segunda estrofe, na qual o eu lírico propõe uma con- cepção mais próxima da harmonia e da espon- taneidade da natureza.

b) Na terceira estrofe, afirma-se a preferência pela compreensão direta das coisas, sem a in- tromissão da cultura ou da metafísica, eviden- ciada no verso “Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,”. O verso tam- bém mostra a valorização da apreensão senso- rial, evidente, igualmente, em “E olho para as flores e sorrio.../Não sei se elas me compreen- dem/nem se eu as compreendo a elas,”. Nota- -se também o objetivismo, presente em “Mas sei que a verdade está nelas e em mim”.

54

Modernismo no Brasil -

No documento Portugues (páginas 51-55)