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A proposta do ordenamento social e político, encontrada nas ideias de Carvalho Neto, encontrava ressonância no momento político do país, considerando-se o primeiro período do Governo Vargas (1930 – 1945) no poder majoritário do Brasil. Os acontecimentos ocorridos ______________

na primeira fase do que se chamou “Nova República”, nos interregnos (1946 – 1950) daquele Governo e no que se seguiu pós II Guerra Mundial, mobilizaram as práticas voltadas para a defesa da liberdade, expressão recorrente na produção da cultura jurídica escrita e praticada por Carvalho Neto.

Fatos ocorridos entre os Governos Vargas e Dutra, nos quais houve as tentativas de mudanças que visavam, entre outras coisas, a novas relações exteriores do Brasil com os Estados Unidos, foram questões bastante discutidas por diversos historiadores, num conjunto de textos organizados por Marcelo de Paiva Abreu (1990), e nos colocam em contato com o pensamento social que se configurava na dimensão daquele tempo social e histórico. O reforço às agências reguladoras do Governo90, em níveis culturais, econômicos e políticos, mobilizava os agentes sociais do Governo e os intelectuais que participavam daqueles acontecimentos, em suas diversas instâncias.

O Brasil passava, naquele período, por movimentos que mobilizaram vários grupos sociais, como os militares, que procuravam garantir seu projeto político a partir da Segurança Nacional, e a Igreja Católica, que procurava estabelecer “os princípios básicos da ordem social cristã” (HORTA, 1994, p. 98), ao mesmo tempo em que defendia também o ensino livre.

Aqueles feitos se refletiram na educação a partir de movimentos como a Escola Nova, ou “Escolas Novas”, propostas por intelectuais como Anísio Teixeira, que, na análise de Clarice Nunes (2000), fundou sua filosofia de educação sob o pensamento de John Dewey, o que para ela o fez preservar sua fé na religião ao mesmo tempo em que abraçava a ciência.

A preservação, em Dewey, daquele momento de comoção diante do cosmo foi fundamental para Anísio, pois lhe permitiu manter intacta a fé religiosa, mesmo abraçando a ciência e apesar das críticas que formulou à Igreja enquanto instituição histórica e organização política. Por outro lado, a concepção da fé como sustentáculo e, ao mesmo tempo, dependência de um mundo circundante (e real) criou-lhe, simbolicamente, um escudo protetor para a sua ação no mundo e sua responsabilidade diante do futuro. Dewey reforçou em Anísio a intuição da possibilidade da aliança entre o político e o místico, entendendo-se por místico não mais o enlevo sobrenatural, mas o movimento de jogar sua inteligência e sentimento na conversão do seu pensamento em ação e da sua imaginação em experiência social (NUNES, 2000, p. 151).

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90 Em análise sobre cem anos de política econômica no Brasil República (1889 – 1989), Marcelo Abreu afirmou que entre 1937 e 1945 a estrutura partidária que havia permitido terreno consensual para a chamada “Revolução” buscava, naquele momento, centralização das forças governamentais, por meio da qual a instituição das agências reguladoras no âmbito econômico e social permitiu, mesmo que de forma “ambígua”, favorecimento à classe operária. Cf. Abreu, 1990. Cf. Dantas, 1983; 1989.

Desta forma, encontrei na história de intelectuais como Anísio Teixeira, sob a perspectiva do olhar que Clarice Nunes (2000) empreendeu à sua trajetória, aproximação com as apropriações que tenho feito sobre a trajetória de Carvalho Neto, objeto do estudo em tela, no que tange aos ideais e ideias lançadas para a configuração de um Brasil melhor.

Para além de Advogados (1946), obra central desta seção, um conjunto de textos organizados por Carvalho Neto me levaram a desafiar as concepções aqui formadas sobre as aproximações do jurista Carvalho Neto com as ideias e pensamentos difundidos no Brasil República. Vários fatores me permitiram chegar a tais conclusões, mesmo que provisórias e inconclusas, como qualquer pesquisa.

Num conjunto de textos denominado Fragmentos, publicado no mesmo ano de publicação do livro Advogados, no qual registrou sua luta entre o poder religioso e o temporal, o que não só lhe custou críticas dos seus adversos como também lhe provocou a necessidade de explicar à sociedade suas escolhas religiosas, Carvalho Neto denominou esta questão de “Delicado problema da Fé” (CARVALHO NETO, Diário de Sergipe, 1946).

[...] E entre quantos símbolos de veneração, de estima, de admiração, figuram em minha biblioteca – onde dois terços do meu tempo útil se consomem no estudo da ciência, na pesquisa da verdade, na contemplação do belo – é ele, SANTO ANTÔNIO, na sua efígie de doçura e bondade, que ilumina o meu espírito e eleva a minha profissão. Ou seja, nas telas de MURILO, ou de RAFAEL, que o gravaram para a adoração da cristandade com aquela serenidade de expressão acolhedora, ou dos afrescos de GOYA, representando-o com a mesma fisionomia de suavidade apascentadôra, o certo é que a arte o popularizou como é geralmente conhecido: – no seu severo hábito franciscano, tendo um livro na mão, e nos braços, aconchegada ao peito, a imagem de um menino. CASTRO ALVES, que foi Antônio, assim o evocou: “Quando ante Deus vos mostrardes, tereis um livro na mão”. Esse menino é bem um símbolo de proteção; esse livro um sinal de estudo, de meditação. Para os que estudam, SANTO ANTÔNIO é um guia, um amparo, uma inspiração (CARVALHO NETO, Diário de Sergipe, 1946, grifo do autor).

Em grande medida, os conflitos entre a razão e a fé se refletiram na vida e obra de Carvalho Neto e de diversos intelectuais contemporâneos ao seu tempo histórico, o que motivou aquele intelectual a dar respostas, ao mesmo tempo em que fez questão de falar sobre sua vida familiar, amigos, para, por meio de minhas apropriações, dar a entender sua relação entre o espaço que ocupava na sociedade e o lugar sagrado de sua família.

Nas homenagens recebidas pela publicação do livro Advogados (1946), Ribeiro (1946) destacara sua ligação com a religião, ao fazer referência do autor com o humanista cristão, Jacques Maritain91, conferindo esta associação à formação moral de Carvalho Neto.

[...] Não é um conformado. Com Maritain, vê, “que é preciso mudar o mundo burguês”. E sabe com o grande filósofo que “Exige, contudo, essa transformação, de um lado, que se respeitam as exigências essenciais da natureza humana, esta imagem de Deus, e êste primado de valores transcendentes, que permitem justamente e escorvam um renovamento; de outro lado, que se compreenda que tal modificação não é obra do homem somente, mas de Deus, em primeiro lugar e do homem com ele, e que não é efeito de meios extrínsecos e mecânicos, mas de princípios vitais e eternos: é este o ensinamento do cristianismo de sempre”. Em uma expressão: busca o humanismo teocêntrico. Quem não compreender a natureza religiosa do mestre, o temperamento místico, o amante encantado das vidas de Sto.

Antônio, terá deixado escapar o mais delicado, o mais poético de sua

personalidade, aquilo que esclarece algumas de suas renúncias. [...] Natureza rica, feita de contrastes e de paixões intensas, tem os pés na terra, plantado nela seguramente, mas a sua fronte enfrenta ousada o infinito. O pensamento nele é manifestação de vida. Não lhe sucede o que soe acontecer a outros homens, em que as ideias são etéreas, não correspondendo às realidades, talvez adequadas ao mundo lunar, mas longe das palpitações da existência coletiva (RIBEIRO, 1946, p. 7, grifo do autor).

Na perspectiva desta análise, Ribeiro também afirmara que Carvalho Neto via o conhecimento em movimento, o que conferia mobilidade a seu pensamento. “O direito é encarado em relação ao fim para que serve e em relação ao seu valor. É fato social, mas também é um fato cultural” (RIBEIRO, 1946, p. 9, grifo nosso).

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91

Jacques Maritain (1882 – 1973) nasceu em Paris, numa família liberal e protestante. Licenciou-se em Filosofia na Sorbonne, em 1905, onde conheceu Raissa Oumansoff, com quem se casou e o ajudou como escritor. Tornou-se neotomista, aos 27 anos e, a partir daí, foi um dos mais importantes filósofos leigos da história da Igreja Católica contemporânea. Perseguido no início da ocupação nazista de Paris, exilou-se no Canadá e nos EUA, onde foi professor na Universidade de Toronto, Princeton e Columbia (Nova Iorque). Apoiou De Gaulle durante a Resistência (1939 – 1945) e, logo a seguir à libertação, foi nomeado embaixador da França junto da Santa Sé (1945 – 1948). Morreu em Toulouse. A sua obra influenciou muito o partido social cristão francês

Mouvement Republicain Populaire (MRP), que foi durante alguns anos o maior partido do país, situado no

centro-esquerda. Maritain foi um dos principais inspiradores, através da Unesco, da Declaração Universal dos

Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, e ainda hoje em vigor. Seus livros tiveram grande

repercussão na Europa, nos EUA e na América Latina. Foram proibidos na Espanha de Franco e “desencorajados” no Portugal de Salazar (nenhum de seus livros foi traduzido para português), salvo o

Humanismo integral e apenas em 1963, com 27 anos de atraso, segundo Amaral (2001). Suas principais obras

foram: Humanismo integral (1936); Direitos do homem e democracia (1942); Cristianismo e democracia (1942); O homem e o Estado (1951). Jacques Maritain foi crítico do Liberalismo, do Socialismo e apresentou proposta de uma terceira via de filosofia política e social, fundamentada na “inspiração cristã”. Cf. Maritain, 1945; 1963; 1999; 2005. Cf. Amaral, 2011. O livro de Amaral trata da História do pensamento político

4.6 FÉ, RAZÃO E HUMANIDADES: A ESTÉTICA DA ARTE E DO CONHECIMENTO