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Polissemia talvez seja o vocábulo mais adequado para tomar de empréstimo na escolha da análise sobre a produção intelectual do jurista Antônio Manoel de Carvalho Neto (1889 – 1954). A escolha da palavra condiz com a interpretação que realizo ao analisar o conjunto de textos escritos por Carvalho Neto e enxergar, na leitura que faço deste intelectual, a possibilidade de somar esta pesquisa à perspectiva que se tem no campo da História da Educação e, em específico, no campo dos estudos dos intelectuais, sob as condições exigidas e pertinentes para que coloquemos homens e mulheres em destaque na História da Educação do Brasil.

O que me interessa, nesta abordagem, é comprovar que a produção intelectual de Carvalho Neto se fez presente nos assuntos referentes à Educação no Brasil. Nesta direção, sigo orientação que alarga o sentido da palavra intelectual, mobilizando-a na História, tirando- a de um espaço único, configurando-a como um espírito semovente.

Esta eleição me permitiu olhar para Carvalho Neto como um intelectual da educação a partir de seu lugar de produção, reconhecido pela sua representação no campo do Direito:

como advogado, ao ter o nome escolhido para ocupar o cargo de primeiro presidente da Academia Sergipana de Letras (1929), primeiro presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, secção Sergipe, por ter sido Presidente do Conselho Penitenciário do estado de Sergipe, fundador da Faculdade de Direito em 1950, magistrado e político, atuando como jornalista em diversos periódicos sergipanos, como Diário da Manhã, Sergipe Jornal (do qual fora diretor-redator) e Correio de Aracaju.

Desta forma, penso em Carvalho Neto e analiso aquele espirito de school, para tomar uma expressão dele próprio e seu tempo, como um homem de formação cultural e acadêmica sólida, que se relacionou com o campo de poder no estado de Sergipe em vários momentos da vida, no campo intelectual, político, social, literário e jornalístico, bem como um agente que soube bem produzir seu espaço social, adquirir e mobilizar seu capital intelectual, cultural, científico, para se transformar num agente que absorvia bem e se inteirava nas perspectivas das demandas de seu tempo.

Foi deste modo que, no campo de Direito e político, sua voz reverberou no tempo, e é possível, por tais razões, nos objetivos assinalados desta tese, intercalá-lo na história daqueles intelectuais que tiveram uma larga experiência no campo político e intelectual, como Gustavo Capanema81 teve no período Vargas (1930 – 1945), a exemplo também de Anísio Teixeira82 e Fernando de Azevedo83, que tiveram intensa participação nas reformas educacionais da década de 1920 e, em períodos posteriores àquelas reformas, por terem sido reconhecidos e considerados homens capazes de transitar no campo educacional pela extensa e intensa formação intelectual; o que os levou a serem conhecidos como ícones da “Escola Nova” no país.

Aqueles intelectuais foram os clercs da modernidade brasileira sobre os quais, segundo a análise de Helena Bomeny (2001), a História da Educação tem se debruçado, inserindo-os num contexto sócio-político no qual as pulsações são latentes e os interesses se refletem conforme os apelos e as configurações sociais daquele período vivido; o que provocara, em escala razoável, as tensões vividas em seu tempo.

No caso dos intelectuais citados por Bomeny (2001), havia segundo ela própria um apelo a estes nomes pela estatura de seu capital cultural e social. A presença de um intelectual como Gustavo Capanema para comandar o Ministério da Educação continha uma urgência na contribuição de homens como ele na construção de um Estado Nacional; característica que ______________

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Cf. Bomeny, 2001. 82 Cf. Nunes, 2000.

não se configurava apenas nos interesses sociais, políticos e econômicos do Brasil, mas da América Latina, conforme afirma Bomeny:

Mas esse foi um movimento que não se restringiu ao Brasil. Ao contrário, perpassou toda a América Latina. A montagem de um Estado nacional com vistas ao estabelecimento de políticas de proteção para esferas importantes da vida social – educação, saúde, cultura, artes e arquitetura, patrimônio, administração etc – justificou a demanda por especialistas, envolveu intelectuais de várias áreas do saber e deu chance a homens ilustrados propositivos, ou como quis Guerreiro Ramos, pragmáticos críticos, capazes de sugerir e desenhar propostas de ação para todos esses campos. A entrada e atuação desses intelectuais e homens ilustrados diferenciam-se não apenas no estilo. Informam sobre campos distintos de concepção da política e de adesão a valores. (BOMENY, 2001, p. 7, grifo do autor).

No caso particular de Carvalho Neto, objeto de minhas investigações, em que pese não ter alçado altos postos nos cargos majoritários do país, em instituições ligadas ao ensino, como político, naquele tempo de Vargas (1930 – 1945), ele figurara em Sergipe como um articulador e seu nome estava sempre ligado à formação das proposituras do pensamento político local, vinculado a partidos como PRS (décadas de 1920 – 1930) e PSD (1945)84, nos quais mantinha um poder de mando, inclusive por sua reconhecida oralidade e capacidade de articulação do pensamento político. No período do Governo Vargas, aquele intelectual se manteve como consultor jurídico em quase todos os governos intervencionistas em Sergipe.

Nas demais funções que ele exerceu – como a de escritor, gestor à frente da Direção Geral de Instrução Pública (1918 – 1920), jornalista e orador –, elas eram legitimadas pela representação social que alcançou, por pelo menos dois motivos. O primeiro é que fazia parte de uma família com tradição oligárquica com considerável prestígio no estado; o que lhe conferia um capital social com representação social e política distintas, cuja estrutura se unia à herança familiar, como atesta Miceli (2001)85 ao estudar os intelectuais e as tensões de seu tempo histórico. Contudo, seu status de intelectual fora formado, também, pelo capital cultural, científico, que amealhou em sua própria trajetória, nos estudos das humanidades, da ciência, da literatura e artes, e da academia de Direito; não apenas pelo conhecimento adquirido nos programas das modalidades de ensino nas quais se formou, mas na vasta leitura

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Cf. Dantas, 1974; 1983; 1989. Historiador político, em suas obras O tenentismo em Sergipe (1974); A

Revolução de 1930 em Sergipe: dos tenentes aos coronéis (1983); Os partidos políticos em Sergipe (1989); e História de Sergipe: República (1889 – 2000), o autor realiza um estudo minucioso sobre a formação dos

partidos políticos do estado, seus enredos e tramas. Na seção sobre a Legislação Social desta tese, enfatizei com maior profundidade a contribuição do professor Ibarê Dantas para a construção de minha análise.

que fez da Arte, Filosofia, História, Literatura, Sociologia, dentre outros campos do conhecimento.

Carvalho Neto era o que podemos chamar de leitor atento; a ele não bastara ter uma visão panorâmica da sociedade, como também se detivera a perscrutar, escarafunchar, esquadrinhar os temas que lhe eram de interesse. Foi com estas características que lhe fora promulgada autonomia no campo jurídico. Foi por meio do campo jurídico, um dos quais transitara, que, possivelmente, tenha se destacado no campo da política; assunto que foi analisado na primeira seção desta investigação.

Não é demais recorrer a estas informações sobre Carvalho Neto e analisá-las no contexto social e político de outros intelectuais apanhados nas pesquisas em História da Educação, para tornar claro ao leitor a partir de que ponto mobilizei esforços na finalidade de destacar a questão educacional numa investigação que priorizou a análise de um conjunto de textos produzidos por aquele intelectual, nos quais aponto propostas de educação neles subjacentes.

O desafio se encontra no reconhecimento do projeto ou projetos educacionais que se mostram e se incorporam no que denominei de Tribuna Literária, quando me refiro ao conjunto de textos e obras literárias, fontes e objetos de meu estudo. Uma tribuna, porque fora dali que Carvalho Neto falara. Literária, porque se trata da investigação de textos vinculados ao conjunto de suas obras jurídicas.

O que identifico como Tribuna Literária se vincula ao uso que Carvalho Neto fez de sua oratória, adquirida desde os tempos das Tertúlias Literárias86, no ensino das humanidades, de sua experiência na Assembleia Legislativa de Sergipe, Congresso Nacional, de revistas publicadas, escritos em jornais, discursos de inaugurações, entre outros textos examinados, integrantes de sua produção intelectual. Entretanto, detive as lentes de meu olhar sob a perspectiva de um conjunto específico de textos, como no exame realizado no livro Advogados: como aprendemos, como sofremos, como vivemos (grifo nosso) (1946), que orientou os estudos desta seção da tese.

Aprender se constitui num verbo central da investigação do texto em foco, indicado no subtítulo do romance autobiográfico Advogados ou, como podemos chamar, um manual de convivência, aquisição de hábitos e habitus, constituição de um espírito da “cultura jurídica” difundida por Carvalho Neto (1946), uma vez que ali se estruturam aquelas “capacidades geradoras” das disposições objetivas, para formação, não apenas de uma peculiaridade da ______________

hexis corporal, porém, de um modo peculiar de advogar, associado às demandas teóricas, doutrinárias, a concepções fundadas na necessidade de um comportamento ético, fundamentado na Deontologia e Cultura Jurídica, produzida por um campo que procurava, naquele momento histórico, uma consolidação formativa, sustentada pela ética e moral, dois conceitos intrínsecos às teoria do Direito. Desta maneira, penso que esclareço, no desenvolvimento deste trabalho, que as disposições aqui colocadas podem ser analisadas como “disposições adquiridas, socialmente constituídas” (BOURDIEU, 2004, p. 25).

Vi, como forma de elucidar os objetivos elencados nesta investigação, a possibilidade de associar meu pensamento ao de outros autores que empreenderam pesquisas sobre os intelectuais, dando-lhes sentidos que os localizam no interesse da História da Educação no Brasil, ao terem traçado linhas de discussão sobre as investigações do tema em tela. Carlos Eduardo Vieira (2008), em sua trajetória de investigador da História Intelectual e dos Intelectuais, fez um estudo no qual destacou dois vocábulos, o de intelligentsia e intelectuais, para refletir sobre as possibilidades de ampliação da compreensão nas pesquisas do campo no Brasil.

[...] Primeiramente analisaremos os usos desses vocábulos nos cenários literários e políticos russo e francês e, na sequência, discutiremos os sentidos veiculados no âmbito das ciências sociais e da filosofia política. Exploraremos, nessa direção, o conceito de intelectual como mediador dos conflitos sociais, presente na obra de Karl Mannheim; a ideia do intelectual como dirigente e organizador da cultura, problematizada nos textos carcerários de Antônio Gramsci; e por fim, o conceito de intelectual como produtor de capital simbólico, inerente à obra de Pierre Bourdieu. [...] Concluiremos acenando para as implicações dessa discussão nas escritas da história intelectual e dos intelectuais, supondo que estas incidem, também, sobre a escrita da história da educação ou, pelo menos, sobre aquelas pesquisas e projetos que tomam os intelectuais como objeto privilegiado (VIEIRA, 2008, p. 67, grifo nosso).

Vieira (2008) estabelece, neste texto, o interesse em cogitar as possibilidades históricas nas quais os estudos dos intelectuais se inserem, ao mesmo tempo em que busca analisar a aproximação dos intelectuais com a esfera pública, quer dizer, o que eles representam, historicamente, para a sociedade e de que forma seu capital social e simbólico foi estruturado na posição de agente social, ocupada por esses intelectuais. “Abordar as crenças, as visões de mundo, as trajetórias, as redes de sociabilidade, as ideias e os projetos, as retóricas e as linguagens manipuladas” estão no interesse dos estudos empreendidos por Vieira (2008).

Ao falar do intelectual produtor e mediador social, Vieira (2008) problematizou as considerações de Sirinelli (2003) sobre o sentido polissêmico do conceito; o que leva o pesquisador a compreender a complexidade arraigada na teoria em tela, e, ao tomar o historiador francês como referência para sua abordagem, destaca os limites nela impostos ao campo da História da Educação.

Contudo, nas matrizes interpretativas da noção de intelectuais, aponto para a reflexão empreendida por Pierre Bourdieu (2004), que, ao propor em seus estudos a noção de campo, compõe uma reflexão mais ampliada sobre as formas como os intelectuais se situam e se movem neste espaço social, no qual as relações de força se estruturam e se renovam, conforme a isonomia conquistada, bem como o grau de autonomia que ali circula.

Dedicado a estudar como se produziu na História os estudos sobre os intelectuais, Vieira (2008; 2011) elegeu Gramsci como objeto de estudo, esquadrinhando as fontes produzidas pelo intelectual italiano, bem como aquilo que se produziu sobre ele.

[...] Nestes termos, considerando que o leitor ideal deste texto está interessado em pesquisa histórica, optamos pela discussão de alguns aspectos do corpus documental que encerra as ideias de Gramsci e, posteriormente, pela análise do lugar do conhecimento histórico no âmbito do projeto intelectual gramsciano. O roteiro analítico que propomos investe na discussão sobre as condições de interpretação do pensamento gramsciano. A reflexão sobre essas condições sugere minimamente duas frentes: a crítica documental, ou seja, a discussão sobre as fontes que testemunham suas ideias, uma vez que esse procedimento é condição para a leitura histórica, sobretudo pelo fato de que os processos de publicação e recepção dos seus escritos foram marcadas por profundas polêmicas teórica e política; na sequência, investiremos no entendimento do projeto intelectual gramsciano, particularmente na análise do lugar ocupado pelo conhecimento histórico na sua produção (VIEIRA, 2011, p. 75-76).

A escolha para o estudo de Vieira (2011) se pautou no pensamento histórico produzido sobre Gramsci, contrapondo-o com a própria produção deste intelectual, bem como as condições históricas que produziram a clivagem dos discursos postos. Tal procedimento metodológico assumiu, para Vieira, condição fundamental para lograr à sua pesquisa possibilidades de desencarnar a personagem histórica, humanizando-a.

A estratégia em pensar o intelectual em dimensão que insere uma época, circunstâncias políticas, econômicas, sociais, lugar de origem do discurso, recepção, ações que se seguiram, investigação das ideias, as trajetórias e o papel assumido pelos sujeitos, está presente na dissertação de mestrado de Dalva Regina de Araújo da Silva (2013), que, ao se

debruçar sobre a questão educacional do Império brasileiro, elegeu a “agenda política” de Joaquim Nabuco como foco de sua pesquisa.

Orientada por Chamon (2009); Faria Filho (2009); Inácio (2009), Veiga (2007), Vieira (2008; 2012), entre outros autores, Silva (2013) analisou a trajetória de Joaquim Nabuco à luz da teoria de Sirinelli (2003), ao destacar as “redes de sociabilidade” no lugar ocupado por aquele intelectual na sociedade brasileira dos Oitocentos.

[...] Compreender as principais ideias que circularam no final dos anos 1860 e início de 1870 a respeito da educação e instrução no Brasil e os principais posicionamentos acerca da temática educacional, a partir de três proeminentes autores (Liberato Barroso, Almeida Oliveira e Tavares Bastos); reconhecer a rede de sociabilidades da qual Joaquim Nabuco fez parte identificando no diálogo com seus pares o debate em torno da questão educacional no Brasil dos Oitocentos; identificar o papel da educação no pensamento educacional de Joaquim Nabuco e sua relação com o trabalho livre mediado pela racionalização dos meios de produção (SILVA, 2013, p. 19, grifo nosso).

Ao elencar seus objetivos de pesquisa, Silva (2013) delineou seu lugar de pesquisa e a partir desta estratégia afirmou que analisou o “projeto político de Joaquim Nabuco e a educação, pois percebemos que sua agenda política destina uma função primordial para a educação na constituição de sua proposta abolicionista” (SILVA, 2013, p. 48), o que o inseriu nas proposituras da História da Educação, tomando a educação como tema central das investigações, ajudando a identificar, desta forma, a trajetória dos projetos de educação difundidos pelo país.

Na Tribuna Literária de Carvalho Neto, ele ofereceu à sociedade sergipana uma produção que tivera o objetivo de formar homens capazes de representá-la na mais correta forma da lei, ao difundir estratégias que ajudariam, sobremaneira, na formação dos advogados. Para isso, ele ensejou orientá-los, tendo a disciplina como estratégia de prática social, nos seguintes aspectos: estudar o campo científico do Direito, sob orientação das melhores leituras; estar atento aos movimentos que aconteciam na sociedade, primando pela ordem social; analisar com minuciosidade as regras da linguagem jurídica; não dormir; interessar-se pela Literatura, ciência e outros tipos de conhecimento que o ajudassem a ampliar e qualificar sua formação.

Carvalho Neto acreditava que o Direito era uma das instituições capazes de defender a sociedade diante das mazelas do mundo, mas para ele isso só seria possível pela recusa à “avareza”, à vaidade econômica, pelo cultivo da honradez, honestidade, verdade,

perseverança na luta em prol da Justiça para o alcance do bem-estar e desenvolvimento social.

O Direito, para aquele intelectual, funcionava como uma estratégia segura de intervenção social e tal aspecto não deveria estar à parte, sob hipótese alguma, das práticas sociais e culturais dos profissionais que abraçavam o ofício. Ensinar princípios da formação do advogado possivelmente tenha sido uma das estratégias que tiveram presença marcante na obra de Carvalho Neto.

Considerei, portanto, uma possibilidade: a de conceber o discurso presente nas assertivas de Carvalho Neto (1946) como uma proposta pedagógica, que deveria ser transmitida para os profissionais que já atuavam no campo do Direito, ao ser recorrente no discurso nela encetado, a importância da prática social do advogado. Porém, as lições se dirigiam, na mesma intensidade, aos estudantes, como testemunhou Ribeiro (1946), em discurso de homenagem por ocasião da publicação do livro Advogados: “É à mocidade estudiosa do direito que se dirige. São àquêles moços que o lerem a quem está falando, àquelas almas juvenis e sonhadoras que se preparam para o sacerdócio da lei” (RIBEIRO, 1946).