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O RSI COMO GESTÃO DA POBREZA

Pobreza e Exclusão

RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO: COMBATE OU GESTÃO DA POBREZA?

3. O RSI COMO GESTÃO DA POBREZA

Segundo a lei o RSI (art.º 1.º, lei n.º 13/2003 de 21 de Maio) pretende “(...) conferir às pessoas e aos seus agregados familiares apoios adaptados à sua situação pessoal, que contribuam para a satisfação das suas necessidades essenciais e que favoreçam a progressiva inserção laboral, social e comunitária”. Trata-se de um conceito que alia, por um lado, uma noção de pobreza enquanto falta ou carência das necessidades essenciais e, por outro lado, um conceito de pobreza associado à exclusão social. Consideramos que, apesar dos discursos oficiais, esta política atua sobre a pobreza extrema, já que se trata de uma prestação cujo valor se encontra muito abaixo do valor considerado para o risco de pobreza106 e porque, para ter acesso à política, não é suficiente estar em situa-

ção de exclusão mas é critério obrigatório de admissão possuir rendimentos inferiores ao valor correspondente de RSI.

Os destinatários do RSI não são os sujeitos pobres, mas sim os mais pobres entre os pobres, uma população estereotipada que é muitas vezes encarada como incapaz e como possuidora de tendência para ludibriar os sistemas de apoio, aliás esta é a imagem difundida durante todo o percurso do RSI como tivemos oportunidade de expor. Não se defende a inexistência de mecanismos de garantia de subsistência mínima aos cidadãos, no entanto, devemos ser claros com os objetivos pretendidos.

106 O valor de RSI é de 186,68 €/ mês em 2018, a taxa de risco de pobreza (454€/ mês em 2016 que corresponde a 60% do rendimento médio do país) e o salário mínimo nacional (530€ em 2016 e 580€ em 2018).

Esta perceção da pobreza, de inspiração neoliberal, orientou a construção e a implementação da política de RMG e RSI. Uma lógica assente no mérito pessoal, que levou à apresentação dos beneficiários do RMG/RSI como pos- suidores de incapacidades individuais e como estando numa situação de afas- tamento do mercado de trabalho, considerado como o espaço natural de satis- fação das necessidades económicas e sociais dos indivíduos. Trata-se de um conceito de pobreza que permite a moralização das causas e fatores de existência do problema e, consequentemente, da sua intervenção. O problema da pobreza é da responsabilidade do próprio, pelo que a principal ação para a superar deve ser dele. O Estado garante políticas e medidas sociais que servem de trampolim para esse sujeito se tornar capaz de superar a sua situação efetuando, assim, uma gestão da pobreza que permite a manutenção da ordem social.

A sobrevalorização da responsabilidade dos sujeitos pobres abriu, assim, espaço para que a política (de forma mais vincada a partir de 2003) incorpo- rasse uma dimensão moral, já que estabelece uma relação de “obrigatoriedade” entre o direito de receber um benefício e o dever de, para isso, contribuir com uma atividade, leia-se um trabalho (mesmo que no terceiro setor ou no mer- cado social de emprego). Estabelece-se uma relação de troca com o benefício fornecido pelo Estado, que agora deve mostrar-se como uma entidade que exige algo em troca. Uma moralização do direito, com base numa “compulsão para o trabalho” (Hespanha e Matos, 2000) como estratégia para justificar (e como obrigação para receber) o benefício. A noção de contrato existente no RSI implicitamente invoca para uma relação simétrica de poder entre os con- tratantes, neste caso entre o NLI e o(s) beneficiário(s). Ora, é clara a inexis- tência dessa simetria, já que o beneficiário necessita da prestação para (sobre) viver o que o coloca numa situação de fragilidade. Para além disso, existe uma real dificuldade do cidadão comum em negociar com as entidades públicas e privadas (de interesse coletivo). Isto sem considerar a “vontade” de negociação por parte dos NLI, que podem encarar a tentativa de negociação do bene- ficiário como uma recusa ao apoio ou como estratégia para se furtar às suas obrigações (Marques, 2016).

Deste modo, fica a perceção que através do RSI os beneficiários passam a ter um conjunto de oportunidades que lhes permitirão a sua plena integração social e a saída da situação de pobreza. Uma falsa perceção já que as respostas “oferecidas” possuem um carácter individual, e por vezes limitado no tempo, que não altera a estrutura de desigualdade em que os beneficiários estão inseri- dos. São, no entanto, “oportunidades” que os beneficiários se vêm obrigados a aceitar para poder receber a prestação pecuniária (de subsistência), “uma

oferta que não se pode recusar” (Lodemel; Trickey, 2000), ou como nos refere Diego Palmas “aquele que não se conformar com a oferta institucional (...) fica sem nada, fica fora dos requisitos” (1985:127).

Esta atitude caracteriza uma ação profissional de controle e de reprodução social, de psicologização e individualização das relações sociais e de moldagem das necessidades sociais de acordo com os recursos institucionais existentes. Em vez de se trabalhar nas causas das desigualdades sociais, atua-se nas conse- quências. Em vez de se centrar a intervenção no problema (a pobreza), foca- liza-se no beneficiário, através de ações de desenvolvimento de competências pessoais, sociais e laborais107.

Como aludimos anteriormente o RSI revelou-se uma política emblemática no processo de governação, contribuindo para acentuar a lógica de responsa- bilização e de mobilização da sociedade, através das parcerias e da intervenção local. O Estado passa a ser mais um parceiro que atua pela negociação (em vez da imposição) com os restantes parceiros. Uma “humildade” fictícia já que não se trata nem de uma negociação de iguais, uma vez que é o Estado que detém os meios e mecanismo para implementar as respostas, nem de uma negociação neutra, uma vez que os parceiros mais “fortes” aplicam mecanis- mos de regulação e controlo. Este clima de consensualidade ligada a parceria, para além de “naturalizar” esta prática, ao considerar que as parcerias sur- gem e funcionam naturalmente, esvazia o processo da sua matriz política. Deste modo, a lógica de discussão que levaria a uma verdadeira participação dos atores locais é substituída por uma atitude normativa baseada na ideia de harmonia. Stoer e Rodrigues (2000) referem que a palavra “parceria” assume na atualidade um carácter ideológico que a torna uma prática mecânica, de construção espontânea, sem o envolvimento do conflito, esvaziando a própria lógica que lhe era inerente.

Ancorados no pensamento de Foucault (2007) podemos encarar o RSI como uma tecnologia de gestão da pobreza, através de mecanismo de normalização –

107 Note-se que a intervenção social baseada nos processos de educação, com inspiração nos métodos de Paulo Freire, centrou-se, no decorrer da década de 90 do século passado, nos processos de empoderamento (empowerment) através do incitamento para o desenvolvi- mento de potencialidades dos indivíduos e das comunidades para os habilitar para a garan- tia da sua subsistência. Embora se trate de um processo de enorme importância, o objetivo de incentivar o pensamento crítico e reflexivo dos sujeitos foi-se deslocando para uma ação “habilitadora” de competências de sobrevivência. Por outras palavras, trata-se de um pro- cesso de empoderamento do qual emergem sujeitos capazes de garantir a sua (e a do grupo) sobrevivência, de garantir a capacidade dos indivíduos e grupos de se integrarem numa sociedade de risco, mas deixava escapar os processos de luta contínua e de indignação.

de homogeneização dos sistemas institucionais e das tecnologias de intervenção social – e de mecanismos de diferenciação e particularização. Assim, a governa- ção da pobreza dá-se através das parcerias, que apelam à participação de uma variedade de atores que se embutem na política social local para desenvolver formas territoriais de gestão da pobreza. O Estado opera, através dos parceiros, num âmbito territorial que lhe permite uma governação dos pobres, encarada como um problema que tem de ser localmente gerido e não combatido (Mar- ques, 2003).

O Estado e parceiros sociais passam a exercer em conjunto uma economia geral de poder que permite a gestão local da pobreza, mantendo a segurança, a coesão e a ordem social no território. A governação da pobreza deixa de ser um domínio exclusivo do Estado, uma ação orquestrada e supervisionada pelo Estado que, por meio de uma ação aparentemente democrática e partilhada, oculta os mecanismos subtis de imposição ideológica (Marques, 2003). Deste modo, o RSI apresenta-se aparentemente esvaziado de ideologia política, invocando análises e intervenções sociais moralizadoras, individualizadoras e despolitizadas.

4. CONCLUSÃO

A política de RSI tem assumido uma perspetiva marginal e assistencia- lista, desvinculada das questões macroeconómicas e estruturais, ao serviço da regulação e administração da pobreza. O RSI através do que Castel (1998) denomina de “políticas de inserção” limita a sua atuação aos efeitos do dis- funcionamento social, sem considerar as determinações estruturais, geradoras de pobreza. Trata-se de táticas de ocultação da pobreza enquanto problema social, para a encarar como um problema de carácter individual (mérito) que culmina num discurso moralizador e de culpabilização dos indivíduos.

Esta perspetiva, alicerçada na ideologia neoliberal, remete o pobre para uma categoria da população com “problemas específicos” resultantes de percursos de vida e de escolhas individuais. Legitima-se, assim, correlações erróneas e simplistas que ligam a pobreza à moralidade (Wacquant, 2001, 2005) e que permitem intervenções individualizadas de responsabilização dos bene- ficiários. Uma intervenção que proporciona aos beneficiários “oportunida- des” de inserção social (mesmo que irrealistas ou limitadas temporalmente) que os torna aparentemente plenos de direitos, promovendo uma cidadania tutelada que disfarçada por discursos humanistas e de inclusão pretende a reprodução social para evitar “(...) a revolta e a insubmissão diante de uma

sociedade desigual e excludente” (Sposito, 2003:35). Abordagem facilmente aceite por todos numa sociedade trespassada pelo medo e insegurança, que afeta a democracia e a atitude dos cidadãos oscilantes perante os consecu- tivos atropelamentos dos direitos sociais. Nessa lógica, discutem-se neces- sidades numa lógica minimalista e não de direitos, só se responde ao que é emergência, aumentando o ambiente de desconfiança, de desacreditação dos serviços e benefícios e dando lugar a respostas caritativas e assistencialistas.

Para ser contrariada esta situação necessita, entre outros ímpetos, de uma modificação na forma de se ver e fazer a intervenção social, que encare os indi- víduos como sujeitos políticos108 e não como (meros) objetos da intervenção.

Como refere Yazbek (2014:680) “na política social, a luta contra a pobreza toma o lugar da luta de classes. A perspetiva é de desenvolvimento dos “ativos” dos pobres, desconsiderando os fatores estruturais da pobreza, atribuindo a res- ponsabilidade da pobreza aos próprios pobres”. Não consciencializar os sujeitos da sua responsabilidade na participação, na reivindicação pelos seus direitos, no protagonismo político que poderão ter é uma forma de despolitização dos direitos sociais. Não consciencializar os profissionais das causas estruturais dos problemas e das limitações inerentes às políticas sociais criadas para manter a ordem social, contribui para a legitimação das políticas neoliberais que perpe- tuam as desigualdades sociais.

Voltamos a salientar que não se defende uma não intervenção, ou uma intervenção desgarrada e em rutura com os sistemas instituídos e com as polí- ticas sociais. O que pretendemos é que se efetue uma reflexão sobre o tema, que se entenda o objetivo contraditório existente nas medidas das políticas sociais, de forma a que quando forem implementadas pelos profissionais estes conheçam o seu “lado negro” e possam assim desenvolver a sua ação conscien- cializados, encarando a intervenção social “(...) não apenas como questão téc- nica, mas como questão essencialmente política, lugar de contradições e resistência” (Yazbek, 2014:681) e ultrapassando a perceção das políticas sociais como (...) “uma ‘démarche’ essencialmente técnica, como uma espécie de ação política sem alma, sem inocência, mas também sem culpa” (Stoer; Cortesão; Correia, 2001:45).

108 A categoria do sujeito permite dar aos indivíduos protagonismo, transformá-los em atores políticos, sociais, culturais, em agentes de transformação social, conscientes da sua iden- tidade, do seu papel, da sua história. É um sujeito que faz parte (e sente essa pertença) de uma classe social e, por isso, se transforma em ator coletivo, em sujeito político, capaz de uma ação consciente de luta pelos direitos.

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