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O PERCURSO DO RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO

Pobreza e Exclusão

RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO: COMBATE OU GESTÃO DA POBREZA?

2. O PERCURSO DO RENDIMENTO SOCIAL DE INSERÇÃO

O medo constante de fraude e a suspeição sobre os possíveis beneficiários da política estão presentes nos debates parlamentares desde a discussão dos primeiros projetos de lei para a criação do Rendimento Mínimo Garantido (RMG)95, em 1994, até à atualidade. O RMG incorporou, pela primeira vez

em Portugal, a possibilidade de análise da situação económica do agregado

com base em métodos indiciários o que, como salienta Rodrigues, “(...) não deixa de ser inquietante que o critério indiciário (de rendimentos superiores aos declarados) seja mais afirmativo nesta medida do que nas medidas de política fiscal” (1997:111).

Em outubro de 1999 inicia-se uma fase de fortes críticas ao RMG, sus- citadas pelos resultados de uma auditoria do Tribunal de Contas (Tribunal de Contas, 2000), que coloca em causa a forma e a execução da política, rea- cendendo as velhas discussões e desconfianças sobre a população beneficiária. Este documento provocou polémica ao analisar assuntos específicos sem, no entanto, incluir no seu grupo de trabalho qualquer especialista em políticas sociais ou em ciências sociais, pondo em causa os resultados e demonstrando uma forte fragilidade técnica. Como consequência do relatório surgiram diversas informações nos meios de comunicação social que contribuíram para a descredibilização da política e para o aumento da desconfiança perante os seus beneficiários.

A permanência da “velha” distinção entre “pobres merecedores” (ou “impossibilitados” de trabalhar por razões relacionadas com a saúde, a defi- ciência ou a idade avançada) e os “pobres não merecedores” (ou “capazes” de trabalhar), bem como a defesa da ideia de que cidadãos necessitados são inca- pazes de gerir o seu orçamento, ressurge no ano de 2000, com o Projeto-lei n.º 176/VIII96 para a substituição do RMG. O projeto sublinhava a ineficiência

do Estado em fiscalizar a política e em garantir a inserção social97, o debate

protagonizado na Assembleia da República centrou-se nas atitudes fraudulen- tas e preguiçosas dos beneficiários da política98.

As eleições legislativas antecipadas de março de 2002 resultaram numa maioria parlamentar de direita, fruto da vitória eleitoral do PSD e da coligação com o CDS-PP99. Após uma forte propaganda, a política volta a constar da

agenda parlamentar, com a discussão do Projeto-Lei n.º 6/IX, que revoga o

96 Apresentado pelo CDS/PP e rejeitado com os votos contra do PS, do PCP, dos Verdes e do BE (votos favoráveis do PSD e do CDS-PP).

97 Como refere um deputado do CDS-PP: “(...) Avisámos e voltamos a avisar para o facto de no Rendimento Mínimo Garantido nem todos os assistidos serem pobres e nem todos os pobres serem assistidos pelo rendimento mínimo garantindo (...) falhou a fiscalização e falhou a inserção social” (DAR n.º 75, I série, 08/06/00, p. 2935/36).

98 Como salienta um deputado do CDS-PP: “O rendimento mínimo garantido sustenta, em al- guns casos, a dependência do álcool, da droga ou da ociosidade” (DAR n.º 75, I série, 08/06/00,

p. 2953).

RMG e cria o RSI100, no ano de 2003, como uma “prestação incluída no sub-

sistema de solidariedade e num programa de inserção por forma a assegurar às pessoas e seus agregados familiares recursos que contribuam para a satisfação das suas necessidades mínimas e para o favorecimento de uma progressiva inserção social, laboral e comunitária” (art.º 1.º, Lei 13/2002).

Na altura da revogação do RMG e criação do RSI esta nova equipa gover- nativa levou a cabo uma campanha difamatória sobre os beneficiários do RMG (chegando a designá-los de “preguiçosos” e “ociosos”), criando um clima de suspeição face aos mais necessitados em geral. No decurso da apresentação da “nova” política de RSI o Ministro da Segurança Social e do Trabalho apresen- tou como principais razões para a sua criação: a necessidade de dignificar o direito, de garantir a coresponsabilização dos beneficiários e de aumentar as ações de controlo e fiscalização sobre os beneficiários. Nas palavras do então Ministro101: “Tratando-se de um apoio social pago pelos contribuintes, o RSI não

pode ser desperdiçado infundadamente, (...). Desde 1996 e até hoje, a experiência demonstrou que, não obstante a sua generosidade, o RMG tem sido aplicado com muitas deficiências. (...) A proliferação de situações abusivas descredibilizou, junto da opinião pública, uma medida de forte componente humanista e generosa, fomen- tando em alguns casos verdadeiros estigmas sociais quanto aos beneficiários do RMG. Por isso, se tornou imperioso moralizar o atual modelo, criando mecanismos de fis- calização efetiva e de controlo eficaz. (...) e um reforço do regime sancionatório como fator inibidor da fraude, autonomizando e condensando as sanções (anteriormente dispersas e confusas) que, nos casos mais graves, foram agravadas”.

Uma nova mudança governamental, com o retorno do PS ao governo, ditou uma nova alteração da lei do RSI102. Assim, com o XVI Governo Cons-

titucional, a Lei n.º 13/2003 é substituída pela Lei n.º 45/2005103, incluindo

alterações que, grosso modo, se mantiveram até ao ano de 2010.

100 Lei n.º 13/2003 de 21/05, com retificação n.º 7/2003 de 29/05 e regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 283/2003 de 08/11.

101 As informações aqui apresentadas sobre o Ministro da Segurança Social e do Trabalho do XV Governo Constitucional, 2002-2004, Bagão Félix, foram retiradas do discurso por ele proferido na Assembleia da República aquando da discussão para a revogação do RMG e criação do RSI.

102 No sentido de alterar a lei n.º 13/2003 de 21/05 que cria o RSI, surgiu o Projeto de Lei n.º 14/X apresentado pelo BE, o Projeto de Lei n.º 96/X da autoria do PCP e, finalmente o Projeto de Lei n.º 8/X da iniciativa do governo (PS). Este último foi aprovado com os votos a favor do PS, PCP e BE, a abstenção do PSD e os votos contra do CDS-PP.

De entre as alterações de 2010104, destacam-se a modificação de cálculo da

prestação, bem como o fim dos apoios complementares. As alterações propos- tas foram justificadas pela existência de um contexto global de crise económica e financeira e elaboradas a partir do Programa de Estabilidade e Crescimento de 2010-2013, do qual constava um conjunto de medidas para a promoção do crescimento económico e do emprego e para a consolidação orçamental. Nesse sentido, e com o principal objetivo de diminuir o crescimento da des- pesa pública dá-se uma redefinição das condições de acesso aos apoios sociais (decreto-lei 70/2010 de 16/06). Surge o que Yazbeck denomina de “(...) crise do pensamento igualitário e democrático” que “(...) traz no seu bojo propostas reduccionistas na esfera da proteção social” (1995:11).

Em 2012105 o cálculo do valor da prestação é alterado, com a diminuição

da ponderação de cada indivíduo do agregado familiar, o que levou a uma diminuição do valor das prestações. Esta alteração resultou na expulsão de um conjunto considerável de beneficiários que, apesar de permanecerem na situação de pobreza e exclusão social, deixaram de preencher os critérios e, consequentemente, de receber o apoio. De facto, a diminuição do número de beneficiários de RSI a partir de 2010 (11,7% em 2010, 10,1% em 2011, 9,9% em 2012, 8,7% em 2013 e 7,8% em 2014) não levou a uma diminuição da taxa de pobreza 2010 (23,2% em 2010, 24,1% em 2011, 27,4% em 2012, 30,3% em 2013 e 29% em 2014) (PORDATA, 2018). Retrato de um país onde a pobreza aumenta e os apoios existentes para a enfrentar diminuem.

O surgimento do RMG e, posteriormente, do RSI coincidiu com o apare- cimento de um novo modelo de intervenção estatal na área social – governação – que, segundo Self (1997), concebe a gestão das políticas públicas como uma função do Estado em cooperação e parceria com outros atores. Governação é vista, assim, como a “gestão de redes”, ou seja, como a gestão de diversos atores e instâncias na provisão dos serviços e das políticas públicas, com consequência para as mesmas. Deste modo, a perspetiva das políticas públicas como respon- sabilidade única do Estado que era protagonista da sua formulação, implemen- tação e avaliação é modificada surgindo, agora, a conceção de políticas públicas como o resultado da interação de vários atores que apresentam diferentes obje- tivos, valores e missões. Um desses atores é o Estado que transforma o seu tradi- cional estatuto de “controlo” em “monitorização”, através da “territorialização”, “descentralização” e “contratualização” das políticas públicas.

104 Decreto-lei n.º 70/2010 de 16 de junho.

A centralidade passou para os processos de governação, que já não incluem apenas o Estado mas também outras organizações e associações de diversas áreas e domínios que partilham com ele as funções. Aqui, a noção de territo- rialidade, encarada como um processo estratégico, permitiu uma redefinição da ação pública a partir de princípios de participação, parceria, proximidade, coresponsabilização. Existe, no entanto, uma contrariedade entre a subsidia- riedade da ação e a tradição centralista de atuação do Estado português que exige que se reestruture o formato da relação entre o central e o local, de modo a que esta tenha em conta os princípios europeus “(...) do enquadramento ter- ritorial das políticas públicas (a subsidiariedade, as parcerias alargadas, a parti- cipação das autoridades locais nos diversos centros de decisão, inclusive europeu)” (Francisco, 2002:263).