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UMA CORRECTA LEITURA E INTERPRETAÇÃO DOS FACTO RES PSICOSSOCIAIS QUE DETERMINAM A VULNERABILI-

Pobreza e Exclusão

CONDIÇÕES PARA O RESTABELECIMENTO DO LAÇO COM A ESCOLA E DO DESEJO DE APRENDER

1. UMA CORRECTA LEITURA E INTERPRETAÇÃO DOS FACTO RES PSICOSSOCIAIS QUE DETERMINAM A VULNERABILI-

DADE SOCIAL

A hipótese91 de que partimos é a de que tanto a escola como as estru-

turas/equipamentos sociais que chamam a si a função educativa se revelam inconsequentes nesse empreendimento, entre outras razões, por não coloca- rem os saberes formais que a ciência faculta ao serviço de uma intervenção esclarecida e transformadora dos quadros de vida complexos que os jovens de que falamos apresentam.

Com efeito, se atendermos aos vários estudos sociológicos produzidos sobre a pobreza92, compreenderemos que estamos perante pessoas que, pelo facto de

acumularem todo o tipo de fragilidades objectivas, as interiorizam não nessa qualidade, mas, numa lógica de conformação com o sentido dominante que é tido da realidade a que todos estamos sujeitos, como inferiorização social que é vivida como fatalidade do destino.

Ora, só percebendo que este processo complexo de incorporação a que somos submetidos desde que nascemos é a única forma de que dispomos para nos tornarmos nós próprios, como diz Bourdieu (2003), é que podemos também perceber porque é que, nestes jovens, se estruturam predisposições e condutas que estão nas antípodas das requeridas pela escola. Mais, ainda,

91 Hipótese que, alicerçada unicamente em explicações de carácter teórico-abstractras acerca do reiterado insucesso e afastamento prematuro da escola de largos grupos de jovens/ adolescentes sem concluírem a escolaridade obrigatória, carece, obviamente, da passagem pelo crivo da confrontação empírica com os factos, esses sim, reais.

92 Entre outros, são de destacar as análises de Brigitte Brébant (1984); de Vicent Gaulejac e I.Taboada Leónetti (1994); e, ainda, de Marielle C. Gros (1998).

ficamos a compreender que, apesar das auto-defesas e resistências que os seus detentores (os jovens) inevitavelmente vão accionar, constrangimentos objec- tivos e predisposições por eles enformados devem ser modificados se queremos ampliar as possibilidades da sua qualificação pessoal e social.

A compreensão em profundidade do modo como se produz a dialéctica entre condições objectivas de existência, disposições interiorizadas e práticas sociais, sem a qual comprometemos a mudança dos fenómenos em causa, requer, pois, que estejamos capazes de seleccionar e mobilizar os argumentos teóricos relevantes de várias disciplinas científicas.

Assim, se tomarmos os contributos valiosos de Peter Berger e Thomas Luckmann (1994) para reflectir, por exemplo, sobre a forma como cada um de nós, desde que nasce, vai organizando e dotando de sentido a percepção de si, dos outros e do mundo em geral, percebemos que ela depende, intei- ramente, do modo como o vamos experimentando (o mundo), através da acção-interacção que com ele estabelecemos. O sentido que essa experimen- tação vai assumindo para o sujeito é conferida, inexoravelmente, por aqueles que medeiam a sua relação com o mundo, ou seja, pelas entidades parentais ou os seus substitutos.

Com uma análise mais circunscrita mas não dissonante da anterior, Piaget (1976) explica, a propósito do desenvolvimento infantil, que as aquisições da criança em relação à capacidade de se situar no espaço e no tempo e de esta- belecer relações de causa e efeito entre estes organizadores fundamentais e ela própria dependem totalmente do equilíbrio que continuamente se estabelece entre assimilação do mundo exterior e acomodação interior desse mundo.

Tendo como pano de fundo estes esquemas conceptuais, a questão essen- cial que devemos colocar é se os jovens dos meios desfavorecidos ou do sub- -proletariado como refere Brigitte Brébant (1984), têm oportunidade para desenvolver correctamente aquelas percepções (percepção do corpo, espaço e tempo e sobre as suas hipotéticas conjugações), perante a desorganização, instabilidade e incoerência que atravessa a sua vida quotidiana.

Quando os objectos vão e vêm em função das flutuações dos recursos, quando não há ritmos a manter, horas para acordar e deitar em função de tarefas a cumprir, quando a repreensão depende da variação de humor dos pais e não da transgressão de regras invioláveis, enfim, quando os suportes iden- titários não existem ou não desempenham bem os seus papéis será possível desenvolver uma autonomia psico-motora e intelectual?

E, se não há sequência e organização espacio-temporais no dia-a-dia será plausível dar como inteligíveis para este tipo de jovens as representações linguís- ticas simples que as objectivam (dentro, em cima, em baixo, antes ou depois)?

Não, não é de todo possível se levarmos em linha de conta a estreita corre- lação que existe entre precisão e riqueza da expressão verbal e trama de opor- tunidades e de relações que as tornam significantes.

Não nos admiremos, também, que para os jovens desta mesma origem os exercícios de abstracção em que a escola alicerça as aprendizagens se tornem incompreensíveis. Desde logo porque a premência do aqui e agora que experi- mentam leva a que atribuam dominantemente significado às situações concre- tas e presentes. Depois, porque a abstracção do real é francamente dificultada pelas privações materiais, pela luta constante pela sobrevivência que é preciso garantir. De facto, como explica Pierre Bourdieu (1998: 14-16) a propósito da génese da disposição escolástica tão cara à escola, ficar preso às urgências imediatas que a sobrevivência solicita restringe, sobremaneira, “o sucesso nos exercícios escolástico, sobretudo mais formais, que exigem a capacidade de participar simultânea ou sucessivamente em diferentes “espaços mentais””.

Embora “sem nada indicar quanto às finalidades que a acção deve pros- seguir” como sublinha José Madureira Pinto (2001: 48), os saberes teóricos produzidos pela ciência dão um auxílio precioso sobre o modo como “ajustar com precisão as intervenções práticas sobre a realidade, prever os seus efeitos, fixar as condições e os limites da sua validade, em suma, intervir sobre ela”.

É pois na base, mais uma vez, de importantes “objectos de conhecimento” construídos pela ciência que podemos tirar ilações acerca dos domínios de intervenção a privilegiar se não queremos comprometer seriamente a reinser- ção social dos jovens mais deserdados das classes populares.

Para fecharmos o ciclo do raciocínio que iniciámos com este ponto, fica mais claro, agora, que os ajustamentos a produzir na realidade destes jovens para restabelecer o laço com a escola terão que ir muito além do acompanha- mento ao estudo que se lhes possa proporcionar. Uma ideia força há pois a reter: não é seguramente uma condição suficiente sujeitá-los a apoios à acti- vidade escolar que acabam por ser mais do mesmo. Tanto menos suficiente quanto estes apoios tendam a cingir-se aos modelos pedagógicos clássicos em que assenta a aprendizagem escolar.

Os mapas cognitivos que a sociologia e a psicologia, entre outras, facultam para ler os processos através dos quais se produz a desfiliação social que estes jovens revelam nas suas condutas apontam, antes, para a imprescindibilidade

de centrar as intervenções práticas na criação de novas oportunidades – mate- riais, relacionais, simbólicas - que tornem possível a reelaboração das atitudes e valores que as estruturam.

Não está pois em causa a necessidade de lhes facultar um suporte pedagó- gico, sistemático e duradouro, centrado nos jovens e bem adaptado às lacunas escolares que apresentam (no domínio da expressão escrita e oral e na aquisi- ção dos algoritmos essenciais que nas diversas matérias estruturam os conhe- cimentos). Tão ou mais importante é, todavia, definir os contextos e situações relacionais que devem ser criados para tornar esse suporte significativo, isto é, efectivamente apropriável. Para isso é preciso eleger como centros nodais de aprendizagem não só as escolares, mas também as que dizem respeito ao saber ser e ao saber estar que permitirão aos jovens enfrentar as adversidades de um mundo fortemente desigual com dignidade e não como marcas pessoais e intransponíveis. O que é preciso, em suma, é proporcionar-lhes novas defini- ções da realidade de modo a que possam reestruturar progressivamente o seu “habitus primário” (Bourdieu, 1979) e os esquemas interpretativos, geradores do sentir e do agir, que ele fornece.

Se ambicionamos restituir aos adolescentes que pertencem às fracções das classes populares mais desprovidas dos recursos socialmente válidos a opor- tunidade de restabelecerem o laço com a escola para, assim, iniciarem a con- quista de alguns desses recursos, do que se trata, mesmo, é de lhes propiciar uma nova e autêntica “estrutura de plausibilidade”, no sentido que lhe confe- rem Peter Berger e Thomas Luckmann (1994).

Isto significa que se revela imprescindível criar um novo quadro mate- rial de existência, a partir do qual lhes possamos proporcionar interacções diversificadas, intensas e duradouras, ancoradas em valores, regras sociais e padrões de conduta congruentes por parte dos adultos-educadores que são o seu suporte. Redefinindo objectivamente as possibilidades e os limites que os comportamentos podem assumir em função da prossecução de objectivos socialmente úteis, só estas interacções permitirão rever as atribuições de sen- tido que conferem à realidade pessoal e social.

Para que estes jovens possam efectivamente chegar a (re)construir as suas realidades subjectivas é necessário que o quadro material de existência de que falamos seja qualitativamente superior ao que, em concorrência, continuam a experimentar no seu habitat. Qualitativamente superior tanto em termos materiais e organizativos, como, de forma determinante, em termos afectivo- -emocionais, cognitivos e éticos.

Com efeito, como também elucidam as explicações teóricas93 acerca do

modo como pode ocorrer o processo de ressocialização e do que nele está em causa, só quando estamos capazes de aproximar, em intensidade afectiva, a transmissão da nova matriz subjectiva que lhes queremos fornecer da que, mesmo com profundo sofrimento, os jovens obtiveram como única possível na primeira infância é que podemos admitir que se reúnem as condições para a reinterpretação da realidade, tal como foi apreendida nesta fase.

Não se trata pois de criar para estes jovens um meio material e humano asséptico, descontínuo e pouco exigente no plano da aprendizagem, embora às vezes estas características sejam defendidas por terapeutas e/ou educadores. Ora por desconhecimento, ora como resultado de um exercício de racionali- zação que procura encontrar uma justificação plausível para uma atitude tera- pêutica que não se quer ter, este tipo de argumento é antes indiciador de um puro preconceito etnocentrista. Puro etnocentrismo de classe na medida em que, frequentemente, essa atitude esconde o descrédito na possibilidade efec- tiva de “recuperar” estes jovens, se não mesmo a dúvida acerca do direito que têm a tão desmesurado esforço por parte de técnicos e terapeutas.

O desafio ao auto-conhecimento, à capacidade auto-reflexiva e ao aper- feiçoamento dos próprios terapeutas atinge, num contexto educativo deste tipo, o seu valor máximo dado que o que está em causa é ser capaz de eleger a relação e a conversação como principais instrumentos de trabalho. Tornar a relação significativa para cada um dos jovens obriga a acautelar a linguagem e a conduta, a prestar toda a atenção ao que se diz e aos gestos e acções aparen- temente insignificantes que, em discordância, o podem contradizer. Obriga a provar um inequívoco crer nas próprias possibilidades de aprender e de se superar se são essas mesmas as possibilidades de que queremos convencer os jovens. Obriga, enfim, à autenticidade, à coerência e à tolerância perante a dependência emocional que intencionalmente se tem que induzir no outro se pretendemos que novos processos de identificação ocorram.

2. UMA PARTILHA FORTE DOS SABERES E O DESENVOLVI-