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MODELOS DE REPRESENTAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E IMPLI CAÇÕES NA INTERVENÇÃO

Promoção do Direito Social à Saúde

DA VITIMIZAÇÃO À CAPACITAÇÃO O CONTRIBUTO DO SERVIÇO SOCIAL PARA UMA MUDANÇA PARADIGMÁTICA NOS

1. MODELOS DE REPRESENTAÇÃO DA DEFICIÊNCIA E IMPLI CAÇÕES NA INTERVENÇÃO

A preocupação com a pessoa deficiente vem sendo abordada de forma diversa ao longo da História, objectivando-se em modelos ora mais exclu- dentes e segregadores, ora mais humanistas e inclusivos. Neste âmbito, no início do terceiro milénio (2001), a Organização Mundial de Saúde (OMS) determinou uma mudança radical do paradigma da saúde, tendo introdu- zido a Classificação Internacional de Funcionalidade e Saúde (CIF). Nesta, assume-se a transposição “do modelo puramente médico para o modelo biop- sicossocial, integrado na funcionalidade e incapacidade humana”, logo, com- portando uma “visão coerente das diferentes perspetivas de saúde: biológica, individual e social” (CIF-OMS, 2004, p. 22). Assim, em consonância com as prerrogativas da CIF, as dificuldades do doente, na sua vida quotidiana, devem ser doravante analisadas a partir de três dimensões – (1) funções e estruturas corporais; (2) atividades; e (3) participação – devendo ainda ser sopesados os fatores ambientais que interagem com essas dimensões.

Já a incapacidade decorre, sob o mesmo pressuposto, de deficiências, limita- ções nas atividades e/ou restrições na participação. Dito de outro modo, às pes- soas com deficiência deverão ser proporcionadas condições que lhes permitam

atingir as seguintes metas (INR, 2016): cuidarem de si; tornarem-se indepen- dentes no quotidiano; participarem na vida familiar e em atividades de tempos livres; manterem contactos sociais; obterem rendimento nos estudos e no traba- lho; manterem relações afetivas e vida sexual; e poderem assumir o papel de pro- genitores. Estas condições têm de ser desenvolvidas através da proteção social, da educação, da formação profissional e do emprego, entre outras áreas, e assim ser encontrado o verdadeiro enquadramento da pessoa com necessidades especiais na sociedade. Para isso, deve atuar-se, por um lado ao nível da prevenção e, por outro, assegurar a cada pessoa o usufruto de todo e qualquer serviço de reabili- tação, sempre com o pressuposto de que o Serviço Social faz parte integral do processo (Marques et al., 2001).

A reabilitação é assim entendida, em consonância com a perspetiva de funcionalidade integral expressa pela OMS, como o processo de recuperação de “condições físicas, sensoriais, psicológicas e sociais” e abarca três aspetos distintos mas articulados: médico, vocacional ou profissional e social. Res- peitando estas premissas, passa, pois, a ser fundamental a integração, nos processos de reabilitação, de profissionais capazes de intervir holisticamente e de desenvolver novos conhecimentos e abordagens. Estas, se direcionadas para a promoção da dignidade humana, para o respeito pela autonomia e para a busca do saber reflexivo, podem contribuir para o aperfeiçoamento da compreensão e da ação do/no campo da reabilitação, assumindo-a, de forma pluralista e interdisciplinar, como um processo de (re)construção do quoti- diano dos doentes e famílias. O que pressupõe necessariamente a assunção de modelos mais articulados e inovadores de intervenção médica, terapêu- tica e social.

O Assistente social em particular, como parceiro essencial de um puzzle interventivo que se pretende complexo, coerente e articulado, analisa as vul- nerabilidades, os problemas sociais dos doentes e as consequências que, do estado da doença, resultem para os próprios, para as famílias e para as comu- nidades a que pertencem, mobilizando-os para o processo de recuperação e reajuste (SNRIPD, 2006). Com efeito, segundo a OMS (1980), o Assistente Social deve necessariamente ser parte integrante da equipa de Saúde, parti- cipando com os demais profissionais na promoção da saúde, na prevenção da doença, bem como no tratamento, cura e reabilitação dos doentes. Mais ainda, pela sua formação profissional multidisciplinar deverá ser o elo de liga- ção e o interlocutor privilegiado entre a equipa de saúde, o indivíduo e a comunidade. O lugar do Assistente Social na área da saúde é, por conseguinte,

necessariamente plural, cooperativo, complementar e interdisciplinar (Marti- nelli, 2003).

Em contexto de reabilitação, estes profissionais devem, neste sentido, con- quistar um espaço de trabalho nuclear nas equipas de reabilitação, estabele- cendo a mediação necessária e propondo alterações às políticas e processos de trabalho, pelo conhecimento de maior proximidade do doente, da família e dos seus contextos de vida. Além disso, cumpre um papel essencial ao contri- buir para que o doente construa e consolide oportunidades de crescimento, com autoconfiança, maturidade e autonomia, adquirindo capacidade para tomar as suas próprias decisões sem interferência de outrem, ressalvando-se os casos em que apresentem determinado tipo de necessidades e apoio específico (e.g., a prescrição e a atribuição de tecnologias de apoio). Tendo em conta tais objectivos, a intervenção do Assistente Social desenvolve-se necessariamente em níveis de atuação distintos, mas articulados – doente, família, equipa de trabalho, estrutura institucional, administração/gestão, comunidade, políticas sociais e investigação – promovendo as conexões necessárias para um trabalho mais eficaz e orientado pelos objetivos incondicionais da qualidade de vida e da dignidade do utente e família. Neste sentido, não pode limitar-se a um tra- balho casuístico e iterativo, devendo antes assumir o desafio da complexidade e da abordagem reticular aos problemas e aos agentes neles envolvidos.

1.1. Conexões entre representações da deficiência e modelos de inter- venção sociopolítica

Ainda recentemente acreditava-se que as pessoas deficientes deveriam ser treinadas em habilidades elementares e específicas e que a sua educação se resumia a saberem comportar-se socialmente, através de ações simples do dia-a-dia. Atualmente, é já entendido que a pessoa deficiente não pode ser socialmente segregada, nem vista como portadora de uma situação necessaria- mente incurável e irremediável. A pessoa deficiente é, como todos os restantes elementos da sociedade, detentora de direitos e portadora de deveres.

Segundo Lowenfeld, Kirk e Gallagher (1973, in Marques et al., 2001), pode-se reconhecer cinco grandes períodos de desenvolvimento das atitudes em relação aos indivíduos com deficiência, os quais correspondem a fases distintas da história. Desde o período da separação, marcado pela superstição (pensa- mento mágico-religioso) e pela segregação, passando pelos períodos da prote- ção (marcados pela caridade e pelo movimento asilar, sempre condicionado

por distintas representações da pessoa deficiente, ora como manifestação da possibilidade de redenção, ora como prova do descontentamento divino), da emancipação (marcado pela preocupação renascentista com a educação e as explicações racionais e científicas da deficiência), até aos períodos contempo- râneos da integração e da inclusão.

No primeiro, advoga-se que ao deficiente sejam conferidas as mesmas con- dições de realização e de aprendizagem sociocultural dos seus semelhantes, independentemente das limitações que manifeste. Esta conceção encontra-se plasmada, nomeadamente desde 1948, na Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao afirmar-se o “direito de todas as pessoas, sem qualquer dis- tinção, ao casamento, à propriedade, a igual acesso aos serviços públicos, à segurança social e à efetivação dos direitos económicos, sociais e culturais”. No entanto, a igualdade tem de ser construída através da afirmação do direito à diferença. É neste contexto que surge a Declaração de Salamanca, em 1994. O último período, de inclusão, coloca de facto em realce a afirmação da igualdade na diversidade e teve o seu desenvolvimento na Conferência Mundial sobre Educação para Todos (1990) e nas Normas das Nações Unidas sobre a Igualdade de Oportunidades para as Pessoas com Deficiência (1993). As socie- dades contemporâneas distinguem-se, pois, das anteriores, em grande parte, pela afirmação do respeito pela dignidade humana e pela garantia de que ao portador de qualquer necessidade especial será permitido integrar-se nas diversas metas do funcionamento social sem qualquer barreira psicológica ou física.

Na mesma linha de análise, a deficiência tem sido agrupada a nível interna- cional em quatro modelos analíticos (cf. Fig.1): o modelo caritativo, o modelo médico, o modelo social e o modelo baseado em direitos (Harris & Enfield, 2003), com particular destaque, nos últimos anos, para os dois últimos.

O modelo caritativo concebe as pessoas deficientes como vítimas da sua incapacidade. A deficiência é vista sobretudo como um défice e o móbil da ação é a tragicidade da situação e a compaixão social dela decorrente.

O modelo médico (ou individual) considera as pessoas deficientes como as que têm problemas físicos que precisam de ser curadas. A questão da deficiên- cia fica por isso limitada à problemática individual e à normalização: é a pessoa deficiente que precisa de ser mudada, não a sociedade ou o ambiente.

O modelo social, por seu turno, concebe a deficiência como o resultado da organização inadequada da sociedade, que contribui, por essa via, para a cons- trução de diversas barreiras e processos discriminatórios, ao nível: das atitudes (medo, ignorância e baixas expectativas); dos meios (e. g., inacessibilidade física

aos edifícios e serviços); e da participação institucional (e. g., discriminações de caráter legal).

Modelos Conceção da deficiência Representação do deficiente Intervenção

Critativo

Associada à ideia de vitimização. Problema = Pessoa deficiente.

Papel passivo como inca- paz: Precisa de cuidados; de caridade, simpatia, compaixão; valente, cora- joso, inspirador rancoro- so, perverso, agressivo vs triste, passivo e trágico.

Centrada em serviços es- peciais e orientada para a normalização. Médico Associada a um caso médico. Problema = Pessoa deficiente.

Papel passivo como pa- ciente: Precisa de cuida- dos especiais e de orienta- ção especializada; não tem capacidade de decisão.

Centrada em serviços es- pecializados de cariz mé- dico e social (apoios espe- ciais, respostas adaptadas, emprego protegido, etc.). Intervenção centrada na pessoa. Social Associada a uma inadequada or- ganização social; deficiência como construção social Problema = Socie- dade Excludente

Papel passivo como agente social: Precisa de políticas capazes de superar práticas discriminatórias produto e produtoras de isolamen- to, segregação, pobreza, dependência económica, educação inadequada.

Centrada em políticas publicas capazes de su- plantar práticas e serviços discriminantes. Interven- ção social orientada para a promoção da igualdade de oportunidades. Cidadania Associada ao in- cumprimento dos direitos humanos e sociais. Problema = So- ciedade estigma- tizante

Papel ativo como agente social e político: precisa de igualdade de oportu- nidades de acesso à edu- cação, ao trabalho, a ati- vidades de lazer, etc.

Centrada em políticas publicas capazes de su- plantar práticas e serviços discriminantes. Interven- ção social orientada para a promoção da igualdade de oportunidades e equi- dade de tratamento.

Figura 1: Modelos sociopolíticos da deficiência. Fonte: Sistematizado e adaptado de Harris e Enfield, 2003, p. 172)

O modelo baseado em direitos (cidadania) é semelhante ao modelo social e a sua relevância incide no cumprimento dos direitos humanos. Por exem- plo: o direito a oportunidades iguais e à participação na sociedade. Logo, é a sociedade que precisa de mudar para garantir que todos, inclusive as pessoas deficientes, tenham oportunidades iguais.

A abordagem atual ao fenómeno da deficiência comporta, neste sentido, uma configuração mais integrada e complexa, conjugando várias áreas de inves- tigação e promovendo, por essa via, o enriquecimento das respostas. Diversas interfaces são estruturadas pela conjugação de distintas áreas do saber (acadé- mico, profissional, dos beneficiários), o que pode contribuir para a resolução ou minimização de aspetos que até ao momento se têm constituído como uma difi- culdade na construção de soluções adequadas na área do tratamento e reabilita- ção: a heterogeneidade da terminologia, a limitação da ação à população-alvo, as diferentes metodologias de ensino nas diversas áreas profissionais e a utilização de instrumentos díspares de avaliação da pessoa deficiente nas diferentes verten- tes da vida diária.

O Serviço Social constitui-se, neste âmbito, como um agente central de agre- gação de linguagens e perspetivas diversas sobre a pessoa deficiente e sobre as res- petivas potencialidades, numa leitura devidamente contextualizada, para uma reabilitação adequada. Nesse sentido, pode e deve ser um elemento basilar na transformação do próprio paradigma de representação do utente como vítima e incapaz, para uma conceção como agente determinante da sua própria vida.

2. O CONTRIBUTO DO SERVIÇO SOCIAL PARA A AFIRMA-