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A gestação do sentimento nacional

No documento A revista no Brasil, o século XIX (páginas 36-40)

Capítulo 1. Igualdade e diferença: formação do leitor e do brasileiro

1.3. A gestação do sentimento nacional

Voltemos, após esse mergulho, à história e ao exemplo do Andrada, José Bonifácio, o patriarca de nossa independência. Nascido em Santos, a 13 de junho de 1763, com 14 anos ele veio para São Paulo, cursar humanidades, seguindo para o Rio de Janeiro e, depois, para a universidade de Coimbra, onde ingressou aos 20 anos, formando-se em Direito e Filosofia – no que apenas repetiu um percurso corriqueiro entre os jovens da elite colonial de então. Formando, foi residir em Lisboa, onde fez certa fama como literato, chegando a ser aceito como membro da Academia Real de Ciências com apenas 26 anos (mais tarde veio a ser secretário perpétuo dessa instituição).

Embora tenha recebido uma educação no estilo antigo da escola de Coimbra (universidade que ainda repetia os velhos modelos de ensino com ranço escolástico), José Bonifácio se interessou pelo que então se chamava “Filosofia Natural”. Para se aprofundar nesses estudos em 1790 viajou pela Europa. Essa viagem científica, que se estendeu por dez anos, foi patrocinada pelo governo português (isso no reinado de D. Maria I, a mãe de João VI).

Esteve um ano em Paris, onde estudou mineralogia com René-Just Haüy, botânica com Antoine-Laurent de Jussieu, química com Jean Antoine Chaptal e minas com J. P. Guillot-Duhamel. Ou seja, aprendeu com os maiores nomes de sua época. Elaborou e apresentou à Société d’Histoire Naturelle de Paris o trabalho “Mémoire sur les diamants du Brésil”, que lhe valeu a sua admissão na Sociedade de História Natural francesa e que foi publicada nos Annales de Chimie em 1792. Seguiu depois para a Alemanha e estudou geognosia e minas na Universidade de Freyberg. Estudou matemática com Johann Friedrich Lempe (1757-1801), direito e legislação de minas com Köhler, química mineral com Klotzsch, química aplicada com Freisleben e metalurgia com Lampadius. Conheceu também Alexander von Humboldt, que viria a ser o grande reformador do ensino universitário. Visitou minas na Áustria, Estíria, Caríntia e Tirol. Viajou ainda pela Itália e ali conheceu Alessandro Volta e realizou estudos geológicos que deram origem a uma memória escrita em 1794 mas apenas publicada em 1812, “Viagem Geognóstica aos Montes Eugâneos”.

Seguiu depois para a Suécia, Noruega e Dinamarca, onde freqüentou cursos de mineralogia na Universidade de Upsala e em Copenhague. Visitou diversas minas e jazidas escandinavas, realizando pesquisas que deram origem à identificação de 12 novos minerais, quatro novas espécies e oito variedades de espécies conhecidas. Publicou o resultado desse estudo sob o título “Kurze Angabe der Eigenschaften und Kennzeichen einiger neuen fossilien aus Schweden und Norwegen, nebst einigen chemischen

Bemerkungen über dieselben” no jornal alemão Allgemeines Journal der Chemie (1800) – trabalho depois traduzido e publicado no Journal of Natural Phylosophy, Chemistry and the Arts

(1801) e no Journal de Physique, de Chimie, d’Histoire Naturelle et des Arts (1800). Esse estudo teve grande repercussão na Europa e revelou um trabalho rigoroso de determinação dos pesos específicos dos minerais, com repercussões na identificação de elementos químicos.

Bonifácio esteve ainda na Bélgica, Holanda, Hungria, Boêmia, Turquia e Inglaterra. Uma viagem que lhe proporcionou um conhecimento enciclopédico na nascente área das ciências da natureza, além de contatos criados nos ambientes acadêmicos.

De volta a Portugal, em 1801, foi lecionar Metalurgia na Universidade de Coimbra, sendo o fundador da disciplina ali. Nos sete anos seguintes será um ativo funcionário do governo, típico homem da elite portuguesa, e chegou a ocupar onze cargos e funções (apenas três delas remuneradas): Intendente-Geral das Minas e Metais do Reino;

administrador das minas de carvão de Buarcos e das minas e fundição de ferro de Figueiró dos Vinhos; inspetor das matas e sementeiras florestais; direção da sementeira de pinhais na orla marítima; desembargador ordinário e efetivo da Relação e Casa do Porto; superintendente do rio Mondego e Obras Públicas de Coimbra; diretor hidráulico das obras de encanamento do Mondego.

Em 1807, quando Portugal é invadido pelas tropas francesas, o que motivou o traslado da família real portuguesa para o Brasil – dando início a nosso processo de independência –, José Bonifácio se alista no Corpo Voluntário Acadêmico, um batalhão de estudantes e professores de Coimbra, parte do movimento de resistência ao invasor. Chega ao posto de comandante, destacando-se pela sua capacidade de liderança na luta contra as tropas napoleônicas que ocupavam o país.

Regressa ao Brasil em 1819 e é convidado por D. João V I para ser reitor do Instituto Acadêmico, cargo que não aceitou, preferindo realizar diversas viagens científicas pelo país. Só dois anos depois deixa de lado essas pesquisas científicas para ingressar na política, iniciando carreira como vice-presidente da Junta Governativa de São Paulo13.

Essa longa digressão sobre a biografia do “patriarca” tem apenas o sentido de refletir o que deveria ter se passado com esse acadêmico netamente português, embora nascido na colônia, na cidade de Santos. Para a historiografia portuguesa ele é um ilustre cidadão português, como outros dois “santistas”, o padre e inventor Bartolomeu de Gusmão e o diplomata Alexandre de Gusmão – este o mentor do vantajoso tratado de Madri, pelo qual Portugal ganhou todo o terreno das Sete Missões, o que é hoje Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em troca da cessão à Espanha da Província de

Sacramento. Província do Sacramento ou Cisplatina, onde, na cidade de Colônia, nascera um outro português, Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça, que ninguém diria hoje que é uruguaio como tampouco ele se via como um brasileiro. Naquele tempo, nascido em Santos ou em Colônia do Sacramento, atual Uruguai, era-se um cidadão português, e ponto. E José Bonifácio de Andrada e Silva, que se queixava da falta de equipamentos para dar aulas em Coimbra, e da precariedade dos laboratórios para suas aulas práticas, não era exceção. Ser brasileiro ou português não era uma questão em que investia seu tempo14.

Há nesse período de nossa história, que vai de 1808 até 1840, uma falta de clareza e perspectiva histórica sobre o momento que se estava vivendo. Esses anos compõem as três décadas que vão da chegada da família real, com o país deixando a seguir a condição de colônia, ao ano em que Pedro II é considerado maior e assume o trono. A clareza sobre o “ser brasileiro” é uma constatação a posteriori, e isso é normal na formação histórica de qualquer país. Nesses trinta anos que separam a vinda de Dom João VI à coroação de seu neto, nascido no Brasil, convivem aqui os portugueses de alma lusa, os portugueses de alma brasileira e os brasileiros com a consciência portuguesa ou com consciência de que havia algo diferente a ser gestado.

É preciso entender como pensava o homem do século X IX , ainda afeito à idéia de um rei e soberano como um dos núcleos essenciais de uma visão de mundo. Tanto foi assim que na Argentina, país que levou quase cinco décadas até se dar conta de que formava uma nação15, andou-se à busca de um rei. E a princesa Carlota Joaquina, esposa de Dom João V I, vivendo então no Rio de Janeiro, chegou a ser sondada para ocupar um hipotético trono como soberana rio-platense. Afinal, ela era irmã de Fernando V II, o rei de Espanha. Um dos pais da pátria Argentina, Manuel Belgrano, sugeriu que se escolhesse um “rei inca” para presidir o novo país

(C O STA, 2003: 78) – idéia que hoje pode nos parecer tão bizarra quantos os “incas venusianos” do velho seriado televisivo japonês Nacional Kid. Mas não era assim naquelas primeiras décadas do século das independências e da consolidação das nacionalidades. A busca de um rei fazia parte da visão de mundo de um homem da primeira metade do século X IX . Tanto era assim que até os gregos, quando se independentizavam da dominação turca em 1829, vão buscar fora um rei. No caso, o príncipe Otto da Baviera ocupa o trono grego.

Essa busca por uma identidade é algo bastante específico da realidade dos países colonizados da América Latina. Como bem pontuou Kenneth Maxwell, o movimento ocorrido aqui na primeira metade do século X IX foi único:

A persistência colonial das nações da América Latina era diferente daquela herdada pelos Estados pós-coloniais que emergiram dos impérios europeus na Ásia e na África a partir de meados do século X X . O impacto provocado pela Espanha e Portugal nas Américas havia sido muito mais profundo e, portanto, mais permanente do que foi o impacto dos europeus que se impuseram, temporariamente, sobre outras sociedades mais antigas do Oriente Médio até a China, onde as populações, as religiões e as estrutu- ras sociais e os padrões de comportamento nunca foram desenraizados ou destruídos da maneira catastrófica como foram nas antigas civilizações da América pré-colombiana.

[...] africanos e asiáticos alcançaram a independência formal negociando a retirada ou tomando em armas e expulsando um punhado de soldados, capatazes e administradores brancos. Na América Latina foram precisamente os soldados, capatazes e administrado- res europeus que expulsaram os representantes das coroas de Espanha e Portugal e a uma só vez usurparam a soberania de uma grande massa de população indígena e de escravos africanos (MAXW ELL, 2000: 182).

Naqueles primeiros anos de gestação do sentimento da nossa nacionalidade, na confusão do “calor da hora”, havia no país correntes diversas e conviviam diferentes concepções identitárias. De um lado estavam os portugueses-portugueses e de outro os portugueses-brasileiros. Alinhados com os primeiros, os brasileiros-portugueses; e na outra ponta os brasileiros-brasileiros. E depois os excluídos de toda sorte (os negros, os

mamelucos, aquela parte da população a que o jornalista Elio Gasperi chamou de “a turma do andar de baixo”, os que não “escrevem” a história).

Os primeiros, os portugueses-portugueses, eram os que, desde sempre, nascidos na metrópole, se viam como portugueses e eram contra a formação de uma nova nação – sobretudo os funcionários do Estado, membros da nobreza, militares e burocratas, padres e capelães, bibliotecários, escreventes, que corriam o risco de, com a nova ordem, perder soldo e condição social16. Esses, em algum momento, desejaram que o país agora

independente voltasse à condição de colônia, e sem dúvida o jornalista Luís Augusto May, o criador de A Malagueta (1821-1822), pertenceu a esse grupo, apesar dos elogios que a ele dedica o historiador Nelson Werneck Sodré.

Os segundos, os portugueses-brasileiros, eram os que, embora nascidos em Portugal, aqui viviam e aqui queriam escrever sua história, longe das contradições e mesquinharias de um dos governos considerados mais retrógrados da Europa17. O jornalista João Soares Lisboa, redator do Correio do Rio de Janeiro, que circulou entre 1822 e 1823,foi um típico português-brasileiro. Considerado o primeiro jornalista a ser processado por “abuso de liberdade de imprensa”18, é chamado pelo historiador Nelson Werneck Sodré de “a maior figura da imprensa brasileira de seu tempo” (SODRÉ, 1999: 73).

No terceiro grupo, composto pelos brasileiros-portugueses, ficavam os cidadãos nascidos aqui nos tempos do Brasil colônia, como os já citados Hipólito José da Costa ou Alexandre Gusmão – Hipólito, nascido na então província Cisplatina, era funcionário de carreira do governo português. O próprio padre Antonio Vieira, mesmo nascido em Lisboa, fora considerado um “brasileiro” por haver sido educado na Bahia, antes de se tornar orador na metrópole e um dos protegidos do papa. Mas, nesse período da formação da

nacionalidade, a expressão brasileiros-portugueses designa os membros da elite

conservadora, que demoraram a adotar a causa nacional, como o funcionário, economista e jornalista José da Silva Lisboa, depois conhecido como Visconde de Cairu. Nascido na Bahia, José da Silva Lisboa era um brasileiro que se considerava cidadão português – e Werneck Sodré não dissimula o mau humor com que menciona o polêmico editor do

Conciliador do Reino Unido (1821), de Reclamação do Brasil (1822) e da Atalaia (1823), entre outros periódicos criados pelo prolífico periodista e intelectual, que hoje chamaríamos de “baiano”.

Já o quarto grupo, o dos nascidos aqui e que abraçaram a causa nacional de

primeira hora, seriam os brasileiros-brasileiros. Nascidos no Brasil Colônia, eles nutriam a forte convicção de que havia um país e uma identidade a serem criados, como brasileiros. O baiano Cipriano José Barata de Almeida, autor das Sentinelas da Liberdade, foi, sem

dúvida, um legítimo brasileiro-brasileiro. Mas o mais notável dentre esses brasileiros de primeira hora foi o frade carmelita pernambucano Joaquim do Amor Divino Caneca, o “frei Caneca”, jornalista e editor do Tífis Pernambucano (1823). Personagem original e imaginando um país que até os dias de hoje não conseguimos plasmar, o frade pernambucano chegou a ser um nome pensado, quando se buscou um herói para simbolizar os ideais da República, ao se abolir a monarquia. Os mentores do movimento republicano precisavam criar símbolos e alimentar o “imaginário” do novo tempo. Mas, por causa do viés separatista e por seu caráter demasiado revolucionário, o frade pernambucano teve de ceder lugar a um outro “Joaquim”, o José da Silva X avier, Tiradentes. O mineiro atendia mais ao modelo de herói quando os pais da República saíram à busca de um nome para o panteão simbólico do país – como conta o historiador José Murilo de Carvalho em seu livro A formação das almas. A seguir se construiu a

iconografia e a própria história ou “lenda” do mártir Tiradentes, retratado de modo a lembrar outro mártir, o do Gólgota. A semelhança da iconografia criada para o mineiro com o nazareno não é uma mera coincidência.

O fato é que nos primeiros anos do Brasil independente houve um sentimento muito forte de brasilidade, que se traduziu na valorização da variedade racial, na exaltação da beleza e das riquezas naturais e na grandeza territorial do país. Na criação desse

imaginário houve forte contribuição das imagens e dos relatos que iam sendo publicados pelos viajantes que visitaram o país nessa primeira metade do século, e a que nos

referimos no começo deste capítulo.

A historiadora Isabel Lustosa conta que até José Bonifácio, no discurso de despedida da Real Academia de Ciências de Lisboa, em 1819, ano em que regressou ao Brasil, revelava que o ufanismo dos brasileiros já se construía com base nas dimensões continentais do país e em suas supostas e/ou evidentes riquezas naturais. Mesmo que Bonifácio se referisse ao país como “Nova Lusitânia”: “Que terra para um grande e vasto império! Riquíssimo nos três reinos da natureza, com o andar dos tempos, nenhum outro país poderá correr parelhas com a nova Lusitânia”, discursou o secretário perpétuo da Real Academia de Ciências de Lisboa (LU STOSA, 2000: 51).

A exaltação das peculiaridades nativas se refletiu em um dado bastante concreto: as pessoas adotaram a prática de trocar de nome. Abandonavam os patronímicos lusitanos, como Souza, Ferreira ou Muniz, para adotar nomes de árvores ou de animais nativos. Nessa época, por exemplo, um jovem pintor gaúcho e futuro ilustrador de que se falará em capítulos adiante resolveu mudar seu nome de Manuel José de Araújo para Manuel de Araújo Porto-alegre (com hífen seguido de letra minúscula), após um breve período em que se fez chamar por Manuel José Pitangueira. Isabel Lustosa é quem nos conta:

Muito significativamente, um grande número de pessoas tiraria de seus nomes os patro- nímicos portugueses e adotaria, em seu lugar, nomes indígenas de árvores e animais silvestres brasileiros. Em outubro de 1822, o jornal O Volantim publicava uma série de anúncios onde pessoas afirmavam ter trocado o nome. [...] O cirurgião Francisco de Sousa Muniz, num sábado, dia 18 de outubro de 1822, anunciou, por meio daquele jornal, que “querendo imitar honradamente a seus patrícios e possuído de igual patriotis- mo”, declarava que seu nome daquele dia em diante seria “Francisco Paulo de Sousa Malagueta” (LUSTOSA, 2000: 54).

É assim que José Maria Migués se tornou Migués Bentevi, Pedro Antonio de Souza passa a se chamar Pedro Antonio Cabra-Bode, e José Caetano de Mendonça vira José Caetano Mendonça Jararaca (LUSTOSA, 2000: 55-56). Esse viés patriota durou décadas. Tanto que, mais de trinta anos depois, outro ilustre personagem, Quintino Antonio Ferreira de Sousa, aos 15 anos, em 1857, mudou seu nome para Quintino Bocaiúva. E da amálgama desses elementos – imagem idealizada o índio, mestiçagem, orgulho das riquezas naturais, brios intelectuais feridos – ia se concretizando, no dizer de Isabel Lustosa, um esboço de identidade nacional, combustível onde cozia o processo político.

O que chama atenção é o fato de as pessoas recorrerem à imprensa para avalizar essa troca identitária, como a reiterar que “vale o impresso”. Ocupemos-nos, então, da imprensa e da formação do leitorado nesse momento de gestação da nacionalidade.

No documento A revista no Brasil, o século XIX (páginas 36-40)