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127 Globalmente, nestas produções as crianças revelam uma especial preocupação sobre a sustentabilidade dos

Maria João Leote de Carvalho

127 Globalmente, nestas produções as crianças revelam uma especial preocupação sobre a sustentabilidade dos

bairros, aproximando-se da defesa de uma ideia “cidade saudável” (Duhl e Hancock, 1999, cit. em Oliveira et al., 2004: 97), que se refere aos espaços urbanos em que se está continuamente a criar e a melhorar o ambiente físico e social, fortalecendo os laços e recursos comunitários, fortalecendo os laços sociais e os recursos comunitários elevando a qualidade de vida da população.

“Nós” e os “Outros”: dinâmicas espaciais

A par da concentração espacial da pobreza, outro dos aspectos mais relevantes na caracterização do universo populacional destes bairros é a existência de um significativo número de indivíduos de origens étnicas diferenciadas territorialmente concentrados.

A diversidade cultural e étnica é uma marca incontornável das sociedades urbanas num quadro alargado de globalização. Por todo o lado, multiplicam-se as possibilidades de encontro e de interação com indivíduos que possuem identidades diversas, falam outras línguas, manifestam costumes, crenças, tradições e um passado cultural diferente do predominante. A exigência atual que a todos se coloca é a da promoção de uma convivência comum em respeito pela diferença que o “outro” representa em lugares e espaços onde todos se cruzam, assumindo esta interação uma especial incidência nas grandes cidades e metrópoles para onde tendem a confluir os diversos fluxos migratórios.

Nesta pesquisa, observou-se recorrentemente que a convivência entre tão concentrado número de famílias de diferentes origens étnicas, e até mesmo dentro de uma só, está muito longe de se revelar minimamente adequada e assertiva, tendendo a registar-se um clima permanente de violência verbal e física e grande conflitualidade entre diferentes elementos, gerações e vizinhos que as crianças percecionam, apropriam e tendem a reproduzir entre si.

Quando se fala de bairros de realojamento, a imagem que tende a prevalecer na opinião pública aponta para espaços homogéneos, tendendo a ignorar-se como isso está longe de ser verdade. Várias crianças destacam a violência de se encontrarem sujeitas a processos de segregação espacial no interior dos bairros, uma parte dos quais com base na diferenciação por origem étnica, num processo de divisão social do espaço que institui relações de poder que se institucionalizam entre os residentes num clima de permanente oposição e procura de domínio territorial que as crianças apropriam e (re)constroem.

[descrição do desenho] “Tem uns prédios amarelos e outros cor-de-rosa e os prédios não podem ser todos iguais. (…) Nós, os ciganos, vivemos quase todos nos prédios amarelos. No meu prédio só vivem dois senhores [brancos] que não são ciganos e nos outros prédios amarelos vivem muitos ciganos, uns senhores e pretos é que é menos, é sempre mais ciganos.” [rapazM16, 8 anos, 2º ano, Bairro Azul]

[descrição do desenho] “É o desenho da minha rua e do lado dos prédios dos ciganos e do outro eu e as minhas amigas. O que eu gosto menos no meu bairro é dos ciganos e se eu pudesse eu mudava eles de bairro porque eles sujam a rua, são malcriados e barulhentos.” [rapariga F13, 9 anos, 4º ano, Bairro Branco] Estes choques revelam-se de forma brutal em torno da necessidade de afirmação pessoal e social, assente numa linguagem fortemente segregadora e preconceituosa, mas que nada mais será do que o espelho de como,

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desde muito cedo, experiências de não inclusão vêm a marcar muitas crianças estando longe de ser exclusivas destes locais. Os bairros, na sua qualidade de territórios, não se limitam à sua configuração física, e mais relevante podem ser as fronteiras percecionadas, representadas e vividas no seu seio, assentes em divisões por micro territórios associados a grupos culturais específicos. Ainda que esta colocação possa ter decorrido de forma pensada institucionalmente, a generalização de expressões do género “a rua dos ciganos”, para citar só o exemplo mais paradigmático neste campo, amplamente conhecido e mencionado pelos residentes dos seis bairros em estudo, é algo que contribui, e simultaneamente (re) constrói, um permanente mal-estar social, reforçando fenómenos de estigmatização e a promoção de fenómenos de insulamento entre “nós” e “outros” que não se esgota apenas na relação de cada bairro com o exterior, mas fundamentalmente no seu próprio seio.

Violência urbana: do bairro à escola

“Por que é que a professora não vem morar para aqui? Aqui na [nome do bairro] ninguém manda em nós, só nós é que mandamos na [nome do bairro], é bairro fixe!...” [rapazM13, 12 anos, 4º ano, Bairro Verde] Um olhar mais atento e aprofundado sobre os diversos territórios onde as escolas se localizam permite trazer para discussão contornos nem sempre explorados. O terreno escolar, entendido na sua globalidade, compreende a vida quotidiana dos estabelecimentos de ensino não só dentro de portas, mas também na interação além delas. São colocadas em jogo as relações do dia-a-dia, as tensões e os conflitos, bem como os modos de resolução das situações com o exterior (Vienne, 2008).

“O rapaz [6 anos M30, 1º ano, Bairro Amarelo] reagiu ao facto de a professora ter ficado com um apito que levara para a escola e com o qual perturbara a turma. Na manhã seguinte, ao entrar na sala, dirigiu-se à professora, olhou para cima e tranquilamente disse-lhe:

– Eu disse à minha mãe que ficaste com o meu apito e a minha mãe não gostou que tivesses ficado com o meu apito e diz que é para devolveres que ela ficou zangada e senão vem cá bater-te! Ela disse que ou me dás o apito ou te bate.”

“Assalto com pistola não é nada!” [rapaz M51, 10 anos, 3º ano, Bairro Azul]

O Direito à Educação é mais do que um direito à mera escolarização.4 Pela entrada tardia na modernidade, é relativamente recente em Portugal a defesa pública da ideia de que a educação escolar é a trave-mestra do desenvolvimento humano, duvidando-se que este conceito se encontre totalmente interiorizado em certos setores da população portuguesa. Deste modo, identificam-se contradições e paradoxos sobre esta matéria que acabam por se refletir intensamente no quotidiano de muitas crianças e jovens.

4 Consagrado nos Art.ºs 73º-76º da Constituição da República Portuguesa, o Direito à Educação toma corpo na Lei de Bases do

Sistema Educativo, em que se define, organiza e regula a educação das crianças a partir dos 3 anos de idade como direito público

(Lei nº 46/1986, de 14 de Outubro, com as alterações introduzidas pela Lei nº 115/1997, de 19 de Setembro, e com as alterações e aditamentos introduzidos pela Lei nº 49/2005). No ponto 1, art.º 73º da CPR está expresso “que todos têm direito à Educação e

cultura”, noção desenvolvida no ponto 1, art.º 74º: “todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de oportunidades de acesso e êxito escolar”. No ponto 2, art.º 74º o Estado é responsabilizado pela garantia “de um ensino básico universal, obrigatório e gratuito”.

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