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123 Urbanização e violência

Maria João Leote de Carvalho

123 Urbanização e violência

O impacto das dinâmicas territoriais não pode ser ignorado na produção da vida social (Guerra, 2008; Kintrea et al., 2008), muito em especial nos contextos sociais onde as crianças vivem. Em Portugal, três fenómenos marcam o desenvolvimento neste campo nas últimas três décadas: urbanização, metropolização e litorização.

A modernidade tardia portuguesa, inacabada no entender de alguns autores (Viegas & Costa, 1998), faz-se sentir nas intensas e aceleradas mudanças que vêm a acontecer num padrão regional de desigual distribuição no país. No processo de urbanização acelerada do litoral português, que decorre a par da desertificação do interior, o espaço urbano reforça-se como aquele que, como mencionado anteriormente, tudo conflui, ou deseja confluir, e disso são exemplo os fluxos migratórios a que se tem vindo a assistir. É nas cidades do litoral português, em especial nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e do Porto, que reside o maior número de crianças, numa lógica que se estende ao resto da população. O contraste entre os aglomerados populacionais do litoral e do interior é acentuado, com os primeiros a apresentar as mais altas taxas de natalidade e os menores índices de envelhecimento. As diferenças de desenvolvimento entre o litoral e o interior do país são uma realidade estando os concelhos com maior poder de compra todos localizados no litoral.

Parte da discussão em torno da violência centra-se recorrentemente na sua expressão em contexto urbano, a dita violência urbana, conceito cuja operacionalização não se revela simples surgindo frequentemente associada a processos de urbanização cujos efeitos se fazem sentir de modo intenso sobre as populações (Moura, 2003). Políticas de habitação social, designadamente através da construção de bairros sociais de realojamento, têm levado à criação de zonas bem delimitadas no interior das cidades ou nas suas periferias para onde populações se veem deslocadas e “artificialmente” fixadas (Moura, 2003; Leonardo, 2004). As desigualdades sociais e os fenómenos de exclusão social intensificam-se e ganham diferentes formas de expressão. Neste âmbito uma especial atenção tem de ser dada aos fenómenos de exclusão social e de pobreza, problemas demasiado profundos e marcantes na sociedade portuguesa para que se continue a ignorar os seus efeitos que, de forma direta ou indireta, atingem a coesão social. Dizem respeito a um leque de situações onde se vê posto em causa o exercício efetivo à liberdade individual (Sen, 1999), pelo que a necessidade de (re)conquista de confiança entre cidadãos e instituições é fulcral para a sua prevenção. E a mesma orientação prevalece quando se trata de discutir os fenómenos de violência em contexto urbano.

Na escola, enquanto espaço privilegiado de socialização na infância, a violência urbana vê-se refletida em diferentes patamares, não sendo por isso de estranhar que um número expressivo de estudos em torno da violência nas escolas tenha sido concretizado numa estreita articulação com análises em torno de processos de urbanização, centrados em determinados espaços urbanos, numa linha de orientação que aqui também é seguida.

Aspectos metodológicos

Delimitando o interesse num território específico, a informação apresentada ao longo destas páginas foi obtida no decorrer de pesquisa de caráter exploratório integrada em projeto de investigação, mais vasto, centrado na problematização dos modos de vida de crianças em bairros sociais de realojamento, no concelho de Oeiras, na Área Metropolitana de Lisboa, e do seu envolvimento em violência e delinquência. À opção pela investigação neste espaço social associam-se as profundas transformações ocorridas nos últimos anos no tecido (sub)urbano das grandes cidades portuguesas. Neste campo destaca-se a extinção de núcleos de construção de génese ilegal que

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implicaram a subsequente deslocalização das populações aí residentes para estes novos equipamentos especialmente criados para esse fim. Na medida em que, pela sua construção, se visava a melhoria das condições de vida das populações realojadas, considera-se importante identificar, analisar e compreender algumas das mudanças sociais em curso nestes novos núcleos urbanos, nomeadamente através do discurso oral e de outras formas de expressões trazidas para a escola pelas próprias crianças. Bairro e escola são aqui entendidos como “construções sociais dotadas de uma certa coesão interna e de uma autonomia relativa, (…) mas ao mesmo tempo, estruturalmente articuladas entre si por laços de dominação e interdependência” (Van Zanten, 2001, cit. em Moignard, 2008: 190).

Nesta pesquisa, promoveu-se uma estratégia que articula instrumentos metodológicos diferenciados em função da observação de uma realidade social complexa a nível de conteúdo e também de forma específica, da acessibilidade aos atores sociais nela envolvidos. Na etapa aqui colocada em causa, a abordagem centrou-se numa metodologia qualitativa concretizada em torno da diversificação de estratégias e instrumentos (técnicas visuais – fotografias e desenhos dos bairros –, conversas informais e observação participante), concretizada junto de 312 crianças do 1º Ciclo do Ensino Básico, de ambos os sexos, com idades compreendidas entre os seis e os 13 anos, que, entre final de 2005 e início de 2009, frequentaram duas escolas abrangidas pelo Programa TEIP II no contexto em estudo.

O tratamento da informação recolhida foi sustentado numa lógica analítica compreensiva que teve como ponto de partida a “voz” das crianças através das suas produções assumindo-se como central a análise do desenho sobre o bairro, entendido como uma produção simbólica.3 Na sua análise cruzou-se o plano de representação gráfica com o conteúdo da descrição e interpretação (a narrativa) feita pelas próprias crianças no entendimento de que “o desenho das crianças é, afinal, o desenho de um mundo” (Sarmento, 2007: 20). As opções metodológicas tomadas permitiram ver como estas crianças constroem a experiência da sua própria socialização, tendo em linha de conta o plano das representações, das emoções e das ações, num processo que Corsaro (1997) designa por “reprodução interpretativa”. Ao darem a conhecer como representam a vida no contexto de residência, a violência, sob diversas formas, emergiu como fator primordial para a análise realizada e sobre a qual se passa sumariamente a discutir algumas das principais questões levantadas.

Perspetivas das crianças sobre os bairros

“O que faz falta no meu bairro é casas e mais casas para as pessoas e um parque. Aqui o que há mais é pessoas pobres, só há pobres, pessoas pobres, só pobres...” [rapazM08, 2º ano, 8 anos, Bairro Amarelo] Na análise das perspetivas das crianças sobre os bairros onde residem, o primeiro ponto relevante prende-se com o facto dos aspectos negativos se sobreporem significativamente aos positivos. Violência, desordens e crime, sob diferentes formas, são os problemas mais destacados. Evidencia-se, nos seus discursos e produções visuais, como as crianças estão atentas à realidade social e dela participam, reconstruindo o seu papel social pelas situações que vivenciam, representando-as de forma conflitual. Esta linha de orientação é especialmente intensa quando falam sobre as “pessoas” e os “equipamentos públicos” e, num grau um pouco inferior, mas ainda expressivo, quando se reportam ao “espaço público” e “comércio/serviços”. No polo oposto, a “habitação”, as “escolas” e a “família” suscitam valorações mais positivas do que negativas. Digna de registo a ligeira diferença na forma como representam as

3 De forma a preservar a sua identidade, neste texto os nomes das crianças e adultos foram substituídos por códigos

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