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4. Conceitos centrais da investigação

4.1. Governança e regulação

Neste trabalho adotou-se o conceito de governança enunciado por Patrick Le Galès (2004) por ser próximo do conceito de ação pública, tendo sobre este a vantagem de ser usado por um leque mais vasto de autores e, particularmente no contexto da análise das políticas europeias e do PB, (por exemplo, Gornitzka, 2006; Lawn, 2006, 2011; Ravinet, 2008; Dale, 2008, 2010; Amaral et al., 2009; Robertson, 2010; Grek, 2014; Nóvoa, 2013). Para Patrick Le Galès, a governança respeita

... ao conjunto de instituições, redes, diretivas, regulamentações, normas, usos políticos e sociais, bem como aos atores públicos e privados que contribuem para a estabilidade duma sociedade e dum regime político, para a sua orientação, a sua capacidade de dirigir e de fornecer serviços e assegurar a sua legitimidade (Le Galès, 2004: 243).

33 Le Galès põe desta forma a tónica no conjunto de atores e na partilha do poder democrático, assente em processos interativos de regulação. De acordo com João Barroso (2009), citando Reynaud (2003: 956), a regulação é sempre uma

multirregulação. Num contexto de governança também os instrumentos tradicionais

de governo hierárquico, tais como legislação e regulamentação perdem efeito, dando lugar a novos instrumentos que permitem ao Estado continuar a regular a ação dos diferentes atores e dos seus interesses em favor do equilíbrio social e do bem comum de forma persuasiva e não coerciva. Governar através de instrumentos é um modo próprio da governança, em que a fonte de poder e a regulação passam da relação vertical hierárquica entre o Estado e os cidadãos para a inter-relação entre os atores, sendo que essa inter-relação se gera e organiza em torno dos instrumentos.

A governança é pois inerente à ação pública, dois conceitos concordantes, segundo Delvaux (2007: 70), ambos evidenciando o papel dos múltiplos atores e dos processos de regulação e jogos de poder que têm lugar em arenas e fóruns políticos. Os conceitos de governança e de multirregulação traduzem e ajudam a compreender uma nova realidade social e política, decorrente de mudanças na forma de percecionar o papel do Estado. Em primeiro lugar, a descrença no Estado Providência e na sua capacidade em resolver os problemas do bem público, em parte resultantes da crise económica e financeira dos anos setenta, em parte resultantes da ascensão do neoliberalismo, com a entrada na arena política de atores do setor privado, sob o

slogan de “menos Estado, melhor Estado” (Lima, 2007: 165).

Adicionalmente, com os fenómenos da globalização e da governação multinível, o próprio conceito de Estado Nação é posto em causa (Barroso, 2013: 16). Merece aqui destaque a governança no seio da UE. A UE, enquanto espaço político supranacional regional, é considerado um caso singular, pela abrangência de objetivos a que se propõe (Dale, 2009: 27; Rodrigues, 2005: 398). Os objetivos da UE não se confinam a uma integração económica, incorporam igualmente o desenvolvimento de um modelo social que pressupõe um quadro comum de valores e de normas orientado para a coesão social. Conforme defende Maria João Rodrigues, a Estratégia de Lisboa não é definida “para se transformar «na mais competitiva», mas sim, numa estratégia que visa uma forte combinação entre a competitividade e os outros fatores. Esta é a especificidade do modo europeu” (Rodrigues, 2005: 396). Seja como for,

34 politicamente, a UE é hoje uma realidade complexa que constitui uma instância política supranacional em permanente tensão com as soberanias nacionais dos Estados Membros e que “requer um motor político, i.e. um centro de governação a nível europeu, com o poder de coordenar as políticas e de adaptá-las a cada contexto nacional” (idem: 398).

No espaço político da UE têm por isso emergido modos de governança em função da necessidade de encontrar consensos, equilíbrios e convergências entre os Estados Membros, tendo em vista a consecução de objetivos e metas traçados em órgãos ou outras instâncias de decisão europeias. Gornitzka (2006) refere que “na literatura sobre a governança europeia, o termo governança está especificamente ligado à ideia de suplementar e desenvolver alternativas ao Método Comunitário e à ênfase na lei dura (hard law) como meio de integração” (idem: 11). É neste contexto que a Cimeira de Lisboa de 2000 pode ser considerada um marco em termos de governança europeia, na medida em que concebeu um método inovador, o Método Aberto de Coordenação (MAC,) para lidar com os problemas colocados pela governança supranacional. Seguindo Gornitzka (2006),

O Conselho Europeu de Lisboa representa a confluência de dois processos gerais – o processo que levou ao diagnóstico das falhas da economia do conhecimento da Europa e e ao reconhecimento de que esta era uma preocupação comum europeia, e a procura de novos modos de governança na União Europeia (idem: 10).

O MAC foi apresentado na Cimeira de Lisboa como um novo método de coordenação das políticas europeias com vista ao cumprimento da Estratégia aí delineada. O método assenta no princípio de que os Estados-Membros devem definir os seus próprios objetivos e metas nacionais tendo em vista a consecução dos objetivos fixados para a UE, respeitando o seguinte: calendários fixados a curto, médio e longo prazo; estabelecimento de indicadores quantitativos e qualitativos e benchmarks para comparação das melhores práticas; monitorização e avaliação por pares (European Council, 2000). O funcionamento do MAC é baseado em grupos de trabalho temáticos, constituídos por peritos, e um Grupo Permanente para os Indicadores e

Benchmarks (SGIB), o que “acentua a natureza de rede da governança europeia ao

nível da educação” (Gornitzka, 2006: 20). O MAC distingue-se assim do método comunitário tradicional não só pela governança em rede mas também pela introdução

35 da comensuralidade (Landri, 2017: 22), i.e. mobilização de dados e metas quantitativas e níveis de referência (benchmarks), bem como a publicação de resultados que levam à comparação entre países.

O PB insere-se nesta dinâmica de governança supranacional (Charlier & Croché, 2017), com a especificidade de incidir sobre a área de educação, uma área de soberania nacional que continua a ser enquadrada pelo princípio da subsidiariedade. Neste tipo de relações multinível e de fronteiras mal definidas ganha protagonismo as novas fontes de legitimação do poder, nomeadamente através do uso de modos e instrumentos políticos baseados na persuasão e não na coação, como os acima mencionados, e que são por isso caracterizados como soft. O termo soft aplicado a modos e instrumentos tem sido utilizado, inter alia, para caracterizar a governança do PB por autores como Gornitzka (2006), Lawn (2006, 2011), Veiga & Amaral (2012) ou Brøgger (2016). A linha de inquirição sobre a governança transnacional na UE é pois importante para uma contextualização adequada da problemática desta tese, visando a compreensão do desenvolvimento do PB no quadro do desenvolvimento da UE.

Neste sentido, emerge como relevante para o presente estudo a análise de um movimento político para a convergência dos sistemas educativos europeus que alguns autores designam de europeização da educação e do ensino superior (Lawn, 2002, 2006, 2011; Nóvoa, 2002, 2005, 2013; Antunes, 2005, 2008; Lima, Azevedo & Catani, 2008, Lima, 2010; Muller & Ravinet, 2008; Grek, 2008, 2014; Croché, 2009b; Dale, 2009; Gornitzka, 2010; Dale & Derouet, 2012; Lawn & Grek, 2012; Lawn & Normand, 2015; Landri, 2017)18.

Ao fenómeno da europeização não é alheio o da governança transnacional (Djelic & Sahlin-Andersson, 2006), que opera a partir de redes e através da circulação de ideias e de instrumentos baseados no conhecimento: a regulação é atualmente “um conjunto complexo de atividades que faz a ponte entre o global e o local e que acontece simultaneamente dentro, entre e através das fronteiras nacionais” (idem: 5). Nesse sentido, Djelic & Sahlin-Andersson (2006), mostraram que a governança

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36 transnacional está a levar ao desenvolvimento de uma sociedade mundial apoiada em padrões e modelos em relação aos quais os Estados e outros atores são referenciados e transformados. Neste contexto surge um novo tipo de atores, os atores soft (Meyer, 1996) que não substituem os Estados mas que exercem uma ação persuasiva e que transmitem saberes especializados fundamentados em conhecimento científico. Os atores soft, que têm identidades múltiplas, em fluxo e mal definidas, podem ser

empresas, agências estatais, ONGs, grupos da sociedade civil, profissões e comunidades epistémicas, órgãos estandardizados, organizações internacionais

(Djelic & Sahlin-Andersson, 2006: 16). Estes atores mobilizam os seus quadros nacionais regulatórios transportando-os para a governança internacional onde irão ser objeto de processos sociais de tradução19.

De entre os atores soft, destaca-se pela importância assinalada em estudos recentes (Lawn, 2002; Nóvoa, 2002; Martens et al., 2004; Djelic & Sahlin-Andersson, 2006; Carvalho, 2011; Steiner-Khamsi, 2012; Grek, 2014), um conjunto de organizações internacionais que se tem vindo a impor a partir da segunda metade do século XX e que marcarão as políticas nacionais até aos nossos dias, através de estudos, relatórios,

standards, opiniões, recomendações e estudos comparados.

A influência destas organizações, criadas a seguir à 2.ª guerra mundial, tais como o Banco Mundial (1944), a UNESCO (1945), a OECD-OCDE (1948) e a CEE/UE (1957), faz-se sentir, quer através das suas próprias produções, adotados pelos Estados e pelas IES, através de processos de tradução, quer no estímulo e inspiração para a criação de inúmeros grupos de trabalho, encontros, reuniões e redes de experts. Estes grupos e redes operam numa dinâmica de fluxos, facilitada pelo desenvolvimento das novas tecnologias de informação e comunicação (Castells, 2005) constituindo verdadeiras instâncias de governança transnacional (Djelic & Sahlin-Andersson, 2006).

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A circulação de atores e das viagens das suas ideias, através de textos de vária natureza, para outros contextos institucionais onde são traduzidos (Czarniawska & Joerges, 1996 citus

in Djelic & Sahlin-Andersson, 2006) será abordada na secção seguinte, onde é analisado o

37 É assim que os benchmarkings e os rankings, dispositivos próprios de uma sociedade orientada para o mercado, estão a fazer o seu caminho introduzindo necessidades artificiais de padronização e competição. Particularmente no ensino superior, como em outras áreas da educação, vários exemplos deste tipo de governança soft podem ser encontrados em projetos, tais como, por exemplo, o Tuning, o AHELO20 e o CALOHEE21 e em estruturas como a ENQA, bem como o EQF e o MAC, introduzido com a Estratégia de Lisboa, a partir do Conselho Europeu de 2000.

As análises que mostram que as políticas atuais são definidas em grandes espaços de governança supra e transnacional, quer sejam redes ou espaços políticos regionais como a UE, e influenciadas por atores soft internacionais, não apontam para a diminuição das responsabilidades nem para a diminuição da dimensão nacional das políticas públicas. Os órgãos de poder e os outros atores políticos nacionais são determinantes para o desenvolvimento dessas políticas. O que a análise da governança transnacional sugere é que, para a compreensão da ação dos atores nacionais, é necessário compreender a intrincada malha em que os mesmos se movem, e os processos de interação social que daí decorrem, que dão forma e significado a essa ação. A sociologia da tradução, entre outras abordagens, oferece explicações para a ocorrência de fenómenos de governança transnacional através da circulação de ideias e da forma como esta circulação pode induzir processos de mudança institucional. Este tema é abordado na secção seguinte.