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2. O papel mediador dos documentos

2.2. Os documentos como mediação

Os documentos foram cruciais não só pela coparticipação de atores na sua elaboração que, como acima se expos, foi resultante da circulação destes em diversos contextos. Há outras razões relacionadas com o funcionamento dos órgãos coletivos na abordagem da matéria em estudo que concorreram para a importância que os documentos assumiram e que a seguir se analisam.

A forma de funcionamento dos atores coletivos, relativamente ao PB, assentou fundamentalmente em textos escritos, i.e. desenvolveu-se em torno de documentos: a partir de um primeiro documento partiu-se para a sua análise que gerou a produção de outros documentos sobre os primeiros documentos. “Os documentos derivam de outros documentos” (Freeman & Maybin, 2011: 161), quer pela forma (por exemplo, os Pareceres têm todos a forma de Parecer porque encaixam numa determinada categoria), quer pelo conteúdo, através de processos de “validação recíproca” (ibidem), pelas citações ou referências que fazem uns dos outros. Desta forma, o documento “é sempre plural, não meramente múltiplo mas multiplicador” (idem, 162).

156 No caso presente, olhando para a Declaração de Bolonha como exemplo, verificamos que este foi um documento de partida do qual derivou um conjunto de documentos interrelacionados. A Declaração foi objeto de análise por parte, além de vários atores individuais, do CNE, do CRUP e do CCISP. Mais, os Pareceres destes dois últimos órgãos foram eles próprios objeto de análise do CNE (04/A3/CNE/8). Outros exemplos foram o memorando sobre “Aprendizagem ao longo da vida” da CE (2000), as propostas de Lei de Bases da Educação e o Documento de Orientação do MCES “Avaliação, revisão e consolidação da legislação do ensino superior”, 2003. Estes documentos foram igualmente ponto de partida e objeto de análise por parte do CNE, do CNAVES, do CCISP e do CRUP.

Para além disto, sendo os atores autores de vários documentos, uns individuais e outros coletivos, muitas vezes, não havendo citações expressas, verifica-se importações de uns documentos para os outros, não só de ideias mas de formas de as expressar, desta forma aumentando a legitimidade das interpretações fixadas nesse documento.

Como exemplos, transcreve-se a seguir um conjunto de unidades de texto retiradas dos documentos incluídos no corpus, que se reportam não só a interpretações mas também a propostas. Atente-se no seguinte:

1) No enunciado sobre os objetivos do EEES, formulados por Sérgio Machado dos Santos, em 2002, por Simão et al., em 2003 e em 2005, e pelo CRUP, em 2005, acentuando a promoção da mobilidade e da empregabilidade, tendo em vista o reforço da competitividade internacional do ensino superior europeu:

A Declaração de Bolonha, subscrita em Junho de 1999 pelos Ministros da Educação de 29 Países europeus, tem em mente a construção de um espaço europeu de ensino superior

com os objectivos genéricos de promover a mobilidade e empregabilidade dos graduados, por forma a dar conteúdo real ao direito de livre circulação e estabelecimento dos cidadãos, e de reforçar a competitividade internacional do ensino superior europeu no contexto da crescente globalização dos sistemas de ensino e formação (02/B2b/SMS/2, p. 1).

A Declaração de Bolonha... tem em mente a construção de um espaço europeu do ensino

superior com os objectivos genéricos de promover a mobilidade e empregabilidade dos graduados, por forma a dar conteúdo real ao direito de livre circulação e estabelecimento dos cidadãos, e de reforçar a competitividade internacional do ensino

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superior europeu no contexto da crescente globalização dos sistemas de ensino e formação (03/B2d/SSC/1, pp. 244-245).

Acresce a questão da construção de um Espaço Europeu de Ensino Superior visando

promover a mobilidade e a empregabilidade dos jovens graduados, conferindo conteúdo real ao direito dos cidadãos de circularem e se estabelecerem livremente neste espaço, reforçando ainda a competitividade internacional no contexto da crescente globalização dos diversos sistemas de ensino e formação (05/B1e/CRUP/2, p. 29).

... um Espaço Europeu de Ensino Superior coeso, harmónico, competitivo e atractvo,

com a finalidade genérica de promover a mobilidade dos estudantes e demais agentes educativos e a empregabilidade dos diplomados, por forma a dar conteúdo real aos direitos de livre circulação e estabelecimento dos cidadãos, e de reforçar a competitividade internacional do ensino superior europeu no contexto da crescente globalização dos sistemas de ensino e formação (05/B2d/SSC/2, p. 39).

2) Na interpretação dos objetivos da Declaração de Bolonha, por parte dos mesmos autores, em 2002, 2003 e 2005, sublinhando a flexibilidade expressa no texto da Declaração, a não imposição de um sistema uniforme e a diversidade de formas de organização que permite:

… as especificações contidas nos objectivos da Declaração são suficientemente amplas para

permitir uma grande flexibilidade e diversidade de formas de organização. Em particular,

realça-se que a Declaração de Bolonha não impõe qualquer sistema de graus uniforme, como por vezes se receia (02/B2b/SMS/2, pp. 2-3).

... as especificações contidas nos objectivos da Declaração são suficientemente amplas para

permitirem uma grande flexibilidade e diversidade de formas de organização. Em

particular, realça-se que a Declaração de Bolonha não impõe qualquer sistema de graus

uniforme no espaço europeu (03/B2d/SSC/1, pp. 245-246).

As especificações contidas nos objectivos da Declaração de Bolonha são amplas permitindo

grande flexibilidade e diversidade de formas de organização, não sendo impositiva a adopção de qualquer sistema de graus uniforme (05/B1e/CRUP/2, p. 30).

3) No reconhecimento, por parte de Sérgio Machado dos Santos, em 2002, e do CRUP, em 2005, do alcance do PB que trouxe para a esfera europeia políticas de âmbito nacional:

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esfera europeia questões cujo tratamento e decisão são de âmbito nacional. Deu-se,

assim, um grande salto qualitativo na cooperação entre os diversos sistemas nacionais de

ensino superior, originando um processo dinâmico que tem vindo a actuar como catalisador quer de reformas nacionais que se encontravam já em curso em 1999, quer de

reformas entretanto iniciadas (02/B2b/SMS/2, p. 1).

A primeira consequência da Declaração de Bolonha foi o grande impulso dado ao

alinhamento voluntário de políticas nacionais, trazendo para a esfera europeia questões cujo tratamento e decisão são de âmbito nacional. Este salto qualitativo desenvolveu atitudes de cooperação entre os diversos sistemas nacionais de ensino superior, dando

origem a um processo deveras dinâmico que vem desde então catalisando, no espaço

europeu, reformas nacionais (05/B1e/CRUP/2, pp. 29-30).

4) Nas propostas de reorganização da formação decorrentes da Declaração de Bolonha, da parte do CNE e de Sérgio Machado dos Santos, em 2002, e de Simão et al., em 2003, enquadradas pela perspetiva da formação ao longo da vida e caracterizadas pela existência de vias alternativas de formação, flexibilidade curricular e acumulação de créditos:

Preconiza-se uma grande flexibilidade nos percursos de formação, dentro da ideia fundamental de que os objectivos da formação podem ser atingidos por vias alternativas, através de percursos que poderão ser monoetápicos, multietápicos ou intermitentes, devendo

permitir, em todos os casos, uma grande flexibilidade curricular e a possibilidade de validação e acumulação de créditos, em correspondência as exigências de uma formação ao longo da vida (02/B2b/SMS/2, p. 11).

Tal flexibilidade deve admitir que os objectivos de formação possam ser atingidos por vias

alternativas, através de percursos não necessariamente formais nem sequenciais

(02/A3/CNE/3, p. 5610).

Preconiza-se uma grande flexibilidade nos percursos de formação, dentro da ideia fundamental de que os objectivos da formação podem ser atingidos por vias alternativas, através de percursos que poderão ser monoetápicos, multietápicos ou intermitentes, devendo

permitir, em todos os casos, uma grande flexibilidade curricular e a possibilidade de validação e acumulação de créditos, em correspondência as exigências de uma formação ao longo da vida (03/B2d/SSC/1, pp. 253-254).

159 2003, em que a especialização profissionalizante coexiste com a especialização científica:

A adopção de um novo conceito de mestrado, que corresponda a uma especialização

científica ou profissionalizante passível de obter, em princípio, ao fim de cinco anos de estudos no ensino superior (300 créditos ECTS). Este grau, na sua versão profissionalizante, integrará naturalmente o ensino politécnico, desde que cumpridos os requisitos de qualidade exigidos (02/B2b/SMS/2, p. 9).

A adopção de um novo conceito de mestrado, que corresponderá a uma especialização

científica ou profissionalizante passível de obter, em princípio, ao fim de cinco anos de estudos no ensino superior. Este grau, na sua versão profissionalizante, integrará naturalmente o ensino politécnico, desde que cumpridos os requisitos de qualidade exigidos (03/B2d/SSC/1, pp. 251-252).

Um novo conceito de mestrado, orientado para uma especialização científica ou

profissionalizante (o que não deverá implicar, na sua certificação, a adjectivação de

«científico» ou «profissional»), em articulação vertical com o grau de formação inicial (02/A3/CNE/3, p. 5611).

As importações de uns textos para outros que foram dadas como exemplo aconteceram na 1ª fase do PB e são reveladoras da influência de um dos textos da autoria de Sérgio Machado dos Santos, publicado em 2002, não só nas monografias de que veio a ser coautor mas também no CNE e no CRUP. Estas importações, a juntar às “coautorias” anteriormente identificadas, são sinal de que os textos escritos constituíram elemento fundamental no processo através do qual os debates tiveram lugar e as ideias circularam. Eles foram o ponto de partida para os debates e a principal estratégia de materialização e fixação de ideias.

Esta circunstância reforça a ideia já exposta de que os atores coletivos, além de terem também desempenhado o papel de mediadores, assumiram ainda o papel de fóruns nacionais de debate político. Os processos de interação que aí ocorreram contribuiram para a construção, circulação e fixação de interpretações sobre o PB em Portugal. Estes processos corroboram dados de investigação que apontam para que, ao nível nacional, os processos de

edição em que os atores se envolveram lhe conferiram características diferenciadoras78, ao

78

Veja-se a este respeito, por exemplo, a conclusão do estudo que caracteriza a concretização do PB em Portugal como “compromisso criativo” (Sin & Saunders, 2014).

160 acentuarem ou selecionarem aspetos específicos das políticas nacionais que adquiriram relevo ou oportunidade por efeito da concretização desta política supranacional.

3. Síntese do capítulo

Na análise atrás apresentada, há dois elementos que sobressaem: os atores e os processos. Os atores individuais foram caracterizados como mediadores, tendo os documentos emergido como veículo de circulação e edição de ideias, em resultado de ações individuais ou de interações de vários atores em contextos comuns. Por seu turno, os contextos foram assinalados como relevantes não só porque corresponderam a atores coletivos que produziram, eles próprios, um número considerável de textos mas também porque surgiram como móbil e veículo de divulgação de alguns dos textos individuais.

Os atores coletivos funcionaram, assim, como fóruns de discussão, proporcionando oportunidades de reinterpretação dos referenciais europeus e de edição das linhas de ação do PB. Estes fóruns nacionais foram tão mais importantes quanto neles participaram atores que, simultaneamente, participaram nos fóruns supranacionais do PB.

Partindo-se da hipótese proposta para este trabalho de que o PB constitui uma ação pública multinível cujos referenciais se foram construindo em fóruns supranacionais e foram sendo interpretados e editados ao nível nacional, argumentou-se anteriormente que o BFUG, onde têm assento todos os membros permanentes (Ministros e CE) e consultivos, com a sua respetiva retaguarda de fóruns e redes, constitui o fórum principal do PB. A presente análise, com base na caracterização dos atores, tornou evidente que a participação de atores nacionais, quer diretamente no BFUG quer em fóruns europeus associados ao PB, nomeadamente através do CRUP, membro da EUA e do CCISP, membro da EURASHE, foi ativa e extravasou o simples papel de representação nacional.

Outro dado relevante é o facto de que durante a 2ª fase da concretização do PB em Portugal, o período em que se definiu o quadro legislativo nacional do PB (2005-2010), em contraste com a 1º fase, correspondeu a um período de estabilidade política e governativa, com uma maioria parlamentar do PS, o mesmo Ministro e o mesmo Secretário de Estado. A estabilidade política e governativa permitiu que fosse a mesma equipa ministerial a participar nos fóruns europeus e a desenvolver interpretações coerentes dos debates aí ocorridos. Facilitou, além disso, a estabilização de conceitos e interpretações e a coerência de decisões.

161 Tendo em conta o corpus da investigação, considerando em simultâneo o número e tipo de documentos e a diversidade de atores envolvidos, parece poder afirmar-se que houve dois contextos que sobressaíram: os órgãos de governo e o CNE, órgão consultivo. Os órgãos de governo (Governo e Ministério com a tutela do ensino superior), com a colaboração dos grupos de missão que este constituiu, foram os obreiros do novo quadro legal do ensino superior.

O CNE poderá considerar-se o principal fórum de debate político no âmbito do PB, não só pelo número de Pareceres e de iniciativas relativas ao PB que promoveu, mas também pela sua própria composição, incluindo representantes dos vários setores da sociedade, e, ainda, pela diversidade de atores chave que integrou e que congregou na discussão de interpretações e orientações. Quanto às estruturas de representação das IES (CCISP e CRUP), que poderiam ser consideradas “círculos de peritos” ou foruns profissionais (Fouilleux, 2000), constituiram em conjunto apenas 17,2% de intervenção (Tabela 12).

Considerando, no entanto, cada um dos órgãos em separado e relacionando os números dos documentos por eles produzidos com o número de documentos de atores individuais e a afiliação institucional dos atores chave, de acordo com as caracterizações atrás apresentadas, pode concluir-se mais uma vez que os docentes universitários tiveram uma intervenção significativamente predominante em relação aos docentes do ensino superior politécnico, ainda que o CCISP tenha tornado público um maior número de documentos relativamente ao CRUP.

Os dados reforçam a afirmação do Capítulo 2 no sentido de considerar que o modelo de governação que levou à concretização do PB em Portugal não seguiu o modelo de governação europeu. O modelo europeu é centrado no BFUG, como uma rede de redes e com recurso a instrumentos soft. O modelo português é um modelo predominantemente centrado no Estado como produtor de legislação79, com a audição, obrigatória tal como consignada na lei, dos órgãos consultivos, embora exista alguma margem de autonomia para regulamentação própria por parte das IES.

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163 CAPÍTULO QUATRO: A EDIÇÃO DO REFERENCIAL (RGS)

Este capítulo apresenta os resultados da análise de conteúdo do corpus documental, constituído pelo conjunto de 122 textos apresentados e codificados no Capítulo 1. O objetivo é responder às questões do Eixo 3: a edição do RGS. Como também referido no Capítulo 1, foram definidas três dimensões de análise – referencial, interpretações do PB, concretização do PB em Portugal – tendo, para cada uma das dimensões, sido definido um conjunto de categorias semânticas80.

O capítulo está organizado em 3 secções, correspondentes a cada uma das dimensões e que incluem as categorias respetivas. Cada categoria começa com uma breve introdução onde se apresentam e justificam as subcategorias que emergiram da análise, ilustrando-as em seguida através da transcrição de unidades de texto. A análise de cada subcategoria termina com uma pequena síntese, onde são expostas as interpretações predominantes e são assinaladas as divergências que emergiram da análise dos textos, recorrendo a uma tabela com a distribuição dos tipos de documento que foram analisados e de onde se retiraram as unidades de texto, por data e por ator. A síntese final do capítulo apresenta as convergências e as divergências identificadas no conjunto dos textos e propõe uma “chave de leitura” para a

edição do referencial do PB e das propostas de reforma do ensino superior português dele

decorrentes.

O capítulo torna claro dois aspetos que emergiram como salientes: a complementaridade dos textos, que não se contradizem nem se interpelam uns aos outros, e a convergência em torno da interpretação do significado do PB e da perceção de oportunidade fornecida por este para a introdução de mudanças significativas no sistema de ensino superior português. As mudanças propostas são enquadradas por um referencial que resulta da edição no contexto português da perspetiva de Aprendizagem ao Longo da Vida. Os atores associam-na a um novo “paradigma” que incorpora um novo conceito de conhecimento que transforma em valor o conhecimento prático, adquirido ao longo da experiência pessoal e profissional. Este “paradigma” é percecionado como capaz de conseguir a qualificação da população

80

Criaram-se tabelas para cada ator contendo estes elementos, a partir dos quais foi feita a análise dos textos. Da análise emergiram unidades temáticas que foram alinhadas nas categorias juntamente com as unidades de texto correspondentes. As unidades temáticas foram posteriormente agregadas em temas mais abrangentes, que foram considerados as subcategorias semânticas.

164 portuguesa, mesmo aquela parte que já está fora do sistema da educação, desde que as IES passem a reconhecer e a validar as competências adquiridas, o currículo seja reorganizado por forma a incluir a necessária flexibilidade para se adequar a públicos diversos e as metodologias de ensino-aprendizagem sejam centradas no aprendente. O “paradigma” ou a mudança de “paradigma” proposta é, assim, considerada a questão central do PB em Portugal.

1. Referencial