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Habitação de locação social na França: o modelo francês inspira o modelo de arrendamento brasileiro

Adota-se a definição de “modelo francês” como sendo um conjunto de práticas e atitudes pelo qual o Estado se imagina capaz de garantir paz social e progresso econômico, atribuindo para si o papel de regulador da economia e dos benefícios sociais.

Neste modelo a liberdade econômica e a iniciativa individual devem ser reguladas, cabendo a este mesmo Estado garantir a proteção do emprego.

Embora eficaz para diminuir desigualdades, o “modelo francês” têm conhecido problemas de várias ordens, como fruto da crise do Estado de Bem Estar Social, cuja análise escapa desta pesquisa, mas que fica evidente nos conflitos das últimas semanas de novembro de 2005, com a explosão da violência que atingiu os bairros mais modestos de 275 cidades, e tendo como epicentro os conjuntos habitacionais da periferia de Paris.

A crise do “modelo francês” extrapola a questão habitacional, ainda que em crise o Estado de Bem Estar Social francês mantém um histórico de sucessos, considerando que poucos países demonstraram competência na montagem e na operação de sistemas públicos de saúde, esporte, educação e também de habitação, sendo que no mesmo ano de 2005, o governo francês promovia a demolição de 250.000 apartamentos em conjuntos habitacionais, para substituí-los por novas unidades dotadas de maior conforto, ao mesmo tempo em que construía 400.000 moradias adicionais e renovava as áreas comuns de projetos de habitação popular.37

Em específico, na promoção da política habitacional, a França desenvolveu um forte e eficaz aparato de locação social, sendo que a história da habitação social na França se confunde com o processo de industrialização, imprimindo a necessidade de enfrentar o grave problema de fornecimento de moradia às imensas massas chegadas do campo, atraídas pela oferta de emprego nas nascentes indústrias localizadas nas zonas urbanas.

O início do século XIX marca o nascedouro das primeiras moradias de locação na tentativa de suprir a demanda dos operários e daqueles que necessitavam de certa mobilidade habitacional, espelhando o mecanismo conhecido e evidenciado de um lado pelos proprietários ricos e de outro pelos inquilinos pobres, caracterizando a composição do mercado imobiliário da época, em que “não havia a

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perspectiva para que um operário chegasse a proprietário de sua habitação”. (MAIO, SANT’ANA, 2006, p.11).

A industrialização interfere profundamente na cidade e nas relações entre os elementos de sua estrutura social e física e suas conseqüências foram percebidas na segunda metade do século XIX, quando os planos de reurbanização de Paris idealizados por Hausmann continham a intenção de atender aos anseios da população burguesa ascendente, eliminando da cidade os aspectos de miséria advindos da população operária pobre.

Incentivado pelos ideais mais progressistas da Revolução Industrial, ainda que de forma modesta, o Estado induz a família operária a poupar para adquirir sua moradia e a partir de 1850, algumas habitações de baixo custo têm sua construção incentivada.

Neste mesmo período, Jules Siegfried e Jean-Baptiste Godin, iniciam debate explicitando a preocupação com a questão da moradia, sendo que o primeiro na definição de Alex Kenia Abiko (et al) “foi criador das ‘sociedades de habitações baratas’, uma espécie de organização que cuidava da poupança popular para a construção de habitações de baixo custo para um determinado número de pessoas que a integravam”. (ABIKO et al, 1994, p. 3).

Por sua vez, “Godin pode ser considerado o idealizador da habitação locativa social, uma vez que entendia não ser de obrigação do operário a preocupação com a obtenção de sua moradia, mas sim dos empregadores e do Estado”. (ABIKO et al, 1994, p. 3).

Do debate travado entre o defensor do acesso à propriedade, Siegfrield, e o defensor da locação social, Godin, constituiu-se a base para o desenvolvimento das políticas públicas habitacionais implantadas no século XX.

Abiko (1994, p.4-6) pontua em seu estudo os importantes marcos e eventos históricos que influenciaram o desenvolvimento da política habitacional de locação social francesa, entre eles:

• Pelo esforço da “Sociedade das Cidades Operárias de Paris”, de 1857 e 1867, a edificação da

Cite Napoléon, moradia de aluguel para 600 pessoas, sob a forma de conjunto habitacional considerado modelo, com um banheiro por andar, água fornecida através de torneira, zelador para as áreas comuns e ambulatório. Tal estrutura diferenciada no tocante às condições de habitabilidade incentivou o pontual pagamento dos aluguéis.

Surge a lei que cria a Habitation à Bom Marche (HBM), em 1894, oficializando a participação do estado na produção habitacional através da isenção de impostos e ainda tímidos mecanismos de

financiamento, caracterizando habitações inicialmente e em sua maioria, vendidas e não alugadas, não oferecendo qualidade nos materiais, nem na dimensão das moradias.

• Lei Bonnevay, de 1912, que cria organismos descentralizados junto às comunas (representando a menor unidade político-administrativa correspondendo ao município brasileiro) e aos departamentos (instância intermediária entre a comuna e o estado central francês), para cuidar da habitação popular.

• O período entre guerras, que abarca também as sérias dificuldades atravessadas pela França e

toda a Europa, tanto pelos prejuízos da Guerra, quanto pela depressão econômica de 1929, incide na baixa qualidade das habitações HBM construídas com parcos recursos e suprimindo instalações sanitárias, consideradas um luxo para os operários.

• A estagnação da economia européia estabelecida pela II Guerra Mundial tem como conseqüência a paralisa da produção habitacional pelo período de 1930 até 1948, três anos após o fim da Guerra.

• A reconstrução das habitações destruídas pela guerra e a recuperação do número de unidades habitacionais anterior à guerra, tarefas incorporadas pelo ideal da reconstrução da Europa, possíveis devido ao capital de auxílio vindo dos estados.

Em 1948, nova lei de inquilinato cria as Habitation à Loyer Moyen (HLM), habitações destinadas ao aluguel, inaugurando um forte processo de financiamento estatal para habitação de locação social. A lei também estabelece que no mínimo 1% do valor da folha de pagamento deve destinar-se à HLM, aplicados diretamente pela empresa na construção de moradias para seus empregados, ou indiretamente através de organismos autorizados pelo Estado que o administra em prol da locação social.

• A maior participação da sociedade que pouco era consultada para as decisões de questões referentes à habitação passa a ser exigida após 1968, resultado da revisão das posturas sociais adotadas até então, frente aos novos movimentos culturais nascidos principalmente na França.

• As questões econômicas de ordem mundial, acrescidas da crise energética do petróleo introduzem, em 1973, a necessidade da revisão das posturas governamentais de incentivo à produção de habitação. Incentivos à produção individual, menos onerosa e menos complexa comparada à produção de conjuntos habitacionais, são implementados, propiciando melhor acomodação da reduzida verba.

• A década de 1980 marca a retomada dos investimentos para a construção de HLM, com algumas adaptações de concepção, entre elas: a ampliação das dimensões internas da unidade habitacional e os materiais e técnicas construtivas visam reduzir o desperdício de energia e os custos de manutenção.

Aide Personnalisee au Logement e Aide a la Pierre são duas das principais formas de auxílio às habitações destinadas à locação social identificadas por Abiko et al (1994), sendo que a primeira trata de um auxílio personalizado, destinado a uma determinada família, por um determinado tempo e local. O auxílio tem o objetivo de cobrir o pagamento parcial das despesas com habitação, incluídas também as despesas para o pagamento de contas referentes aos serviços públicos, tais como água, gás, energia elétrica, entre outros. O montante disponibilizado pelo governo tem características de “fundo perdido”, ou seja, não é retornável para o governo, varia em função da composição de renda familiar e sofre revisões anuais.

A segunda forma, Aide a la Pierre, consiste em um auxílio financeiro destinado para a construção de moradias para a locação social, a juros subsidiados, prazo médio de amortização de 35 anos e é um programa estabelecido sempre sob a coordenação do governo departamental ou mesmo do governo comunal, quando este apresenta demandas significativas e estrutura compatível para o gerenciamento.

Os financiamentos são destinados a construtores ou à associação de construtores com proprietários de terrenos, intencionados na edificação de unidades habitacionais para a locação social. Admite-se também a construção de unidades habitacionais pelo próprio poder executivo, que passa então a ser o proprietário dos imóveis.

O beneficiário final, denominado por Abiko et al (1994) de “clientela básica”, a quem os programas governamentais buscam atender, tem perfil que o enquadra nas categorias de pessoas jovens e sozinhas com idade entre 20 a 30 anos, estudantes ou iniciando a vida profissional; casais jovens no começo de vida; pessoas que precisam de mobilidade residencial por questões relacionadas ao mercado de trabalho, pessoas que precisam de mobilidade residencial temporária por questões familiares (separações e divórcios); pessoas que por questões profissionais necessitam de dupla residência; e pessoas que precisam residir próximas aos serviços urbanos e não possuem condições de comprar uma propriedade.

Os bancos comerciais raramente operam os financiamentos de construção destinada à locação social, na maioria das vezes devido à longa duração do engajamento financeiro, nunca inferior a 25 anos, com maior freqüência de 30 a 40 anos, outras vezes devido ao número restrito de clientes para a locação social, tornando o banco vulnerável a pressões que podem interferir nas expectativas de lucro, e baixa ou nenhuma liquidez do bem sujeito a ser tomado como pagamento.

O engajamento direto do Poder Público é a alternativa que viabiliza o financiamento do programa de locação social tanto no auxílio personalizado no pagamento do aluguel (Aide Personnalisee au

usados os mecanismos da subvenção direta, reduzindo o montante a ser emprestado; e da bonificação nos juros, reduzindo o custo do empréstimo.

Além dos recursos orçamentários destinados exclusivamente para a alocação social, o Governo Francês se utiliza daqueles provenientes dos recursos a vista das cadernetas de poupança da Caixa de Depósitos e Consignações da França. Abiko et al (1994, p. 11) contabiliza o montante que este organismo dispunha em 1990, totalizando US$ 120 bilhões em caixa, sendo que US$ 64 bilhões estavam disponíveis para a utilização em empréstimos de locação social, US$ 36 bilhões para empréstimos a taxas de mercado para coletividades locais e outras instituições e US$ 20 bilhões para aplicações no mercado privado de alta liquidez. A Caixa de Depósitos aporta anualmente cerca de US$ 6 bilhões para a moradia social.

Não tão somente o longo período da prática da locação social na França contribui para uma avaliação positiva do sistema, mas também pelo fato de significar uma real possibilidade de enfrentamento da questão habitacional para além dos recursos financeiros aportados na construção maciça de unidades habitacionais, com um aparato institucional contínuo e voltado para o interesse do programa.

No tocante às recomendações que o estudo de Abiko et al (1994) faz com o objetivo de antecipar algumas ações diante da iminência da implantação no Brasil de um sistema semelhante ao de locação social francês, em especial nos interessa o que destaca a substituição de alguns dogmas como a desmistificação do sonho da casa própria, já que a população brasileira não conhecia outra forma de acesso à moradia senão pela aquisição da casa própria, seja ela através de recursos próprios aplicados na autoconstrução ou através de financiamento.

Pelo depoimento da Entrevistada 638, moradora e arrendatária do Residencial Cavalari em Marília,

apreende-se que o sonho da casa própria não é de todo afastado quando se opta pelo arrendamento residencial da forma que foi implantado no Brasil, pois ao remeter a possibilidade da aquisição para o final do prazo contratual de arrendamento (originalmente acordado contratualmente para 15 anos), remete-se também para o futuro a obtenção do imóvel, guardando semelhança com o modelo tradicional de aquisição baseado no financiamento, explicada muito apropriadamente pela arrendatária:

É que um financiamento, quando você faz, fica bem mais alto do que R$ 185,00 que a gente paga. E fala arrendamento, mas é nosso! Um dia vai ser nosso. E um

38 Entrevistada 6, esposa do Entrevistado 5, uma mulher ponderada, de fala firme que juntamente com seu esposo viveram

situações de perda de emprego e viram a capacidade de pagamento do aluguel de “uma boa casa” ser diminuída, até que ingressaram no PAR, que consideram igual ao financiamento.

financiamento também: mesmo que a gente financie, a gente vai ficar devendo pra CAIXA e se não pagar um financiamento, também vai perder. Eu acho que no fundo é a mesma coisa. Porque eu acho que não estou pagando aluguel. O pessoal fala [que] arrendado é aluguel, não, é meu! Porque um dia vai ser meu. (ENTREVISTADA 6, 2007)

A projeção da aquisição da unidade habitacional remetida para o final do contrato de arrendamento parece ter eliminado a necessidade de disseminar novos conceitos ou, no mínimo, de se preocupar com demais medidas que confrontassem com o paradigma da casa própria.

Há outra importante questão para a qual se deva refletir: se por um lado o conceito da casa própria foi insistentemente imbuído na população brasileira, por outro lado a política habitacional se mostrou sistematicamente incapaz de fornecer moradias em número suficiente para o atingimento do déficit, significando para a população brasileira a impossibilidade da obtenção da casa própria. Ao longo das décadas, a população à margem do sonho da casa própria, acostumou-se ao penoso sistema de locação imposto pelo mercado imobiliário e às demais formas de moradia barata. A necessidade de habitar em condições dignas e de modo condizente aos seus rendimentos parece ter caminhado em paralelo ao desejo de obtenção da casa própria.

Por outro lado, o incentivo ao avanço tecnológico adequado à realidade brasileira, visando a utilização de materiais e sistemas construtivos mais baratos e com bom desempenho ainda é preeminente na questão habitacional brasileira, assim como são preeminentes os aparatos legislativos que introduzissem mecanismos de isenção fiscal e de incentivo à produção de habitação voltada para o atendimento das famílias de baixa renda.

Embora não tenha sido encontrada referência específica sobre quais termos o sistema de locação social europeu influenciou o arrendamento residencial brasileiro, pode-se deduzir que o sistema de locação social praticado pela França, em especial o Aide a la Pierre, guarda semelhanças conceituais e operacionais que se relacionam com o Programa de Arrendamento Residencial. Algumas vitais diferenças residem no prazo de locação, bem mais longo no modelo francês; na solidez do fundo financeiro que alimenta a locação social, face à característica descontínua do subsídio no âmbito do PAR que anualmente o ameaça de extinção; e no enorme aparato institucional francês voltado exclusivamente para a locação social.

CAPÍTULO 2