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1. Investimento e regulação das ferrovias em perspectiva histórica

1.2. Implantação de ferrovias no Brasil e sua regulação

As ferrovias no Brasil têm no seu início, em meados do século XIX, contando com um forte aporte de capitais privados em sua construção, principalmente de fazendeiros de café na região sudeste e financiamentos de bancos ingleses na construção de ramais ferroviários para escoar a produção de açúcar e algodão no nordeste brasileiro. O Decreto nº. 101, de 1835, foi a primeira tentativa de se implantar o modal ferroviário no Brasil. O processo falhou, pois o país não oferecia grandes atrativos para os capitais externos. A Rússia

14 Dobbin (1994) e Skowronek (1982) partem de análises institucionais distintas. A explicação de Dobbin se apóia na cultura política e na persistência de estilos de políticas, ao passo que Skowronek baseia sua explicação na criação institucional e nos conflitos decorrentes de tal processo, abrindo maior espaço para as contingências históricas em sua explicação do processo de State building estadunidense.

foi o primeiro país a adotar o sistema de garantia de juros, tal mecanismo foi logo mimetizado por outros países, tal como a Inglaterra para a construção das ferrovias na Índia. Ao Brasil não restava outra alternativa a não ser se juntar-se aos países que subsidiavam a construção de ferrovias assegurando juros aos capitais estrangeiros (MATOS, 1974).

A partir de 1850 o meio brasileiro tornou-se bem mais favorável a empreendimentos de natureza tão arrojada. De um lado, porque a situação política do país tornou-se mais estável com o fortalecimento da ordem pública interna, e de outro, porque a extinção do tráfico de escravos pela lei Eusébio de Queirós, daquele ano, deixou livres muitos capitais até então empregados no comércio negreiro, a verdade é que uma nova era de prosperidade abre-se para o país na segunda metade do século, refletindo-se nos mais variados setores da vida nacional, principalmente no desenvolvimento da civilização material (MATOS, 1974, p. 51).

A segunda tentativa de implantar ferrovias no Brasil foi relativamente bem- sucedida. O Decreto nº. 641/1852 trouxe as garantias de juros para o centro do debate acerca da construção de ferrovias. Foi assegurado, ainda, o privilégio de zona, em que uma ampla faixa de domínio de 66 km era de exclusiva propriedade das companhias ferroviárias, não podendo haver competição com a linha ferroviária instalada naquela região. Com esses subsídios não tardou ser concluído o primeiro trecho ferroviário no país.

A primeira ferrovia brasileira, com cerca de 14 km de extensão, entrou em operação em 1854, na cidade do Rio de Janeiro. Foi obra do Barão de Mauá, que no ato de sua inauguração,rogou proteção do Imperador para que a ferrovia avançasse15. Tal ferrovia

teve apenas valor histórico, pouco contribuindo para o transporte de cargas e passageiros. Em 1858 foram inauguradas duas ferrovias importantes: a The Recife and São Francisco Railway Company e a Estrada de Ferro Dom Pedro II. A partir desse ponto se instalava definitivamente o modal ferroviário no Brasil.

A capacidade da malha ferroviária brasileira esteve associada ao transporte de produtos agrícolas para o mercado externo. O corte de nossas ferrovias em sentido perpendicular ao litoral e interligando o interior aos portos mais próximos, aponta a prevalência de sua função exportadora, mais do que integradora de um mercado nacional, que ligue diversas regiões do país16. Aliás, a não integração do nordeste brasileiro à região centro

sul tem nítidos contornos de uma decisão política de isolamento geográfico da região, no

15 Essa primeira ferrovia não contou com a política de garantias de juros do Governo Imperial (MATOS, 1974, p. 52).

16 Em que pese a função das ferrovias no interior do Nordeste brasileiro, como um meio de ligação entre comunidades isoladas, a troca de mercadorias proporcionou a criação de uma economia mais dinâmica naquela região já no final do século XIX. Steven Topik (1987) afirma que as ferrovias ajudaram a criar um mercado interno no país, porém, tal função não foi a que prevaleceu ao longo do tempo, vide o sentido da colonização na orientação dos investimentos nas ferrovias brasileiras,objetivando a integração da economia brasileira ao comércio internacional de commodities.

intuito de manter a força de trabalho disponível isolada do resto do país, deprimindo o salário das regiões em processo de industrialização entre o final do século XIX e início do XX (TOPIK, 1987, p. 144). A entrada do Brasil na era das ferrovias contou com forte participação do Estado, em que pesem as ações dos políticos imperiais em mobilizarem capitais privados por meio de garantias de retornos, variando entre 5% e 7% ao ano, sobre o capital investido. Em vista disso, o Estado deixou a cargo das companhias privadas a responsabilidade de ampliação das linhas. De acordo com João Manuel Cardoso de Mello (1987, p. 80-81):

É indiscutível, também, que o estado brasileiro, ao conceder garantia de juros aos investimentos externos em ferrovias, assegurando ao capital estrangeiro rentabilidade certa a longo prazo, desempenhou um papel essencial. Em suma, o entrelaçamento do capital mercantil nacional com o capital financeiro inglês, tornado possível e estimulado pelo Estado, começa por explicar o extraordinário surto ferroviário da segunda metade dos [18]60.

A implantação das ferrovias no país também representava mudanças nas relações econômicas e sociais. Estava embutida na Lei nº. 641/1852 o impedimento de utilização de força de trabalho escrava nos trabalhos da ferrovia17. O sugestivo título do livro de El-Kareh

(1982): Filha branca de mãe preta; analisa os contrastes de uma empresa capitalista no seio de um estado escravocrata. Até certo ponto funcional ao escravismo, “a revolução ferroviária significava muito mais do que o aumento da capacidade de transporte e velocidade”, a ferrovia permitia ao senhor de escravos concentrar toda sua “energia negra” na plantação, representando uma espécie de salvação de seus rendimentos (EL-KAREH, 1982, p. 56). Ao passo que as relações capitalistas iam amadurecendo em torno das empresas ferroviárias, por meio do surgimento das sociedades anônimas, do capital financeiro e do trabalho assalariado, “ali no perímetro mesmo da estrada, e como que justificando a exploração do assalariado, estava o escravo, abrindo caminho para o trem passar” (EL-KAREH, 1982, p. 83). As ferrovias auxiliaram a economia mercantil-escravista cafeeira nacional, assim como se opuseram a ela, “criando condições para a emergência do trabalho assalariado” (MELLO, 1987, p. 82)18.

17 Em tal lei podemos ler: § 9º A Companhia se obrigará a não possuir escravos, a não empregar no serviço da construcção e costeio do caminho de ferro se não pessoas livres que, sendo nacionaes, poderão gozar da isenção do recrutamento, bem como da dispensa do serviço activo da Guarda Nacional, e sendo estrangeiras participarão de todas as vantagens que por Lei forem concedidas aos colonos uteis e industriosos.

18Karl Marx (1961, p. 295), num texto de 1853, alertava para o caráter modernizador das ferrovias na Índia sob a batuta do império britânico: “Já sei que a burguesia industrial inglesa procura cobrir a Índia de vias férreas com o exclusivo objetivo de baratear o transporte do algodão e de outras matérias primas necessárias para as suas fábricas. Mas se introduzem as máquinas no sistema de locomoção de um país que possui ferro e carvão, já não poderei impedir que esse país fabrique essas máquinas. Não podereis manter uma rede de vias férreas em um país enorme, sem organizar nele todos os processos industriais necessários para satisfazer as exigências imediatas e correntes da estrada de ferro, o que implicará a introdução da maquinaria em outros ramos da

Ainda durante o império, as faixas de domínio foram reduzidas de 66 Km em cada lado da ferrovia para 20 Km e as concessões reduzidas de 90 para 30 anos, assim como a redução da garantia de juros de 9% para 6%. O governo, contudo, não deixou de investir recursos próprios nas ferrovias, aplicando fundos públicos na construção de ramais e na compra de ações e debêntures de empresas privadas. O governo, ao final do império, em 1889, era proprietário de 34% das linhas do país, além de deter ações em grandes empresas ferroviárias privadas (TOPIK, 1987, p. 112). Embora o Estado tivesse participação ativa nas empresas ferroviárias não existia nenhum plano de viação a fim de proporcionar critérios de alcance macroeconômico na construção dos ramais ferroviários. Devido a essa falta de planejamento, a expansão da malha ocorreu sem definições de critérios técnicos, constituindo assim uma rede heterogênea, com bitolas despadronizadas e padrões de eficiência muito diferentes (CASTRO; LAMY, 1994).

A passagem para o Governo Republicano em 1889 não alterou significativamente o quadro de regulação das ferrovias no país. Embora com uma ideologia abertamente liberal, os políticos do Governo Republicano detiveram grandes contradições entre seu discurso e suas práticas. As concessões sempre foram bastante restritas, sendo que o governo tentava obter o controle sobre as operações, de modo a poder garantir a lucratividade das exportações, atuando decisivamente na política tarifária e na orientação da expansão das malhas das companhias ferroviárias estrangeiras (CAMELO FILHO, 2000, p. 120).

Com a baixa do preço do café no início dos anos 1900, diversas ferrovias começaram a encontrar dificuldades financeiras, pois a rentabilidade do transporte de café estava diminuindo e a taxa cambial se mostrava bastante desfavorável a quem tinha de importar grande parte do material usado nas ferrovias (SAES, 1981). É nesse cenário que a atuação estatal ocorre de maneira mais incisiva, encampando diversas empresas ferroviárias. Entre 1900-1905, as operações ferroviárias foram capturadas pelo estado, resultado da crise financeira pela qual passou o país em 189819. A carga de juros pagos às ferrovias requeria

indústria que não estejam diretamente relacionados com o transporte ferroviário. O sistema ferroviário se

converterá, portanto, na Índia, num verdadeiro precursor da indústria moderna”.

19 A encampação das ferrovias pelo governo foi geral, atingindo todas as malhas do país. No caso do estado de São Paulo, o próprio governo estadual, pela sua proeminência política e econômica, se encarregou da tarefa, sendo relutante em encampar aquelas ferrovias mais lucrativas, tal como o caso da Companhia Paulista, a qual foi estatizada pela administração estadual apenas em 1961 (GRANDI, 2013). Já o caso do Nordeste foi bastante diferente, até mesmo pela formação histórica das ferrovias naquela região. O Governo Republicano encampou todas as ferrovias sob a figura jurídica de três grandes operadoras, a The Great Western of Brazil Company Limited, Rede de Viação Cearense e Viação Férrea Federal Leste Brasileiro. Esta situação permaneceu estável até 1957, quando foi criada a RFFSA (CAMELO FILHO, 2000, p. 122). O processo de encampação das ferrovias já estava previsto nos contratos das concessões ferroviárias do século XIX, sendo que o Estado

uma grande quantidade de recursos estatais, de modo que o governo Campos Sales (1898- 1902) fosse levado a expropriar doze companhias estrangeiras em 1901, para logo em seguida arrendar as linhas, no geral, para empresas brasileiras. Segundo Topik (1987, p. 113), no ano de 1898, a União reservou um terço de seu orçamento para pagamento de garantias às ferrovias. Sob condições econômicas degradadas o governo é pressionado a atuar, colocando o capital estrangeiro em situação de alerta sobre investimentos no país. Para Duncan (1968, p. 180), a depreciação da moeda brasileira restringiu o avanço das ferrovias, principalmente com a participação do capital privado, aumentando os custos de manutenção e expansão, assim como sua eficiência20.

O governo brasileiro começou com o esforço político de subsidiar o capital privado para a construção e operação das ferrovias. A força das circunstâncias trouxe o governo para o quadro de proprietário e operador das linhas ferroviárias. O capital privado permaneceu proprietário e operador das linhas lucrativas. O governo tomou para si as linhas não lucrativas (DUNCAN, 1968, p. 173).

As linhas férreas não eram lucrativas para a integração de um mercado nacional, pois a baixa densidade de tráfego, associada às longas distâncias, tornavam sua construção anti-econômica. Desse modo, os capitais privados, impossibilitados de fazer frente às necessidades de integração do mercado brasileiro, e frente a prejuízos cada vez maiores na operação ferroviária, deixaram “ao estado brasileiro o ônus de assumir uma atividade que se define como ‘pública’ quando se torna deficitária” (DAIN, 1986, p. 83).

A atuação do Estado enquanto poder concedente da infraestrutura ferroviária atuou no sentido de regular os fretes ferroviários, sendo que em 1923 a imprensa denunciava a imposição, por parte do governo, de taxas mínimas de frete para ajudar, segundo o discurso de governo, o avanço da agricultura (TOPIK, 1987, p. 133). Em 1929, o Estado era proprietário de 67% das ferrovias e responsável pela administração de 41% da rede (DAIN, 1986, p. 82). Segundo William Summerhill (2003, p. 188), a experiência brasileira com ferrovias envolveu mais do que meramente implantar uma nova tecnologia de transporte. As ferrovias foram uma intersecção direta do papel do Estado na economia. Durante o século XIX, enquanto o Estado tinha de lidar com o financiamento nacional e internacional para a construção das ferrovias, estava criando, de maneira simultânea ao processo de implantação da malha ferroviária, capacidade regulatória sobre os investimentos em ferrovias. Ainda que incipiente, tratou-se de

remunerou todos os capitais investidos, tendo de dialogar de maneira intensa com os financiadores ingleses para

que fossem acertados os termos de resgate e encampação das ferrovias.

20A questão da eficiência pública versus privada no modal ferroviário, entre 1888 e 1914, foi bastante discutida por Saes (1981), o qual apontou não haver indícios de maior eficiência de empresas privadas em comparação com as públicas.

um processo de construção de uma institucionalidade no trato com o setor privado para o fornecimento de um serviço de infraestrutura.

Sérgio Abranches (1977, p. 10) afirma que “seria enganoso admitir que a incorporação das ferrovias seja o marco inicial do processo de formação do setor produtivo estatal”. Ao concordarmos com Abranches temos em vista que a institucionalidade criada no trato do Estado com as empresas ferroviárias foi sem precedente na economia brasileira durante o século XIX e início do século XX. A incorporação das ferrovias levou o Estado a elaborar planos e instituições para gerenciá-las, num claro esforço de planejamento estatal21.