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Reformas regulatórias do modal ferroviário na América Latina na década de 1990

2. Desestatização e regulação das ferrovias brasileiras na década de 1990

2.4. Reformas regulatórias do modal ferroviário na América Latina na década de 1990

seja, dentro do modelo vertical. Tanto a infraestrutura ferroviária, composta pelas vias férreas, sinalização e galpões de armazenagem, quanto o material rodante, tal como locomotivas e vagões, foram transferidos em conjunto para a iniciativa privada. A região passou por diversas crises econômicas, durante as décadas de 1980 e 1990, o que reduziu a capacidade estatal no provimento dos serviços ferroviários. O objetivo com as concessões ferroviárias foi minimizar ou eliminar o déficit fiscal causado por elas nas contas públicas, reduzindo os subsídios públicos ao mínimo possível. Isso abriu espaço para o setor privado a investir no modal (CARBAJO; ESTACHE, 1996; ESTACHE et al, 2001; ESTACHE; GONZÁLEZ, 2002). Esse pano de fundo esteve presente nas concessões ferroviárias dos principais sistemas ferroviários latino-americanos, tais como: México, Argentina e Brasil. Esses três países possuem muitas características em comum quanto à concessão de suas respectivas malhas ferroviárias. A infraestrutura ferroviária, a via permanente, assim como instalações e equipamentos, permaneceram como propriedade do Estado, sendo concedido o uso para a iniciativa privada. Trata-se de uma concessão de um serviço público.

A semelhança do modelo de desestatização e regulação do modal ferroviário é devido à crise enfrentada pelos paises da região na década de 1990 e ao receituário neoliberal imposto pelos países desenvolvidos às respectivas economias nacionais latino-americanas. Tais medidas econômicas trouxeram em seu bojo políticas de concessão de ativos públicos, de modo a contribuir com o ajuste fiscal e sanar os déficits estatais dos Estados da região51.

A estrutura regulatória dos países da América Latina era pouco preparada para monitorar as concessões, assim como a formulação dos contratos não forneceu mecanismos dos Estados avaliarem a qualidade do serviço ferroviário prestado, tampouco um forte controle sobre tarifas. Existe ainda uma diversidade de princípios nos quais as agências se baseiam para a fiscalização das concessões, gerando confusão e desacordos nas relações público-privadas (KOGAN, 2006, p. 156).

51 O estudo clássico sobre a regulação do mercado de telecomunicações da década de 1990 é o de Levy e Spiller (1996). Nesse estudo, financiado pelo Banco Mundial, os autores afirmam que a capacidade regulatória varia de acordo com as instituições políticas e sociais de cada país, desse modo, o contexto é importante. O compromisso com o sistema regulatório deve ser mantido, mesmo quando o ambiente regulatório se apresentar problemático, pois sem comprometimentos de longo prazo não há como a iniciativa privada manter os investimentos. Chang (2004, p. 125) avalia dificuldades em se contextualizar instituições formuladas em conjunturas nacionais tão díspares, tal como o caso das instituições provenientes das políticas neoliberais, ao passo que, sem saber quais instituições são necessárias e/ou viáveis em determinadas condições, corre-se o risco de justificar o status quo dos países em desenvolvimento, seja ele qual for. O trabalho de Cruz (2007, p. 55) faz uma importante crítica ao trabalho de Levy e Spiller, pois afirma que, em busca de credibilidade para atrair investimentos privados, muitas escolhas e decisões de elevado custo social foram assumidas pelos Estados. A necessidade de oferecer garantias ao mercado reduziu o papel das instituições políticas a meras ratificadoras de acordos comerciais, enquanto a rentabilidade econômica das concessões superou sua utilidade pública, de modo a afetar direitos básicos de cidadania.

Em conjunção a esse quadro macroeconômico, a infraestrutura ferroviária latino- americana foi relegada ao ostracismo frente ao modal rodoviário. O aumento da concorrência com esse modal não veio acompanhado de investimentos e melhorias nas ferrovias, forçando sua derrocada enquanto um meio de transporte economicamente viável. A situação de dificuldades econômicas das empresas ferroviárias estatais desses países era muito semelhante no início da década de 1990. A observação das malhas mexicana e argentina nos fornece meios para averiguar os impactos da desestatização em perspectiva comparada com o Brasil.

A empresa estatal Ferrocarriles Nacionales de México S.A (FNM) enfrentava déficits operacionais e financeiros, tendo dificuldades em manter as linhas ferroviárias em condição de uso. Apenas 40% dos 26 mil quilômetros foram considerados em boas condições de tráfego em 1995. Entre os anos de 1990 e 1996, o governo mexicano subsidiou a FNM numa média de US$400 milhões por ano. Em vista desse quadro, foi iniciado, no ano de 1995, o programa de concessão da malha ferroviária mexicana. A malha da FNM foi dividida em 12 diferentes trechos e as concessões foram dimensionadas em 50 anos, podendo ser prorrogadas pelo mesmo período da concessão inicial (KOGAN, 2006). A autoridade regulatória instituída no México por meio da Dirección General de Tarifas, Transporte Ferroviario y Multimodal (DGTTFM), a qual foi criada no interior da Secretaria de Comunicações e Transporte do Governo Federal Mexicano. Sua principal responsabilidade é supervisionar as concessões ferroviárias em acordo com os contratos estabelecidos, atentando para conformidades técnicas e de qualidade. As concessionárias ferroviárias mexicanas são obrigadas a divulgar informações sobre segurança e produtividade.

A autoridade da DGTTFM para a regulação das tarifas ferroviárias é muito limitada. As concessionárias mexicanas têm grande autonomia na fixação de suas tarifas, assim como há um conflito entre instituições na burocracia mexicana, o que transforma a agência reguladora numa espécie de primeira instância de negociação. Tais dificuldades são inerentes ao modelo vertical. Embora os arquitetos da reforma regulatória mexicana esperassem que a competição entre ferrovias e outros meios de transporte fosse suficiente para prevenir o uso abusivo do monopólio, tendo o Estado pouco a interferir nessas relações comerciais. As concessionárias mexicanas são autorizadas a negociarem entre si a questão de acesso às respectivas malhas, sendo a agência reguladora chamada a atuar quando não há consenso entre as partes. Após as concessões, os subsídios governamentais para o modal ferroviário declinaram em 20%, tendo o tráfego de cargas aumentado 48%, entre 1994 e 2000. Tal como no Brasil, o transporte ferroviário de passageiros ficou restrito a apenas algumas linhas turísticas (KOGAN, 2006, p. 168-169).

As concessões ferroviárias na Argentina foram iniciadas em 1996, durante a administração de Carlos Menem. A rede ferroviária de carga, de aproximadamente 27.781 Km, empregando 92 mil trabalhadores era de responsabilidade da empresa estatal Ferrocarriles Argentinos. A situação dos ativos da empresa na década de 1990 era ruim. Apenas metade da rede ferroviária se encontrava em qualidade regular ou boa para o tráfego de trens, o material de tração se encontrava em situação semelhante, levando a empresa a perder importantes parcelas de mercado (KOGAN, 2006, p. 158). A estratégia de reforma adotada pelo governo foi fracionar a rede em franquias de monopólio, em que se combina a concessão da via permanente e a operação dos serviços ferroviários, modelo vertical. Essa estratégia de um único operador aponta que a competição não surgirá do fato de diversos operadores utilizarem a mesma via permanente para trafegarem, mas de diversos potenciais operadores realizando lances para obterem o direito exclusivo de fornecer o serviço ferroviário (linha e operação) durante o tempo da concessão. Houve também a transferência de malha ferroviária para entes subnacionais, as províncias (CARBAJO; ESTACHE, 1996). A situação econômica argentina, na década de 1990, não era favorável, enfrentando duros ajustes econômicos, levados a cabo por um governo de cariz neoliberal. As ferrovias, nesse arranjo de governo, eram vistas como um peso para a administração pública, levando a sua concessão para a iniciativa privada. A capacidade regulatória do Estado argentino era bastante limitada. Em decorrência disso houve bastante indefinição quanto ao modelo regulatório a ser adotado. A configuração assumida foi baseada na separação entre as concessionárias de passageiros e cargas. Para as primeiras, a regulação da atividade deveria ficar a cargo das províncias enquanto que, para as últimas, o Estado criou uma agência reguladora nacional, a Comisión Nacional de Regulacion del Transporte (CNRT). Tal agência foi criada em 1996 e teve como principal função avaliar as conformidades entre a prestação dos serviços ferroviários e os contratos assinados. Pouco poder foi delegado a agência fora desse âmbito, ao passo que assuntos políticos mais amplos ou renegociações contratuais ocorrem via Ministério dos Transportes ou da Economia (KOGAN, 2006, p. 160). O modelo vertical foi base para as experiências regulatórias em ferrovias no Brasil, México e Argentina.

Esses países tiveram dificuldades com suas respectivas estruturas regulatórias, carecendo de mecanismos para fiscalizar e exigir obrigações contratuais de suas respectivas concessionárias ferroviárias. Para Kogan (2006, p. 176) esse é um traço das concessões ferroviárias na América Latina. A estrutura regulatória foi precariamente estabelecida nesses países, de modo que as:

Agências reguladoras, em sua grande maioria, têm sido relativamente mal equipadas para tratar as controvérsias que surgem. Muitas agências latino-americanas foram criadas no final do processo de privatização (em alguns casos, após as concessões terem sido estabelecidas) contando com poucos recursos à sua disposição.

A fragilidade institucional na regulação do modal ferroviário não é exclusividade do Brasil. Comparando o Brasil frente ao caso mexicano e argentino notamos diversas semelhanças entre as estruturas regulatórias desses países. O precário quadro da infraestrutura ferroviária desses países levou à sua desestatização por preços modestos, representando economia de recursos para as respectivas estruturas fiscais, reduzindo a carga de subsídios paga pelos Estados. A fragilidade das agências reguladoras do transporte ferroviário, na intermediação entre concessionárias e Estado, é derivada da ausência de um processo de desestatização mais bem planejado para o modal. Tal processo foi feito embasado na premissa de economizar recursos públicos, não dando muita atenção para as consequências econômicas, jurídicas e políticas dos contratos de concessão, os quais podem ter a duração de até 50 anos, tal como o caso mexicano. Embora haja um aumento no índice de produtividade das ferrovias nesses três países isso não significa que sua estrutura regulatória esteja bem ajustada. O monopólio de linhas e produtos permanece sendo um problema nas ferrovias latino-americanas, com poucos mecanismos que fomentem a competição entre as concessionárias, de modo a tornar o frete ferroviário mais atrativo e também mais eficiente. 2.5. Considerações finais.

O processo de privatização/desestatização da economia brasileira teve início ainda na década de 1980, durante o governo militar, com Figueiredo, e com o governo democrático Sarney, em que ocorreu a reprivatização de algumas empresas públicas, sem um escopo de ação e com poucos recursos envolvidos. Na década de 1990 tal processo ganhou corpo e se avolumou dentro do aparato estatal brasileiro. Fernando Collor (1990-1992), com o PND, criou mecanismos jurídicos para a transferência maciça de ativos públicos para a iniciativa privada. Tal processo foi interrompido em 1992, por conta de seu impedimento ao exercício da Presidência. O governo Itamar Franco (1992-1994) seguiu com a privatização de uma série de empresas de grande importância para o país. Porém, é no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que o processo de privatização/desestatização atinge seu ponto mais avançado. A desestatização do setor de serviços e a venda das empresas estatais mais lucrativas renderam uma grande soma de recursos financeiros para o Estado brasileiro, cuja política econômica estava baseada em princípios neoliberais, tal processo contando mormente com a retórica do ajuste fiscal. A venda de ativos públicos deficitários era avaliada como a

salvação econômica do país, proporcionando a melhoria de seu ambiente de investimento e sua abertura à economia mundial.

A Lei nº. 8.987/1995, chamada de lei das concessões, foi o ordenamento jurídico que abriu a exploração da infraestrutura econômica brasileira para a iniciativa privada. A desestatização de serviços públicos foi feita sem a criação de um marco regulatório condizente com o tamanho dos recursos e responsabilidades envolvidos. A exceção é o caso do setor de telecomunicações, o qual teve seu marco regulatório e sua agência reguladora erigidos num momento anterior ao processo de desestatização.

A América Latina passou pela década de 1990 transferindo ativos públicos para a iniciativa privada. O setor de telecomunicações liderou a onda de liberalização dos mercados de infraestrutura na região, sendo logo seguido pelo mercado de transporte, energia e saneamento básico. O ciclo neoliberal na região promoveu a privatização/desestatização de grande parte da infraestrutura latino americana. As ferrovias foram diretamente envolvidas nesse processo. Argentina e México desestatizaram suas respectivas malhas ferroviárias, com escassas condições de regulação sobre a participação da iniciativa privada no fornecimento de um serviço público, tal como o transporte ferroviário de carga. Embora os índices de produtividade tenham melhorado houve o fechamento das malhas para outros possíveis clientes e produtos, dificultando a diversificação e a competitividade do modal.

Processo bastante semelhante ocorreu com as ferrovias brasileiras, as quais foram desestatizadas a partir de 1996. A desestatização do modal ferroviário é uma conjuntura crítica na sequência histórica da regulação ferroviária brasileira. A volta da iniciativa privada para operação de ferrovias trouxe consigo uma série de novas regras, produzindo novos legados institucionais para o setor. Retomando a pergunta formulada no início deste capítulo: quais as consequências institucionais do processo de desestatização das ferrovias brasileiras na década de 1990?

A desestatização das ferrovias brasileiras, diferentemente do caso das telecomunicações, não foi precedido pela montagem de um marco regulatório, tampouco houve a constituição de uma agência reguladora capaz de assegurar os interesses do Estado na prestação de um serviço público, tais como qualidade e acessibilidade. A estrutura regulatória do modal ferroviário foi montada após a desestatização, ao passo que a ANTT foi constituída apenas em 2001, por meio da Lei nº. 10.233/2001. Em vista dessa sequência temporal, a agência herdou os contratos de concessão assinados entre as concessionárias e o Ministério dos Transportes, tendo pouca capacidade discricionária para criar mecanismos a fim de assegurar tarifas, produtividade, investimentos e competitividade ao modal. Embora tenha

havido um bom aumento dos índices de produtividade das ferrovias brasileiras pós- desestatização, seu legado é contraditório. O modelo de exploração das ferrovias adotado pelo Brasil foi o vertical, em que a exploração da infraetutura ferroviária e a operação dos trens é feita pela mesma concessionária. Esse modelo, associado à falta de um marco regulatório que possibilite a passagem dos trens de uma concessionária sobre a malha de outra, ou mesmo a falta de capacidade institucional para forçar a implementação de tal marco, cria uma situação de monopólio ferroviário. A maior parte das concessionárias ferroviárias brasileiras é controlada por empresas usuárias do transporte ferroviário, as quais recebem tratamento diferenciado das concessionárias, promovendo uma grande especialização nos produtos transportados pela ferrovia, principalmente commodities minerais e agrícolas. A conjunção desses fatores gera o isolamento geográfico52 das diferentes malhas ferroviárias brasileiras e

cria uma situação de fechamento do mercado para outros clientes e produtos, tornando o modal economicamente inviável para alguns produtos. A competição entre concessionárias é praticamente inexistente no modal ferroviário brasileiro, de modo a haver pouco interesse em promover um marco regulatório favorável ao acesso competitivo à malha ferroviária brasileira. É sobre essa base institucional que as ferrovias brasileiras se desenvolvem a partir da década de 2000.

52 Aqui podemos observar algumas características que acompanharam o modal ferroviário brasileiro desde sua criação. O Decreto nº. 641/1852 estabeleceu a política de privilégio de zona para as ferrovias construídas sob sua institucionalidade, isolando geograficamente as malhas ferroviárias brasileiras. Ora, o que foi estabelecido pelo Decreto nº. 1.832/1996 não passa de uma reedição dessa prerrogativa, pois visa a manutenção de tal isolamento, impedindo a competição entre operadores ferroviários na prestação do serviço público de transporte ferroviário.