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3.3.5 Inobservância do dever objetivo de cuidado

A vida em sociedade organizada sempre exigiu comportamentos adequados e que respeitem os direitos de todas as pessoas. Os direitos a serem considerados abrangem a vida, a honra, bens patrimoniais etc. Dessa forma, ninguém pode viver em comunidade agredindo ou prejudicando os direitos alheios, por essa é uma das razões de existência das leis, para proteger e amparar a todos que se sintam prejudicados em qualquer de seus direitos.

Além desse amparo legal, os indivíduos de uma sociedade, ao exercerem diversas atividades do cotidiano (transporte, trabalho, lazer, estudos etc.), não podem ofender ou causar danos aos outros em razão do exercício daquelas atividades lícitas, pois se presume que todos tenham um dever social de atuar com certa cautela ou cuidado. Cezar Roberto Bittencourt, ao explicar os elementos do tipo de injusto culposo fez a seguinte definição:

Dever objetivo de cuidado consiste em reconhecer o perigo para o bem jurídico tutelado e preocupar-se com as possíveis conseqüências que uma conduta descuidada pode produzir-lhe, deixando de praticá-la, ou, então, executá-la somente depois de adotar as necessárias e suficientes precauções para evitá-lo.221

No mesmo diapasão, também é a definição de Hans Welzel:

O cuidado objetivo normal é, em conseqüência, o comportamento (vale dizer, a ação final ou sua abstenção) que adotaria, nas particulares circunstâncias consideradas, uma pessoa dotada de discernimento e de prudência, colocada na mesma situação do agente.222

O resultado material produzido pela ação voluntária do sujeito ativo, conforme esclarecido no capítulo anterior, pode ser causado por um descuido violador de alguma regra legal, administrativa, disciplinar ou de conduta geral, e essa ação descuidada é que caracterizará a existência do crime culposo. Pois se o agente tem dúvida na atuação descuidada, não deve agir; por outro lado, ao arriscar, “age com

imprudência, e, sobrevindo um resultado típico, torna-se autor de crime culposo.”223

O conteúdo e a delimitação do cuidado objetivo, que o sujeito ativo deveria ter tido ou verificado, é demonstrado pelas circunstâncias, no caso de um acidente de

221

Tratado de Direito Penal, parte geral, vol. I, p. 351.

222 Hans Welzel. “Culpa e delitos de circulação (sobre a dogmática dos crimes culposos).” Revista de Direito Penal nº 3, tradução de Nilo Batista, p. 25.

223 BITTENCOURT, Cesar Roberto.

trânsito, que irão ser demonstradas na sentença penal fundamentada pelo juiz criminal. Nesse sentido Welzel:

Na maior parte dessas decisões, o problema central reside precisamente em saber se o usuário da via, em sua situação concreta, tinha ou não direito a praticar o ato em questão, a que comportamento estava ou não obrigado, com o que tinha ou não direito de contar etc.224

A reprovabilidade da conduta, caracterizando o ilícito culposo, existirá se houver a inobservância do dever objetivo de cuidado por meio da comparação entre a conduta real praticada com uma conduta ideal que não lesione qualquer bem jurídico alheio.225 A mesma posição tem Welzel ao escrever: “o essencial das decisões relativas aos casos de trânsito se refere às ações concretas cumpridas

pelo acusado, e às ações que deveria ter cumprido”.226 Ou, conforme leciona, no

mesmo diapasão, Juarez Tavares: “a característica da conduta cuidadosa deve ser inferida das condições concretas, existentes no momento do fato, e da necessidade objetiva, naquele instante, de proteger o bem jurídico”.227 Porém, desde que o agente tenha conhecimento de como atuar de forma não ofensiva a sua conduta não será reprovável228 e o fato, apesar de ser típico, não será culpável. Como leciona

Aníbal Bruno:

Se o atuar do agente está de acordo com as normas de comportamento que ele devia e podia cumprir, nas circunstâncias, segundo a exigência comum de diligência nos atos da vida, não se pode falar de culpa, por mais grave que possa ser o resultado não querido nem previsto pelo agente.229

224 Hans Welzel,

Idem, p. 16.

225 Nesse sentido o item 10. da Exposição de motivos do Código de 1969 explanava tal situação: “A ilicitude nos crimes culposos surge pela discrepância entre a conduta observada e as exigências do ordenamento jurídico com respeito à cautela necessária em todo comportamento social, para evitar danos aos interesses e bens de terceiro.” PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil. p.

514.

226 Hans Welzel.

Idem, p. 19.

227

Direito penal da negligência, p. 137.

228 Hans Welzel (ainda no artigo citado, p. 20) leciona no sentido de que a análise do ato culposo deve se ater a dois aspectos: objetivo, se o comportamento do agente fosse contrário às regras de circulação; e, subjetivo, quando fosse reprovável a violação daqueles deveres. E cita o teor de uma sentença cível do Supremo Tribunal Federal Alemão declarando lícita a atuação de um acusado: “O direito vigente, ao admitir a circulação e seus perigos, e ao regular pormenorizadamente a maneira pela qual se devem comportar aqueles que participam dessa circulação, expressa com isso que uma conduta respeitosa dessas regras se coloca nas lindes do direito. É inadmissível que um comportamento totalmente respeitoso dos imperativos e das proibições das regras de circulação esteja, não obstante, afetado pelo juízo de valor negativo da antijuridicidade. O resultado ocasionado por tal comportamento não constitui, neste sentido, razão suficiente para a atribuição do caráter ilegítimo, na acepção das disposições do Código Civil Alemão sobre as ações ilegítimas, que não permitem desconsiderar a ação mesma que causou o resultado. Convém igualmente assinalar, em princípio, que no caso de comportamento de usuário da rua ou da via férrea conforme as regras de circulação (regulamentos), não nos encontramos diante de uma lesão antijurídica.”

229

Mas o dever de evitar a colocação em risco, ou em perigo, qualquer direito alheio não pode ser absoluto, pois nem todo comportamento perigoso pode ser considerado como uma conduta contrária ao dever objetivo de cuidado. A culpa em sentido estrito sobrevirá se o agente ultrapassar os limites do risco permitido em determinadas atividades230, comuns no cotidiano. Porém, se “a participação na moderna circulação de veículos não é possível sem um certo risco”, continua o mesmo autor, “o cuidado necessário somente falta quando a atenção acarreta uma periclitação que vá além do que seja normal ou socialmente adequado.”231

A teoria do “risco permitido” foi a saída que a doutrina encontrou para justificar a prática de algumas atividades perigosas e por sua própria natureza necessárias para o funcionamento de qualquer sociedade moderna, ou seja, o popular “mal necessário”.

A partir da consideração desse risco existente na atualidade, em especial nas atividades do trânsito viário, a doutrina desenvolveu o chamado princípio da confiança, fundamental para proteger os motoristas que atuam de maneira prudente,

ou ainda, quando não ultrapassem os limites do cuidado necessário, pois, conforme a lição de Welzel “o usuário tem direito a contar com que os demais usuários se comportem igualmente de uma maneira correta, a menos que as circunstâncias particulares sejam de tal natureza que lhe permitam reconhecer que não é assim.”232 Ou ainda, “todo aquele que atende adequadamente ao cuidado objetivamente exigido, pode confiar que os demais co-participantes da mesma atividade também operem cuidadosamente.”233

A utilização do princípio da confiança funciona com um critério regulador da conduta humana, ou “limitador concreto do dever de cuidado”234 é utilizado para,

continua o mesmo autor, “conceder aos agentes uma exclusão de obrarem além do dever concreto, que lhes é imposto nas circunstâncias e nas condições existentes no momento de realizar a atividade”.

230 Aníbal Bruno,

op.cit., p. 86, cita algumas atividades de risco: “fabricação ou manejo de explosivos,

funcionamento de fábricas, exploração de usinas, intervenções cirúrgicas, condução de veículos, construção de edifícios” que podem ocasionar resultados danosos se praticadas sem a “atenção devida”.

231

Idem, p. 25, grifos do autor.

232 Welzel,

idem, p. 25 e 26.

233 Tavares, Juarez.

Direito Penal da negligência, p. 148.

234 Tavares, Juarez.

Para encerrarmos o tópico, o uso do princípio da confiança não poderá ser alegado pelo autor negligente nas seguintes hipóteses, conforme relaciona Juarez Tavares235:

a) Quando, em razão de “circunstâncias especiais”, conforme experiência cotidiana, seja inevitável que a conduta de terceiro lesará o dever objetivo de cuidado nas seguintes situações: nos defeitos físicos, distrações patentes e nas situações de embriaguez;

b) Quando o dever de cuidado seja direcionado, centralizado ou aplicado no intuito de controle, fiscalização, ou até a guarda de condutas de outrem, tal qual nas hipóteses de ações de crianças ou enfermos mentais ou ainda nas realizações difíceis e arriscadas;

c) Se o autor negligente extrapolou ou agiu contrariamente ao próprio princípio geral do dever objetivo de cuidado.