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No Direito Romano iniciou-se o estudo da previsibilidade do evento como fundamento da culpa, ou seja, a possibilidade de prever o evento danoso ou prejudicial, quando causado por um agente que não o quis, foi desenvolvida com os práticos da Idade Média, alcançando sua plenitude entre os escritores clássicos e alguns positivistas.

Essa teoria foi citada por Vincenzo Manzini139 como a mais antiga e mais difundida, criticando-a como a mais grosseira, pois é lastreada no conhecimento ou não da previsão do resultado, o qual poderia e deveria ser previsto, a fim de evitar a sua ocorrência. Os partidários dessa teoria foram obrigados a recorrer à obsoleta divisão: culpa geral, leve e levíssima (equiparada ao caso fortuito), a fim de evitar injustiças na aplicação prática da teoria. Manzini, ao finalizar sua contrariedade sobre a teoria da previsibilidade, além da explicação acima, utiliza os seguintes argumentos: “É absurdo reprovar-se a alguém por não ter previsto aquilo que outro mais inteligente ou prudente teria podido prever; a justiça penal não pede contas ao indivíduo das suas previsões, mas das suas ações ou omissões.”140

Os principais autores que sustentam essa teoria são os seguintes:

Francesco Carrara, que define a culpa como: “a omissão voluntária de diligência no calcular as conseqüências possíveis e previsíveis do próprio fato.”141 O mestre de Pisa explica que, na teoria do defeito da vontade, clássica teoria da culpa, para a existência desta, deverá haver um vício ou defeito na vontade do agente, o qual não prevê o que pode ser previsível, ao agir ou se omitir142 desprezando a diligência ou atenção necessária ao ter querido aquele ato sem prever suas

138

Do Crime Culposo. p. 20.

139 MANZINI, Vincenzo.

Tratado de Derecho Penal. Vol.II. p. 205, tradução nossa.

140 MANZINI, Vincenzo.

Tratado de Derecho Penal. Vol.II. p. 205, tradução nossa.

141 CARRARA, Francesco. Programa do Curso de Direito Criminal. p. 89. 142 Esmeraldino Bandeira faz a seguinte crítica ao termo

voluntáriaomissão: “Não a legitima o facto

de ser voluntário o acto de que resultou o evento damnoso ao direito alheio, pois que nos próprios crimes casuaes o acto inicial é igualmente voluntário. Assim, tanto é voluntário o facto de lançar por uma janella em rua transitada sem intenção de matar ou ferir ninguém, uma barra de ferro, que ao cahir, mata ou fere um tranzeunte; como o facto de ferir ou matar com um tiro de espingarda um individuo que se havia occultado num lugar permitido á caça.” Direito Penal Militar Brazileiro. p. 267.

conseqüências, acima de tudo previsíveis, e, assim, o clássico criminalista sustenta sua posição por meio do seguinte fundamento da punição do crime culposo:

O fundamento da imputabilidade política dos fatos culposos é, pois, perfeitamente análogo ao dos fatos dolosos. Isto é: dano mediato

concorrente com o imediato. Pelos fatos imprudentes também sente o bom

cidadão diminuída a opinião de sua segurança, e que tem inclinação à

imprudência dêles tira o mau exemplo. Os fatos culposos, enquanto remontam a um vício de vontade, são moralmente imputáveis, porque constituem um ato voluntário o manter inertes as faculdades intelectivas. O

negligente, embora não desejasse a lesão do direito, quis, todavia, o fato em que devia reconhecer possível ou provável aquela lesão.143

Nessa teoria não se pode confundir a vontade do ato com a vontade do resultado (ato doloso), pois a previsão omitida ou desprezada, quando da atuação do sujeito ativo apenas o impede de imaginar as conseqüências do seu ato inicial defeituoso. Também, se a culpa fosse mero defeito da inteligência, o sujeito ativo seria inimputável, seja no âmbito moral ou político. Portanto, ele é imputável por sua ação ser originada na vontade consciente, ou seja, a negligência tem origem na vontade do homem.

Outro ponto citado por Carrara é a distinção entre previsibilidade e previsão. Pode-se prever o evento como possível, mas deseja-se evitar o acontecimento final, que realmente não foi possível evitar. Nesta distinção, é patente e notório que se o sujeito ativo agisse com anuência do resultado ocorrido estaria obrando com dolo, pelo contrário, estaria atuando na modalidade culposa.

A teoria da previsibilidade do evento foi muito importante, pois, atualmente, conforme capítulo a seguir sobre os elementos do fato típico culposo, um de seus elementos é a previsibilidade objetiva, exigida a fim de se completar a referida tipicidade.

Em suma, a doutrina de Carrara exige os seguintes requisitos na imputabilidade da culpa: evento danoso, voluntariedade do ato, falta de previsão, efeito nocivo, e possibilidade de previsão do evento144. Nesse sentido é importante transcrever a lição de Raul Machado:

A previsibilidade é, portanto, o limite necessário, porque sem ela se entra no imprevisível, isto é, no caso fortuito; e o limite suficiente, porque, ultrapassando-a, se entra no previsto, isto é, no voluntário, e ter-se-á o dolo; e deve ser entendida, não de um modo particular, em relação a um dado evento, mas de modo geral, em relação à possibilidade de um dano resultante do nosso ato.145

143 CARRARA, Francesco.

Op.cit., p. 114, grifos do autor.

144

Programa do Curso de Direito Criminal. p. 89.

145 MACHADO, Raul.

Outro autor que adota o critério da previsibilidade, porém, ampliando o seu campo, é Brusa146, que exige mais, referindo-se à “prevenibilidade”, e define a culpa como “a omissão voluntária da diligência necessária para prever e prevenir um evento penalmente antijurídico, possível, previsível e prevenível”. A teoria da previsibilidade é interessante para o direito privado, pois, na sua época, influenciou a doutrina civilista, atribuindo ao caso fortuito os critérios da imprevisibilidade e da inevitabilidade, e assim, o da previsibilidade. Vincenzo Manzini147 novamente critica

essa teoria alegando que a previsibilidade ou “previnibilidade” maior ou menor poderia influenciar apenas na aplicação da pena, e não na punibilidade do fato culposo mesmo que comprovada a voluntariedade do agente.

Para Von Liszt, o conceito da culpa “é o não conhecimento, contrário ao dever, da importância da ação ou da omissão como causa.”148 Ele concilia a teoria da previsibilidade e a do vício da vontade com as opiniões de alguns autores que citam a falta de atenção como elemento na prática dos crimes culposos, mencionando as seguintes características149 nessa teoria:

a) Falta de precaução na manifestação da vontade por ocasião do ato voluntário: o autor despreza o cuidado exigido pelo ordenamento jurídico; a medida do cuidado é determinada em geral conforme a natureza da ação empreendida, e não conforme a atuação pessoal do agente. Portanto, a falta de atenção, pelo não cumprimento do dever de cuidado em geral, é apresentada como uma falta de vontade;

b) À falta de precaução deve-se acrescentar a falta de previsão, pois, para o agente, deve ser possível prever o resultado como conseqüência de sua atuação, e também reconhecer a existência dos elementos essenciais do feito. Para explanar melhor, Von Liszt utiliza o exemplo de alguém que esta embriagado ou fora de sua consciência quando pratica o ato, ou seja, se tem ou não percepção da previsão no momento da atuação tendo em relevo a capacidade mental individual, desde que não apresente uma falta de inteligência;

146 Brusa,

Saggio di una teoria generale del reato, 1884, p. 193, apud Álvaro Mayrink da Costa, Direito Penal, parte geral, p. 522.

147 MANZINI, Vincenzo.

Tratado de Derecho Penal. Vol.II, p. 207.

148 Von Liszt,

Tratado de Direito Penal Alemão, tradução de José Higino, págs. 290-292, ed. 1899, apud Raul Machado, A culpa no Direito Penal, p. 68.

149 Conforme citação de JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. op. cit., p. 402 e de Raul Machado,

c) Por fim, o conteúdo material da culpa é uma espécie de culpabilidade, ou seja, o autor não reconheceu, sendo possível fazê-lo, o significado de seus atos como contrários à vida social, demonstrando uma falta de respeito à sociedade a prática do ato culposo. Portanto, a culpa se fixa sobre um erro relativo à relevância do ato voluntário, seja como sua causa, ou na atitude que impeça o resultado (diferença entre culpa e dolo). Porém, o erro ou a falta serão inadmissíveis se podiam e deviam ser evitados (distinção da culpa e do caso). E, por fim, o erro excluirá a culpa se for inevitável e se o autor, conforme suas condições, não sabia da importância do seu ato.

Raul Machado cita a crítica de Gaetano Leto, contrária ao pensamento de Von Liszt, ao afirmar que a medida da diligência não pode ser estabelecida de maneira objetiva, sem considerar a previdência do agente, ou seja, suas qualidades psíquicas ou sua maior ou menor compreensão intelectual. E, por fim, não aceita que a culpa seja, ou provenha, de um erro, desde que não tenha o conceito científico da “substituição de uma noção verdadeira por uma noção falsa”. Gaetano Leto finaliza seu pensamento com os seguintes exemplos:

Se um farmacêutico troca, por descuido, em uma receita, uma substância medicinal por outra de efeitos venéficos e com isso produz involuntariamente a morte de alguém, não se poderá negar a existência de “erro” neste caso de culpa. Se, porém, um, indivíduo, a cavalo, se lança em desabalada carreira numa estrada pública e atropela alguém; ou se uma pessoa imprudente atira de uma janela à rua um objeto qualquer, que vem a ferir outrem, é evidente que nestes dois exemplos não se pode falar de erro,

no sentido técnico da palavra.150

3.2.2 Defeito ou vício intelectual

A Teoria do defeito ou vício intelectual foi desenvolvida no final do século XVIII por Hascher Von Almendingen151 que sustentava que a culpa constituía um vício ou defeito da inteligência do autor de um delito culposo, que não possuía reflexão sobre seus atos, ao atuar sem vontade, e que a culpa não deveria ser punida no âmbito penal, restando apenas a reparação civil. Acrescenta Almendingen que imputar pressupõe declarar que alguém colaborou na mudança no mundo exterior atuando com vontade e consciência. Raul Machado cita a seguinte fundamentação do autor:

150 Gaetano Leto,

Il reato culposo, pág. 294, apud MACHADO, Raul. A culpa no Direito Penal. p. 69.

151

Apud FONTAN BALESTRA, Carlos. El Elemento subjetivo del delito, p. 120 e JIMÉNEZ DE

Não há, pois, no agente, nos casos de culpa, nem vontade, nem intenção, nem mesmo consciência ou previsão do mal. A culpa é um vício da inteligência e da memória, consistente em uma falta de atenção. Ela pode acarretar a responsabilidade civil, jamais, em boa lógica jurídica, a responsabilidade penal.152

Destarte, os autores de crimes culposos ficariam impunes por ausência de culpabilidade. Porém, o próprio Almendingen, ao final da lição, aceita a punição dos delitos culposos como medida de prevenção individual para o sujeito ativo, a fim de que não cometa o mesmo ilícito, e como forma de lição, pois sua falta de reflexão, ao praticar um ato culposo, lhe traz também conseqüências prejudiciais, além do resultado causado para outrem.153