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3.4 POLÍTICA DA ÁGUA NA FRANÇA 97 

3.4.2 Instâncias de bacia 99 

A criação dos Comitês de bacia foi prevista no artigo 13 da Lei de 1964. Em cada um das seis grandes bacias hidrográficas nacionais foi criado um Comitê composto por quantidades iguais de representantes de diferentes categorias de usuários da água e pessoas com notório saber, de representantes designados pelas coletividades locais e de representantes indicados pela administração do Estado. No Comitê deveriam estar representados todos os interesses políticos, geográficos, sociais, econômicos e profissionais existentes na bacia. Essa Instância seria um organismo que deveria ser consultado sobre a oportunidade de realização de obras e de tomada de ações de interesse comum dentro de uma bacia. Cabia ainda consultar ao Comitê sobre os litígios que pudessem ocorrer entre as coletividades e sobre todas as questões gerais que dissessem respeito à Lei de 1964 (FRANÇA, 1964).

A criação dos Comitês havia sido proposta pelos senadores ainda durante a fase de discussões da Lei de 1964. Conforme argumentaram Nicolazo e Redaud (2007), os senadores haviam alterado a versão da Lei inicialmente apresentada pelo Executivo, segundo a qual os organismos tradicionais do Estado seriam os responsáveis por realizar cobranças. Essa abordagem excluiria as coletividades locais dos processos de tomada de ação e decisão. O Comitê, na versão final da Lei, passou a ser um colegiado onde estariam presentes representantes das coletividades e que teria o poder de fixar receitas e despesas da correspondente Agência da Água. Cabia ainda à Instância aprovar percentuais e bases de cálculo das cobranças pelo uso da água e pelo lançamento de efluentes e votar programas executados pela Agência correspondente.

A questão da solidariedade também foi um elemento importante na criação dos Comitês, conforme afirmaram Nicolazo e Redaud (2007). Como existiam múltiplos usos do recurso, seria preciso construir a solidariedade entre diferentes usuários e também entre diferentes regiões da bacia. De fato, conforme mostrou Martin (1988), em fins da década de 1980, os Comitês eram responsáveis pela gestão de uma política apoiada na mutualidade e fundamentada em princípios de externalizar custos internos e dirimir responsabilidades individuais. A evolução na direção da externalização havia ocorrido pela pressão dos usuários, notadamente os industriais, preocupados com uma igualdade de obrigações, e dos representantes das coletividades locais, mais familiarizados com o conceito de imposto do que com o de valor econômico de um bem.

As Agências da Água, originalmente chamadas de Agências Financeiras de Bacia, tiveram a criação prevista no artigo 14 da Lei de 1964. As Agências são estabelecimentos públicos administrativos do Estado, dotados de personalidade jurídica civil e de autonomia financeira. A missão principal dessas Instâncias é a de facilitar ações de interesse coletivo no âmbito da bacia. As Agências haviam recebido como competência a concessão de subvenções e de empréstimos a entes, privados ou públicos, para que executassem obras de interesse comum na bacia (FRANÇA, 1964).

Cada Agência é administrada por um Conselho de Administração, formado por igual número de representantes do Estado, com competências no domínio da política da água, e de representantes das coletividades e dos usuários. O Presidente do Conselho deveria ser nomeado por um decreto para um mandato de três anos, e os demais participantes deveriam ser escolhidos entre os membros do Comitê. Era prerrogativa dos funcionários da Agência indicar um representante para integrar o Conselho. A aprovação do Programa de Intervenções da Agência, a ser submetido para posterior deliberação pelo Comitê fora definido como uma competência do Conselho. Ainda, eram também responsabilidades do Conselho: deliberar, antes da submissão ao Comitê, sobre o orçamento da Agência e sobre bases de cálculo, percentuais e distribuição de recursos arrecadados com as cobranças pelo uso (FRANÇA, 1964; FNE, 2008a).

Encarregadas originalmente da gestão de financiamentos destinados à despoluição, as Agências haviam tornado-se progressivamente responsáveis também por ações para proteção e restauração das águas superficiais e subterrâneas e das marinhas territoriais (FNE, 2008a). As Agências são entidades sujeitas a uma dupla tutela, do Ministério do Meio ambiente e do Ministério de Finanças, pois o modo de intervenção dessas Instâncias era antes de tudo financeiro. As tutelas traduziam-se no respeito a orientações ministeriais e na demanda aos órgãos tutelares de autorização para execução de atos importantes. As Agências cobram e arrecadam valores monetários pelo uso da água que são em seguida redistribuídos na forma de suporte financeiro às coletividades locais, aos industriais e aos agropecuaristas. Projetos de interesse coletivo, como despoluição, coleta e tratamento de efluentes e produção de água potável, eram passíveis de financiamento pelas Agências. Barraqué (1995) afirmou que as Instâncias poderiam ser entendidas como caixas de poupança forçada dos poluidores e também dos municípios. Nesse sentido, as Agências tinham a possibilidade de efetuar provisões orçamentárias para renovar equipamentos, como reservatórios e estações de tratamento, e de fazer empréstimos a juros especiais. Esse mecanismo cobrança-suporte explicava o sucesso financeiro e político das Agências e também a hostilidade de parte da administração do Estado.

O modo de intervenção das Agências, segundo explicaram Nicolazo e Redaud (2007), havia sido escolhido pelos legisladores da Lei de 1964 visando a escapar de fronteiras administrativas tradicionais do Estado, permitindo a participação de representantes dos usuários na gestão de um recurso considerado como bem coletivo. A criação dessas Instâncias executivas permitira instituir uma circunscrição de ação sobre uma bacia que não correspondia a nenhuma divisão administrativa ou de gestão tradicional. A vontade dos legisladores era de que as Agências cumprissem uma missão de interesse público e complementar àquelas do Estado e, para tanto, não receberiam nenhuma subvenção pública e utilizariam tão somente as receitas provenientes das cobranças.

Segundo encontrado em FNE (2008a), as cobranças pelo consumo da água eram justificadas pelo impacto que essa ação causava ao meio ambiente e a outros usuários. O impacto também justificava a cobrança pelos lançamentos de poluentes que degradavam a água e prejudicavam assim a fauna e a flora e também a destinação para outros usos pelo homem. Em 2007, o montante de cobranças recebido pelas Agências, em toda a França, atingiu cerca de dois bilhões de euros. Em princípio, todas as pessoas ou empresas, que captavam água ou que contribuíam de alguma forma para a degradação da qualidade do recurso, estavam sujeitas direta ou indiretamente à cobrança.

Cada Agência atuava conforme um Programa de Intervenções plurianual que definia os objetivos e os recursos da política da água na bacia. Nicolazo e Redaud (2007) mostraram que um programa detalhava as prioridades de gestão dos recursos hídricos da bacia, como por exemplo, restabelecimento de vazões, objetivos de qualidade e recuperação de meios aquáticos, e apontavam as ações identificadas como necessárias para atender a essas prioridades. A autonomia de gestão das Instâncias executivas permitia uma liberdade na proposição de meios para alcançar os objetivos dos programas. Um programa contemplava a definição das linhas de crédito que a Agência iria utilizar para cobrir as despesas decorrentes das ações e do próprio funcionamento. Os créditos eram o suporte financeiro que as Agências concediam para a realização dos trabalhos na bacia, em coerência com orientações programáticas. O mecanismo de planejamento plurianual garantia o financiamento da política, uma vez que escapava das atualizações anuais do orçamento exigidas para outros órgãos da administração estatal.

Para Barraqué (1995), a organização matricial das Agências, descentralizadas em delegações regionais e com divisões por tipo de uso da água, permitia ao modelo francês aproximar-se de uma gestão integrada de recursos hídricos. Para atender ao exigido nos programas, as Agências haviam desenvolvido um conjunto de ferramentas técnicas, dentre as quais estavam redes de medidas hídricas, sistemas de informação geográfica, estudos

de ambientes aquáticos e programas de pesquisa. As ferramentas estavam disponíveis e eram utilizadas não somente pelas Agências, mas também por órgãos do Estado e por usuários e pesquisadores.