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3 REFORMAS CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIAS E O SUPREMO TRIBUNAL

3.1 INSTITUIÇÃO DE NOVAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS

3.1.1 IPMF

A primeira emenda constitucional que instituiu nova competência tributária (EC 3/1993) inaugurou o chamado “imposto sobre a movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira” (IPMF) e rapidamente foi submetida ao controle abstrato de constitucionalidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal, no que se tornou um dos mais relevantes precedentes da Corte311

.

Com efeito, a EC 3/1993 foi promulgada em 17.3.1993 e instituiu nova competência tributária nos seguintes termos:

Art. 2.º A União poderá instituir, nos termos de lei complementar, com vigência até 31 de dezembro de 1994, imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.

(...)

§ 2.º Ao imposto de que trata este artigo não se aplica o art. 150, III, b, e VI, nem o disposto no § 5.º do art. 153 da Constituição.

§ 3.º O produto da arrecadação do imposto de que trata este artigo não se encontra sujeito a qualquer modalidade de repartição com outra entidade federada.

311 Sobre a importância da ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 18.3.1994, cf. VALADÃO,

Marcos Aurélio Pereira. “Acerca de decisões relevantes do STF sobre o sistema constitucional tributário a partir da Constituição de 1988". In: MENDES; BRANCO & VALE. A Jurisprudência do STF nos 20 anos

da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 263-71. FUCK, Luciano Felicio. “Tributação e cláusulas pétreas: ADI 939”. In: HORBACH, Beatriz Bastide & FUCK, Luciano Felicio (Coord.). O Supremo por seus

Assim, a EC 3/1993 criou nova espécie de imposto e expressamente afastou a incidência do princípio da anterioridade e das imunidades, previstas como limitações constitucionais ao poder de tributar.

A EC 3/1993 foi regulamentada pela Lei Complementar n. 77, de 13.7.1993, e, logo após, em 23.8.1993, impugnada pelos Governadores dos Estados do Paraná, Santa Catarina, Tocantins, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso nos autos da ADI 926/DF.

Nesse caso, o Supremo Tribunal Federal enfrentou com desassombro a tarefa de examinar a constitucionalidade de norma editada pelo poder constituinte derivado e, pela primeira vez na história da Corte, suspendeu e declarou inconstitucional uma emenda constitucional.

Na realidade, em menos de seis meses da promulgação da EC 3/1993, foi deferido o primeiro pedido de liminar pelo Plenário, mais exatamente em 1º.9.1993, nos autos da ADI-MC 926/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 6.5.1994312

. Na ocasião, o Plenário do STF concedeu, à unanimidade, medida liminar para suspender a incidência do novo imposto provisório sobre as pessoas jurídicas de direito público, que gozam da imunidade recíproca inserta no art. 150, VI, “a”, da Carta Magna.

Nesse julgamento cautelar, os votos dos Ministros Celso de Mello e Marco Aurélio já adiantavam posição quanto à inconstitucionalidade da emenda constitucional também pelos fundamentos de violação da anterioridade e das demais imunidades. No entanto, o fundamento da imunidade recíproca obteve amplo e incontestável amparo pelo Plenário.

Além disso, em 6.9.1993, foi ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 939, cuja medida cautelar foi apreciada na sessão de 15.9.1993. O mérito restou apreciado em 15.12.1993, em curtíssimo espaço de tempo dado o contexto do imposto provisório.

No que se refere à ADI 939, a exordial pleiteou a inconstitucionalidade completa do novo imposto provisório por violação aos princípios da anterioridade, da não cumulatividade e do equilíbrio orçamentário, bem como por bitributação do contribuinte.

No entanto, o julgamento da ADI 939, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 18.3.1994, constitui a primeira vez em que o STF efetivamente reconheceu, definitivamente, a inconstitucionalidade de emenda constitucional313

.

312 Foram ainda ajuizadas contra a EC 3/1993 as ADIs 928/DF, 935/DF, 937/DF, 939/DF, 941/DF, 944/DF e

947/DF, todas de relatoria do Min. Sydney Sanches.

313 A ADI 926 acabou julgada prejudicada por perda superveniente de objeto, tendo em vista o julgamento do

É importante destacar que o Tribunal não considerou o novo imposto inteiramente inconstitucional, mas se restringiu a garantir o status de cláusula pétrea às limitações constitucionais ao poder de tributar, em especial no que se refere à anterioridade prevista no art. 150, III, “b”, da CF/1988. Em ouras palavras, o STF tentou aproveitar, tanto quanto possível, a validade do novo imposto criado. Em momento algum, a Corte endossou o argumento de que novos impostos só poderiam ser instituídos na forma do art. 154, I, da Carta Magna314

.

Relativamente à medida cautelar, no voto do relator, Min. Sydney Sanches, reconhecia-se apenas o fumus boni juris e o periculum in mora quanto à violação ao princípio da anterioridade, em virtude da autorização da emenda para o imposto incidir já no ano de 1993. Os votos dos Min. Celso de Mello e Marco Aurélio, mais uma vez, destacaram que, além da anterioridade, as imunidades também constituem cláusulas pétreas, razão pela qual não poderiam ser excetuadas do novo imposto criado por emenda constitucional.

Na ocasião do julgamento da cautelar, o Pleno, por maioria, suspendeu a eficácia do art. 2º da EC 3/1993, além da LC 77/1993, no mesmo ano de 1993, impedindo que o IPMF incidisse sobre os fatos geradores no ano de sua instituição.

Registre-se que os votos vencidos dos Ministros Franciso Rezek, Moreira Alves e Octávio Gallotti, este último o então Presidente, além do proferido pelo Min. Paulo Brossard, referiram-se à flexibilidade do poder constituinte derivado na edição de novas competências tributárias, especialmente dadas as circunstâncias econômicas conjunturais. Na ocasião, o Min. Paulo Brossard vocalizou a preocupação quanto a casos futuros, em que o contexto da União, dos estados e dos municípios dependesse da criação de novas fontes de recursos, nos seguintes termos:

O SENHOR MINISTRO PAULO BROSSARD: Senhor Presidente, já se disse que a história dos parlamentos acompanha a história dos orçamentos; e a história dos orçamentos está intimamente ligada com a dos tributos.

(...)

Acompanho a douta maioria, pedindo licença ao Ministro FRANCISCO REZEK, e concedo a liminar, mas peço licença para fazer algumas observações, porque me preocupo, não tanto com o caso vertente, mas com o que pode vir amanhã.

É que a lei constitucional é destinada a presidir a vida da nação, e não a sua morte, ela tem que ser vista em função das flutuações da vida, e não como instrumento de rigidez cadavérica voltada para o passado; e pode ocorrer, queira Deus que não, situação tal ou qual que venha a

314 A propósito, confira-se o voto do Min. Carlos Velloso na ADI-MC 939, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno,

DJ 17.12.1993, que expressamente aponta que o art. 154, I, da CF/1988 não limita o poder constituinte derivado.

exigir, amanhã, medidas que, na normalidade dos acontecimentos nem se pensam. Por isso temo dar uma expressão pétrea a tudo o que está na Constituição.315

Essa manifestação revela a preocupação simultânea com a proteção dos direitos fundamentais dos contribuintes e com a capacidade de o Estado financiar-se para garantir a concretização de suas funções, exatamente na linha do Estado Fiscal.

Quanto ao julgamento do mérito, o STF rapidamente afastou qualquer inconstitucionalidade na criação de novo tributo por meio de emenda constitucional, inclusive refutando argumentos como a violação da tipicidade da tributação, de equilíbrio orçamentário e da capacidade contributiva pela discriminação de novo imposto.

Para contextualizar os fundamentos do novo imposto, o parecer da Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional316

aduziu especificamente sobre sua necessidade para combater o déficit público, apontado como principal responsável pela alavanca da inflação. Nesse sentido, o IPMF foi concebido como tributo de curta duração (previsto até dezembro de 1994) e livre dos requisitos e limitações inerentes à competência residual da União, prevista no art. 154, I, da CF/1988. Nessa parte, o mencionado parecer foi tomado como razão de decidir pelo voto condutor do acórdão, fixando que nem o elenco discriminado de competências tributárias, nem o disposto no art. 154, I, da CF/1988 constituem cláusulas pétreas.

Apesar de não ter demandado muito debate, essa decisão é significativa por conceder ampla liberdade ao poder constituinte derivado no arranjo das competências constitucionais e possibilitar a criação de novos tributos para financiamento da administração pública, fora dos estreitos limites da competência residual originariamente prevista. O voto vencido do Min. Marco Aurélio no sentido da inconstitucionalidade total da EC 3/1993, amparado em difundida doutrina317

, ilumina a posição de que ao poder constituinte derivado não é permitido instituir novos impostos fora das balizas previstas no art. 154, I, da CF/1988, além de reconhecer, na espécie, confisco e violação à capacidade contributiva.

Por outro lado, o STF glosou a pretensão da emenda constitucional de criar nova exceção ao princípio da anterioridade, reconhecendo-a como garantia individual do

315 Voto do Min. Paulo Brossard na ADI-MC 939, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 17.12.1993.

316 Parecer PGFN/CRJN/987/93, lavrado por OSWALDO OTHON DE PONTES SARAIVA FILHO, fls.

178-252 dos autos da ADI 939.

317 Entre todos, cf. MARTINS, Ives Gandra. “Instituições de ‘Leasing” têm tratamento legislativo pertinente

às instituições financeiras – O IPMF é tributo inconstitucional – parecer”. Revista de Direito Civil Imobiliário, Agrário e Empresarial. Ano 19, n. 73, julho-setembro 1995, p. 121-136.

contribuinte e cláusula pétrea, contra os votos dos Ministros Sepúlveda Pertence e Octavio Gallotti, que admitiam novas hipóteses de tributos não alcançadas pela regra da anterioridade.

Relativamente às imunidades, inicialmente o relator, Min. Sydney Sanches, apenas ressalvou a imunidade recíproca, ante a cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º, I, da CF/1988. No entanto – após os sólidos votos dos Ministros Sepúlveda Pertence, Ilmar Galvão, Marco Aurélio, Carlos Velloso, Celso de Mello, Paulo Brossard e Néri da Silveira –, garantida a subsistência de todas as hipóteses de imunidades previstas no art. 150, VI, como “instrumentos fundamentais de salvaguarda de princípios, liberdades e direitos básicos da constituição”318

cláusula pétrea, o relator reajustou seu voto para acompanhar a maioria.

Em síntese, nesse importante precedente, o STF admitiu o controle de constitucionalidade de emendas constitucionais, permitiu a instituição de novas competências tributárias e deu força normativa às garantias individuais dos contribuintes ao assegurar a prevalência da regra da anterioridade e das imunidades. Atendendo aos critérios do Estado Fiscal, o Tribunal conseguiu equilibrar a eficácia das normas constitucionais de modo a, simultaneamente, permitir o reforço das receitas públicas por meio de tributos não vinculados e proteger as garantias fundamentais dos contribuintes.