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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

4. Idade Contemporânea

4.1. Luminescência penal

4.1.2. John Howard

Um dos grandes responsáveis pela reforma das prisões foi John Howard (1726-1790). Natural de Londres, Howard viria a contribuir para um novo ideal prisional, com enfoque na construção de instalações e tratamento prisional adequado ao cumprimento da pena privativa da liberdade. Por coincidência, ou talvez não, o facto de ter sido feito prisioneiro por corsários franceses, na região da Bretanha (França), quando tentava chegar a Lisboa, para ajudar as vítimas do terramoto de 1755, e de ter experienciado os suplícios do cárcere em terras gaulesas, pode ter tido contributo decisivo no seu ‘iluminismo prisional’ e dado origem a um movimento que não mais pararia de arregimentar seguidores por toda a parte, “Não faltou, é certo, a reacção dos misoneístas; mas o grito das velhas escolas foi suffocado.” (Matta, 1911: 27).

Pouco tempo após a sua libertação, regressou a Inglaterra onde foi nomeado sheriff de Bedfordshire (1773). Logo tomou em mãos a função de examinar as instituições de ajuda aos pobres e as prisões deste condado, tendo ficado chocado com o que nestas presenciou. Mas se pensava que o que ali sucedia era caso único, cedo percebeu que tal era cenário comum nos restantes cárceres ingleses e do País de Gales, quando a estes decidiu encetar visitas de trabalho, de modo a descobrir soluções e boas práticas de tratamento prisional para aplicar no seu condado. Nestas foi autorizado a examinar as condições das celas e câmaras de tortura, a conversar com os carcereiros e com os próprios presos. Todavia, pouco adiantou, pois verificou que também nestas a negligência era prática dominante.

67 De acordo com Trigueiros (2000), de tal forma tiveram repercussões as ideias de Beccaria no continente europeu que “Catarina II da Rússia (…) ordenou em 1767 a elaboração de um novo código criminal; Pedro Leopoldo da Toscana (…) em 1786 publicou um édito relativo à reforma da legislação criminal, e José II da Áustria (…) em 1785 publicou um novo código penal mais humano que o anterior.” (p. 332, nota n.º 2 relativa ao capítulo V).

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Entre outras disfuncionalidades, tomou conhecimento que os carcereiros, responsáveis pela guarda dos prisioneiros, não recebiam qualquer salário, vivendo à custa de taxas pagas por estes, como garantia de comida e de acomodação, entre outras regalias. Face ao regime em vigor, constatou as mais cruéis arbitrariedades de tratamento relativamente aos que podiam pagar e aos que não podiam. Sobre estes últimos, verificou que mesmo após decisão do tribunal declarando a sua soltura, esta, por norma, só se efetivava quando liquidada a respetiva taxa de libertação, continuando detidos e sob arbítrio do carcereiro, caso tal não sucedesse (Clear, Cole e Reisig, 2013).

Recusando-se a aceitar as condições deploráveis em que se encontravam as prisões e a que eram sujeitos os reclusos, criticou o facto de estes serem duplamente sujeitos a condenação, não só devido ao enorme sofrimento causado pela privação da liberdade, como também às terríveis condições de vida na prisão. Sobre estas destacou o amontoado de pessoas que encontrou em espaços reduzidos, a inexistência de separação por sexo, idade e tipo de crime, o que originava situações de insegurança, promiscuidade e abusos de toda a espécie. Ademais, presenciou, também, problemas de saúde relacionados com a falta de alimentação, água potável, higiene, ventilação (impedindo a renovação do ar), causando um ambiente fétido e insalubre favorável à propagação de doenças, como o tifo,68 que, com frequência, se alastravam às populações no exterior.

Impressionado com todo este cenário, e não tendo encontrado o que desejava, decidiu alargar a sua investigação à Irlanda e Escócia e, de seguida, ao continente europeu, onde, a expensas próprias, visitou praticamente a maioria dos países, incluindo Portugal, alguns mais do que uma vez, entre 1775 e 1790. Com a ressalva das Rasphuis e Spinhuis holandesas, às quais teceu os mais rasgados elogios (Roth, 2014, cf. p. 131), nas restantes presenciou um cenário de “terror, sujidade e doença” (Trigueiros, 2000: 107), em tudo idêntico ao verificado no seu país. No diário de bordo destas suas viagens deu-nos conta no The State of the Prisons in England and Wales: with preliminary observations, and an account of some foreign prisons, publicado em 1777, em que descreveu, ao pormenor, tudo o que testemunhou.

Pelo seu carácter original e inovador à época, a sua obra, que se tornaria um marco da literatura penitenciária, viria a ter enorme influência nos sistemas penal e prisional dos países ocidentais, nomeadamente, e após a independência da América, com o surgimento da primeira penitenciária no Estado da Pensilvânia em 1790, a Walnut Street Jail (Clear, Cole e Reisig,

68 Também conhecido como ‘febre da prisão’ (Stohr e Walsh, 2015), Howard acabaria por o contrair, aquando da sua visita a prisões e hospitais militares russos. A este não resistindo, viria a falecer a 20 de janeiro de 1790, na cidade de Kherson (Crimeia – Ucrânia).

A Educação e Formação de Adultos na Construção de um Saber Profissional Docente em Contexto Prisional

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2013; Roth, 2014), um antigo lugar de detenção colonial; no código penal francês (1791), no qual “se desenvolveu o sentido da prisão penal.” (Santos, 1999: 39); em Portugal no “decreto de 9 de março de 1821 [§2 do art.º 145.º], na Constituição de 1822, e depois na Carta Constitucional de 1826” (Trigueiros, 2000: 294).

A passagem no Parlamento Britânico do Penitentiary Act (1779), que abriria caminho à onda reformista, deveu-se, em grande parte, à publicação da referida obra. Nesta, a título de exemplo das condições deploráveis de encarceramento em Inglaterra e Gales, mencionava Howard que, entre 1773-1775, haviam morrido mais pessoas no interior das prisões do que vítimas de execuções (Roth, 2014). Com enorme impacto na reorganização penitenciária do reino, segundo Clear, Cole e Reisig (2013), através do Penitentiary Act (1779), as principais linhas de intervenção passaram a assentar em quatro pilares:

i. segurança e estruturas sanitárias (separação de prisioneiros, segundo critérios de idade, género, gravidade do crime; o asseio, a limpeza e a higiene de pessoas e instalações, o arejamento dos espaços e a alimentação cuidada deveriam ser a norma a seguir);

ii. inspeção regular (nomeação de carcereiros honrados e com caráter humano, e fiscalização sistemática por parte de magistrados judiciais, numa primeira aproximação às funções do atual juiz de execução de penas);

iii. abolição de encargos para os prisioneiros (financiamento das prisões locais a cargo dos municípios e das prisões estatais pelo Estado, com oferta de trabalho a estes, de modo a diminuir a despesa pública com a sua manutenção);

iv. enfoque na regeneração do indivíduo (o trabalho em comum, mesmo o mais árduo, deveria ser entendido como um meio de recuperação moral e reabilitador; o isolamento celular noturno serviria como meio à reflexão e ao arrependimento; a religião poderia e deveria desempenhar um papel importante na instrução e correção do delinquente).

O papel interventivo de Howard relativamente às prisões e ao tratamento prisional caracterizava-se pelo carácter humanitário e racionalizador que procurou conferir a um sistema penal até então refém de um espírito de vingança retributivo. À sua filantropia atribui-se o nascimento do, ainda, atual modelo penitenciário, que viria a constituir-se no cerne dos regimes judiciários do mundo ocidental, contribuindo com um fim ressocializador para a privação da liberdade.

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Fig. 4 – Visão panótica da penitenciária de Stateville (Illinois)