• Nenhum resultado encontrado

A EDUCAÇÃO E FORMAÇÃO DE ADULTOS (EM CONTEXTO PRISIONAL)

2. A Educação de Adultos em Portugal

2.3. Panorama educativo no Estado Novo – breve crónica

2.3.1. O Plano de Educação Popular (1952-1956)

Num cenário de reconstrução de um continente copiosamente devastado por um conflito bélico à escala mundial e num período onde a emergência do desenvolvimento económico e industrial se encontrava já em ritmo de aceleração, é oficializado, em 1952, um plano de obrigatoriedade escolar para as crianças, bem como de erradicação do analfabetismo entre a população adulta, designado de Plano de Educação Popular, promulgado pelo Decreto-Lei n.º 38968, de 27 de outubro de 1952 e regulamentado pelo Decreto n.º 38969, de 27 de outubro de 1952.151

A necessidade de instilar uma visão de desenvolvimento económico para o país surge da emergência de ter de qualificar profissionalmente a sua força produtiva para o cumprimento de um tal desígnio. Com efeito, o crescimento de setores como o químico, os cabos elétricos, a siderurgia, a construção naval, produção automóvel (Campos, 2011), irão revelar ao mundo o enorme atraso científico-tecnológico que se verificava num Estado que, durante muito tempo, concentrara a tónica do seu progresso na instrução básica elementar e na vertente agrícola. Destarte, e perante a escassez de recursos humanos qualificados «falta[va] cumprir-se

149 Decreto n.º 11731, de 15 de junho de 1926. 150 Decreto n.º 18646, de 19 de julho de 1930.

151 De cuja análise à matéria em questão, e sempre que necessário a uma melhor compreensão das prerrogativas nestes inscritas, individualmente ou a ambos (diplomas) faremos referência.

A Educação e Formação de Adultos na Construção de um Saber Profissional Docente em Contexto Prisional

149

Portugal!», começando pelo princípio. E se «no princípio era o Verbo», a Educação seria a sua bênção. Num (auto)retrato da situação em que se encontrava a nação, (finalmente) admitia o regime a importância do seu desenvolvimento para o progresso do país:

Não podem, de resto, esquecer-se as relações de estreita dependência entre a produtividade do trabalho e a difusão do ensino. É indiscutível que uma boa instrução traz grandes vantagens ao trabalhador: desenvolve as suas faculdades de atenção, apura-lhe o espírito de observação, estimula a sua actividade mental, torna-o mais confiante, mais inteligente e mais apto a aperfeiçoar-se no exercício da profissão. Ela constitui, por isso mesmo, factor importante na produção de riqueza (Preâmbulo, n.º 52, Decreto-Lei n.º 38968, de 27 de outubro, de 1952).

Sob a direção do, então, Subsecretário de Estado da Educação, Henrique Veiga de Macedo, à concretização deste Plano subjaziam ações sancionatórias, visando o seu efetivo cumprimento, nomeadamente no que concernia a obrigatoriedade de frequência escolar pelas crianças, dirigidas aos encarregados de educação, sob a forma de penas pecuniárias ou, no limite, a penas de prisão convertíveis em trabalho em obras públicas (Decreto-Lei n.º 38968, art.º 1.º), para além de, a sua frequência, ser condição indispensável à atribuição do abono de família (art.º 2.º). De igual modo, eram também consideradas medidas punitivas destinadas a indivíduos ou entidades que, em tempo de aulas, admitissem nas suas instalações menores (art.º 3.º). Neste caso, a sua observância cingia-se somente aos três primeiros anos do ensino primário elementar (3ª classe), alargando-se a idade de escolaridade obrigatória (dos 7 aos 13).

Com um reforço de verbas destinadas à educação, mais postos escolares seriam criados. Assim, a posse do diploma de instrução primária passava a ter caráter obrigatório para obtenção de carta de condução (art.º 14.º), autorização de emigração (art.º 15.º), admissão no setor privado a menores de 18 anos (art.º 10.º), na função pública em qualquer idade (art.º 13.º) ou, ainda, no caso dos mancebos incorporados nas forças armadas, de poderem passar à disponibilidade (art.º 16.º). Por fim, não seria olvidada a situação dos estabelecimentos prisionais, em ordem a, e de acordo com o Ministério da Justiça, nestes ser, também, fomentada a instrução da população reclusa (Decreto n.º 38969, art.º 91.º).

Deste modo, e como Leitmotiv a tão ampla e premente iniciativa, não se cansava, Veiga de Macedo, de, insistentemente, apelar à participação dos portugueses a um tal propósito nacional, aludindo aos motivos do seu insucesso como povo e como nação:

Será por mera casualidade que, em todo o mundo, o grande recrutamento dos mendigos se faz entre os analfabetos? Que a taxa da mortalidade infantil atinge mais elevado nível nas regiões da mais baixa cultura? Não será o nosso atraso no campo da instrução que há-de explicar o facto de sermos um dos povos da Europa de menor rendimento individual médio? Será porventura, por simples acaso que cerca

Capítulo II A Educação e Formação de Adultos (em Contexto Prisional)

150

de 70 por cento dos criminosos que expiam penas nas prisões não têm sequer o exame de ensino primário elementar? (Macedo, 1955, citado por Mansos, 2014: 169)

Destarte, um outro enfoque deste diploma, bem como do seu subsequente regulamentar, dirigir-se-á diretamente à população adulta com um novo impulso a ser dado aos cursos de educação de adultos. Profundamente influenciado por estudos internacionais conduzidos, sobre esta matéria, pela UNESCO, surgem, também, como principal referência as conclusões do Seminário Interamericano de Educação de Adultos, realizado no Rio de Janeiro, em 1949 (Mansos, 2014), encontro patrocinado por este organismo em conjunto com a Organização dos Estados Americanos.

Neste pressuposto, e relativamente ao seu público-alvo, ficou estipulado que os programas de ensino seriam os da instrução primária elementar (Decreto n.º 38969, art.º 93.º), sendo que as aulas poderiam funcionar não somente à noite mas também durante o dia, consoante a disponibilidade dos seus frequentadores (art.º 92.º, n.º 2). Seria aumentado em 1 mês a duração do ano letivo – com início a 1 de novembro, este terminaria a 31 de maio, em vez de 30 de abril, sendo os últimos dias do mês de maio destinados à prestação de provas de passagem de ano (art.º 95.º), sendo que, para os exames das 3ª e 4ª classes (maiores de 14 anos), ficaria reservada a primeira quinzena do mês de junho (art.º 108.º).

Outra inovação consistia na obrigação de empresas do setor público e privado com número superior a 20 trabalhadores nos seus quadros, sem a habilitação da 3ª classe e com idade inferior a 35 anos, providenciarem espaços nas suas instalações destinados ao ensino (art.º 98.º), sendo que o seu não cumprimento originaria o pagamento de uma multa, por cada operário impedido de o frequentar (art.º 100.º, n.º 1). Em cumprimento do regime de obrigatoriedade (art.º 99.º), os trabalhadores que se recusassem a assistir às aulas, faltassem sem justificação ou perturbassem o seu normal funcionamento, poderiam ser despedidos sem aviso prévio ou indemnização (art.º 100.º, n.º 2).

No mesmo sentido, ficou preconizada a redução do número de inscritos por curso, i.e., de um mínimo de 30, passaria para 20, de modo a que fosse autorizado o seu funcionamento, para além da frequência média diminuir de 20 para 15, impedindo, assim, a sua suspensão imediata (Preâmbulo, n.º 53, Decreto-Lei n.º 38968 e Decreto n.º 38969, art.º 103.º, n.os 3 e 4). Por fim, três épocas de exame seriam criadas e, em casos especiais, permitida a sua realização fora destas (Preâmbulo, n.º 54, Decreto-Lei n.º 38968 e Decreto n.º 38969, art.º 108.º).

Ainda no âmbito deste audacioso Plano, que, segundo Silva (2010) se constituiu como “uma das mais importantes iniciativas do Estado Novo no domínio educativo” (p. 97), seria

A Educação e Formação de Adultos na Construção de um Saber Profissional Docente em Contexto Prisional

151

enquadrada a “Campanha Nacional de Educação de Adultos” (CNEA). Dirigida a um público- alvo situado entre os 14 e os 35 anos e inicialmente destinada ao período de 1953-1954, viria a ser alargada até 1956 (Decreto-Lei n.º 40011, de 30 de dezembro de 1954). Objetivando ir um pouco mais longe nas temáticas a versar, esta Campanha não se cingiria, somente, a uma incidência na aprendizagem de rudimentos da leitura, da escrita e do cálculo, antes abriria o seu espaço a uma instrução geral alargada a assuntos do quotidiano social, económico, laboral, transmitidos sob a forma de “noções de educação moral e cívica, organização corporativa, previdência social, segurança no trabalho, higiene e defesa da saúde, agricultura e pecuária” (Decreto n.º 38969, art.º 112.º),152 porém, sem nunca descurar o recurso a uma “retórica nacionalista e corporativa correspondente à base ideológica do Estado Novo” (Teodoro, 1999: 233).

Considerando os cursos de educação de adultos como o processo normal de habilitação para obtenção do diploma do ensino elementar e a CNEA um regime excecional e transitório de atingir o mesmo desiderato, destinava-se esta última, sobretudo, a trabalhadores rurais e/ou domésticas (Mansos, 2014) podendo decorrer a sua atividade em quaisquer instalações (públicas ou privadas), bem como horário de funcionamento. Em ambos os casos (cursos EA e CNEA) não existia a obrigatoriedade de os seus responsáveis serem professores do ensino primário oficial – Decreto n.º 38969, art.º 104.º, n.º 1 (cursos EA) e art.º 115.º (CNEA) –, podendo tais funções ser desempenhadas por qualquer pessoa que reunisse competências na área, para além de comprovada idoneidade moral e cívica, à qual era destinada uma gratificação mensal.

Com efeito, e no caso da CNEA, os seus responsáveis, vistos como voluntários de uma cruzada nacional contra o analfabetismo, teriam direito a uma retribuição de 500$00 por cada aluno que obtivesse aprovação no exame da 3ª classe (art.º 118.º, n.º 1), e se, porventura, fossem docentes do ensino oficial, ser-lhes-ia, ainda, atribuída bonificação de meio valor, em termos da sua classificação profissional, “por cada dez analfabetos” que ficassem aprovados em igual exame (art.º 118.º, n.º 2).

Num cenário de luta pela alfabetização do povo português, a CNEA contaria com a colaboração de várias entidades do Estado, nomeadamente os Ministérios do Interior, da Marinha, do Exército, da Economia e das Corporações e Previdência Social, bem como o

152 Sobre conteúdos para exame estabelecidos nos programas do ensino primário elementar para adultos, cf. Teodoro (1999: 234, nota n.º 56), citando “Despacho do Subsecretário de Estado da Educação Nacional, de 27 de março de 1953”, in Despachos de Sua Excelência o Subsecretário de Estado da Educação Nacional Dr. Henrique Veiga de Macedo, Plano de Educação Popular, V, série B – n.º 1, Lisboa, Campanha Nacional de Educação de Adultos, 1953, pp. 18-23.

Capítulo II A Educação e Formação de Adultos (em Contexto Prisional)

152

Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo e a Emissora Nacional de Radiodifusão, para além do Instituto Nacional de Estatística no levantamento e tratamento de informação quantificada sobre este assunto (Decreto n.º 38969, art.os 112.º e 113.º).

Igualmente, seria convocada a sociedade civil a este desígnio e setores como a imprensa escrita, cinema, teatro, rádio, agremiações desportivas, corporações industriais, comerciais, agrícolas, estabelecimentos de ensino particulares, párocos, bem como agentes, das mais diversas áreas, chamados a dar o seu contributo (art.º 114.º), para além de organismos oficiais de propaganda e organizações de massas do regime, tais como as Mocidade e Legião Portuguesas.

Numa iniciativa novas oportunidades à moda dos anos 50, «Todos unidos contra o analfabetismo», bem poderia servir de mote a uma Campanha, que, amplamente difundida à escala nacional, ou não estivessem as forças do regime diretamente envolvidas, viria a contar com as seguintes participações:

i. Cinema – seriam realizados um total de 27 filmes e documentários (Teodoro, 1999, citando Neves, 1997), tendo como protagonistas alguns dos mais populares atores da altura, como por exemplo Vasco Santana, que participou em 6 curtas-metragens da série Zé Analfabeto (“Confissões de um Analfabeto”; “O Zé Analfabeto e o Trânsito”; “O Zé já não é Analfabeto”; “O Zé Analfabeto nos CTT”; “O Zé Analfabeto faz Exame”; “O Zé Analfabeto na Vida Corrente”);153

ii. Teatro – referem-se um conjunto de peças escritas, levadas à cena em dezenas de concelhos do país, como O Livro, de Fernando Amado; Um Chapéu que lhe sirva, de José António Ribeiro; e, ainda, arranjos dos Auto da Visitação; Auto do Bom Pastor; Auto do Fidalgo Aprendiz; de Afonso Lopes Vieira, António Manuel Couto Viana e D. Francisco Manuel de Melo, respetivamente (idem);

iii. Rádio – espaços dedicados à CNEA transmitiam esclarecimentos e informações várias, servindo, também, como recurso pedagógico, destes sobressaindo as «cartas falantes» (gravações de lições, dedicadas ao aperfeiçoamento do português, bem como noções básicas de higiene e saúde) destinadas a auxiliar os educadores de adultos na sua tarefa de alfabetização, para além de incitarem à participação das pessoas na luta contra o analfabetismo. Com efeito, e visando um tal desiderato, programas como A Campanha em

153 Ainda a este respeito, Mansos (2014), citando Barcoso (2002), refere um total de 38 filmes, portugueses e estrangeiros, realizados no âmbito da CNEA, versando as mais variadas temáticas como o analfabetismo, utilidade da leitura, higiene e defesa da saúde, história e geografia de Portugal.

A Educação e Formação de Adultos na Construção de um Saber Profissional Docente em Contexto Prisional

153

Marcha (consistindo em diálogos culturais e educativos acompanhados de trechos de literatura nacional); Teatro Radiofónico (procurando incutir valores cívicos, morais e culturais); Consultório da Campanha (espaço em que se respondia às dúvidas dos ouvintes acerca desta iniciativa); eram semanalmente difundidos pela Emissora Nacional, para além das habituais rubricas da rádio, como Domingo Sonoro, Programa da Manhã, Serões para Trabalhadores ou Noticiário, passarem, também, a conter momentos dedicados à CNEA (Mansos, 2014);

iv. Jornais – o jornal A Campanha, com uma tiragem de 80.000 exemplares, gratuitamente distribuído aos alunos (Teodoro, 1999), totalizaria 37 números, de periodicidade variável, terminando em dezembro de 1956 com o fim da CNEA (Mansos, 2014). Com um triplo objetivo, serviu de manual de leitura aos alfabetizandos, bem como de orientação aos alfabetizadores, nomeadamente na sua metodologia e doutrina, para além de um precioso meio difusor de discursos oficiais e realizações desta iniciativa pelo país. Refira-se, ainda, o jornal de parede A Campanha em marcha, afixado em locais públicos (casas do povo e de pescadores; associações culturais, recreativas e corporativas; fábricas; estações de caminhos-de-ferro; CTTs; adros de igrejas; mercados), com periodicidade mensal e com a função de publicitar os objetivos da CNEA, simultaneamente apelando à participação do público em geral (idem);

v. Bibliotecas – salienta-se a criação de 100 bibliotecas itinerantes, em 1953, contendo, cada uma, 44 volumes. Em finais de 1955 mais 300 bibliotecas, com 25.000 livros, seriam organizadas. De igual modo, em 1954, seriam, também, criadas 35 bibliotecas em escolas primárias de diversos distritos do país, sendo nestas distribuídos, cerca de, 30.000 livros e 10.000 revistas e folhetos (idem). No âmbito da CNEA seriam, ainda, editados uma série de publicações de cariz cultural, recreativo e educativo, designadas de Colecção Educativa (cf. p. 181, nota n.º 327). No seu conjunto e até dezembro de 1956, publicar-se-iam 54 títulos, distribuídos gratuitamente pelas bibliotecas do país ou vendidos ao público a um preço unitário de 5$00, sendo que, até ao seu termo, em 1966, mais 32 títulos foram, ainda, produzidos (Teodoro, 1999, citando Neves, 1997).

Em jeito de conclusão, somos a referir que, o Plano de Educação Popular, pese embora não ter atingido a erradicação do analfabetismo, seu principal objetivo, os resultados por este alcançados, tendo em conta a conjuntura e as circunstâncias políticas, económicas, sociais e culturais, que mediaram a sua implementação, se podem considerar de globalmente positivos.

Capítulo II A Educação e Formação de Adultos (em Contexto Prisional)

154

A esta aceção contribuiu o facto de verificarmos que, relativamente ao seu primeiro grande desígnio, ‘cumprimento da obrigatoriedade escolar’, em 1955, a taxa de cobertura de crianças entre os 7-11 anos, atingiu, pela primeira vez em Portugal, os 99%, registando-se um total de 8891 crianças, correspondente a um valor residual de 1%, a resistirem, ainda, à sua frequência (Teodoro, 1999).

No que concerne o segundo grande objetivo, ‘eliminação do analfabetismo’, mormente entre os adultos, os números obtidos, embora não alcançada a sua totalidade, não deixam de ser considerados satisfatórios, passando de 27.000 inscritos no ano letivo de 1951/52, para 257.200 em 1955/56, ou seja, praticamente decuplicou este valor.154 Todavia, e apesar do boom verificado no número de inscrições não se ter feito acompanhar de igual importância em termos de aprovações nos exames das 3ª e 4ª classes, mesmo assim este valor registou um aumento significativo, quando comparado com anos letivos anteriores, a saber: em 1951/52 tinham sido aprovados 3702 adultos; no ano letivo seguinte, 23.863; em 1953/54 foram 72.418; em 1954/55 este número aumentou para 80.638; no final do programa (1955/56), seriam contabilizadas 66.658 aprovações (Teodoro, 1999).

Fig. 6 – 25 de Abril de 1974