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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

3. Idade Moderna

3.1. Mudar de vida – a (des)ilusão das cidades

Tal como referimos, com o aproximar do fim da Idade Média verifica-se um progressivo abandono das terras, por parte de um sem número de camponeses que começam a afluir às

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cidades em busca de trabalho (Roberts, 2006). Várias são as razões apontadas para tal chamamento. Com efeito, se durante o período feudal era expectável que o monarca, nomeadamente num mau ano agrícola, repartisse os víveres pelos seus súbditos impedindo que estes morressem à fome, com o advento da Idade Moderna este tipo de consciência social ameaça esfumar-se, pois o acúmulo de capital passa a ser perspetivado como fundamental para o progresso económico dos Estados.

O crescimento das cidades e o desenvolvimento da produção manufatureira necessitavam, cada vez mais, de mão de obra capaz de fazer face às demandas dos mercados. O aperfeiçoamento das vias de comunicação entre os feudos, com o risco de transporte de pessoas e mercadorias a diminuir substancialmente, forçavam o mundo medievo a sair da sua zona de conforto.

Fruto de uma maior abertura das sociedades europeias, será num contexto de forte expansionismo social e económico que o século XV irá assistir a que trocas comerciais entre os Estados se intensifiquem. Com novas rotas mercantis a serem trilhadas, verificar-se-á um maior desenvolvimento de transações de bens e mercadorias, abrindo novos mundos a uma economia medieval de cariz subsistente, permitindo-lhe a ascensão a uma mercantil em processo de afirmação. Com efeito, vários foram os fatores que contribuíram para tal conjuntura, dos quais, resumidamente, se destacam os seguintes:

i. A pacificação de alguns territórios europeus, sobretudo o fim da ‘Guerra dos Cem Anos’ em 1453, entre os atuais Estados de Inglaterra e França;

ii. O crescente aumento da população europeia (relembra-se que, durante o séc. XIV, mais de 1/

3 havia sido dizimada por uma pandemia de peste bubónica, que ficou conhecida como ‘Peste Negra’), (Caldeira, 2009);50

iii. As descobertas de novos territórios além-mar e o aumento das transações comerciais com os continentes africano, asiático e americano a provocarem uma maior procura de produtos, pressionando o desenvolvimento da atividade manufatureira em algumas regiões.51

Contudo, e pese embora o desenvolvimento económico verificado, alguns Estados viam-se impotentes para responder aos anseios duma população em crescendo, tal como refém de oscilações da oferta e da procura do mercado laboral. Para muitos migrantes o sonho

50 Cf. História Universal Comparada. (2000). (Título original: The Kingfisher History Encyclopedia). Dinorah Ferreira e Ana Dias (trad.). Manuel Martins (rev.). Lisboa: Correio da Manhã; Loyn, Henry (org.). (1990). Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 51 Matéria sobre a qual se referirão os ideólogos Karl Marx e Friedrich Engels na sua obra, A Ideologia Alemã (veremos a seguir).

A Educação e Formação de Adultos na Construção de um Saber Profissional Docente em Contexto Prisional

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depressa se tornaria num pesadelo. Cansados dos caprichos da Natureza perante um bom/mau ano agrícola, fartos da exploração dos seus antigos senhores ou expropriados das suas terras por estes, trocaram a vida no campo pela das cidades em busca de um sonho. Todavia, pouco mais que dotados de uma experiência campestre, a sua adaptação a um novo paradigma de trabalho e estilo de vida, no qual imperavam indicadores de produção laboral e reprodução da riqueza, fracassava. Com um registo de miséria e desespero, a sobrevivência consistia, muitas vezes, no recurso a práticas pouco condizentes com os valores da moral e do trabalho vigentes nas sociedades de então, originando forte resposta criminal e sem precedentes por parte dos governos. A este respeito, referem-nos Stohr e Walsh (2015)

Feudalism, and the order it imposed, was disintegrating; wars (…) and intermittent plagues did claim thousands of lives, but populations were stabilizing and increasing and there were not enough jobs, housing, or food for the poor. As the cities became more urbanized and as more and more poor people congregated in them, governmental entities responded in an increasingly severe fashion to the poor’s demands for resources (Irwin, 1985). These responses were manifested in the harsh repression of dissent, increased use of death sentences and other punishments as deterrence and spectacle, the increased use of jailing to guarantee the appearance of the accused at trial, the development of poorhouses or bridewells52 (p. 21)

No que ao nosso trabalho importa, relembramos que a uma economia em ritmo acelerado, todos eram chamados a produzir. Neste contexto, não existia lugar para a caridade. A necessidade obrigava ao engenho e, por isso, um dos recursos implementados consistia no encarceramento compulsivo de uma enorme camada da população forçando-a ao trabalho, população essa que Marx e Engels (2001) irão designar como “Lumpenproletariat” (p. 15).53 Segundo estes autores, o aprisionamento forçado surge pela necessidade de subjugar setores marginalizados da sociedade sem qualquer tipo de complacência, obrigando-os a contribuir para uma economia capitalista em crescendo e carente de força de trabalho. A título de exemplo, descrevem-nos uma situação ocorrida em Inglaterra:

Os vagabundos eram tantos que o rei Henrique VIII, da Inglaterra, entre outros, mandou enforcar 72.000 deles, e foi preciso uma extrema miséria para obrigá-los a trabalhar e isso com enormes dificuldades e após uma longa resistência. A rápida prosperidade das manufaturas, sobretudo na Inglaterra, absorveu-os progressivamente. (p. 65)54

52 Sublinhado nosso. Instituições inglesas que, na sua génese, congregavam em si princípios de «casas de assistência aos pobres», «casas de trabalho» e «instituições penais».

53 Termo introduzido em A Ideologia Alemã – originalmente escrita entre os anos 1845/6, sendo publicada, pela primeira vez, cerca de, um século depois (1932), pelo Instituto Marx-Engels de Moscovo –, de acordo com o qual estes autores consideram, entre outros, vagabundos, ladrões, ex-presidiários ou fugidos da justiça, donos de bordéis, prostitutas, mendicantes, constituindo a camada da população situada socialmente abaixo do proletariado, do ponto de vista das condições de vida e de trabalho, não apenas em situação de miséria extrema ou desvinculada da produção social, mas, e sobretudo, desprovida de uma consciência política e de classe.

54 Não será objetivo do presente trabalho, por razões do seu escopo de investigação, enveredar por uma análise de natureza político-ideológica às relações do homem com o mundo que o rodeia, mas destacar algumas das referências históricas inscritas nesta obra, nomeadamente, e in casu, o período pós-medievo e as transformações sociais que lhe sucederam, das quais sobressaem o surgimento das primeiras indústrias

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Ainda sobre esta temática, Marx e Engels (2001) defendendo a pesquisa da história material dos homens, como vetor fundamental à compreensão das relações entre si e com o meio natural, sustentam que o poderio económico de alguns Estados europeus, os quais, atingiram um desenvolvimento assinalável, nomeadamente a partir do período feudal, se baseou na sua capacidade de produção, no seu modo de organização do trabalho e nas dinâmicas de fluxo interno e externo das suas transações comerciais, fortalecendo uns em detrimento de outros. Referem, por isso, que “As relações entre as diferentes nações dependem do estágio de desenvolvimento em que cada uma delas se encontra, no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e às relações internas.” (p. 11).

Deste modo, e face à incapacidade de todos acompanharem o ritmo de desenvolvimento imposto, nos séculos XVI e XVII, a pobreza vai-se instalando, pelo continente europeu, principalmente nos grandes centros. De facto, perante a quantidade existente de mão de obra barata e das necessidades de produção, os proprietários das unidades manufatureiras não se coibiam de (des)contratar indiscriminadamente, originando situações de precariedade e de exploração laboral, situações essas a que a Igreja tentava acudir, embora sem o sucesso de outros tempos, tal como veremos de seguida.