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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

2. Idade Média

2.3. O processo inquisitivo

Segundo Mirabete (2001) o Direito Canónico, também denominado de “Direito Penal da Igreja” (p. 37), que se estendeu, nomeadamente, entre as épocas “dos direitos romano e germânico e a do direito moderno” (idem) assentou os seus princípios numa base teológico- legal sólida afirmando a igualdade jurídica entre os homens. Enfatizando o aspeto subjetivo do crime e a assunção da responsabilidade penal, encontram-se entre as suas finalidades a mitigação das penas e a reabilitação do indivíduo “pelo arrependimento e purgação da culpa” (idem).

A este respeito, advoga Santos (2011) que, com a valorização do elemento intencional do ato, a Igreja passou a diferenciar pecado de crime, considerando, este último, como ofensa à vontade de Deus e impondo à justiça penal o instituto da expiação e da penitência. Por esta via, a repressão seria exercida em nome de Deus, consistindo o seu objetivo na recuperação do criminoso pelo arrependimento. Por conseguinte, enquanto o pecado representava a morte da alma, a pena surgia como a sua redenção e regeneração.

35 Religioso italiano do séc. XII foi um monge camaldulense (monge eremita da congregação fundada por S. Romualdo, ordem religiosa que segue de perto os cânones beneditinos num ideal de vida cenobítico-contemplativa). Graciano de Bolonha foi, também, professor de Direito Canónico em Bolonha, sendo considerado o fundador da jurisprudência canónica. A sua atividade eclesiástica alargou-se ainda à primeira compilação metódica das «Decretais dos Papas», também conhecida por ‘Decreto de Graciano’. Cf. Graciano (religioso). In Artigos de apoio Infopédia [online]. Porto: Porto Editora, 2003-2015. Disponível em: <https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/82201> [acesso em: 2 mai. 2015].

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Noronha (1997) salienta que, em contraponto ao processo penal germânico, a Igreja opunha-se, em tese, à influência da força como prova judiciária, somente a compreendendo “com o fim superior da salvação da alma do condenado” (p. 23), tendo por objetivo contribuir para a redução das práticas brutais destes povos, banindo os ordálios e os duelos judiciários, e acentuando o aspeto subjetivo do crime e da responsabilidade penal.

O próprio Clero, que também tomava parte em semelhantes demonstrações judiciais, após o IV Concílio de Latrão (1215)36 ficou proibido de o continuar a fazer, quer na qualidade de legitimador, quer na qualidade de testemunha (Lopes, 2011). A sua participação em tais exercícios era considerada de sujeição de um regime legítimo consistente e em concordância com o postulado do catolicismo, a um modelo de justiça incivilizado, de cariz costumário, infundado sob o ponto de vista jurídico-legal, que, no limite, colocava em risco a autoridade eclesiástica.

De modo a lidar com movimentos contra a sua tomada do poder, os quais, ora punham em causa os textos escritos, ora contestavam o modus vivendi do Clero (considerado desregrado e dado a escândalos), a Igreja conseguiu que os Estados estabelecessem, como uma das suas principais prerrogativas, o recurso à Inquisição.37 Com efeito, de modo a manter a pureza da fé dos cristãos, mas, sobretudo, a sobrevivência da própria religião católica e simultaneamente dos Estados que a acolhiam sob proteção de Roma, considera Lopes (2011) ser este não somente “um problema espiritual, mas político, uma subversão não apenas contra as autoridades religiosas, mas contra o próprio braço secular, o rei, os príncipes, que eram senhores cristãos.” (p. 92).

Assim referem Talarico e Linke (2010) que, o crescimento das heresias e a rejeição da fé católica, nomeadamente ao longo dos sécs. XI e XII, se haviam tornado numa realidade, cada vez mais, difícil de disfarçar. Igrejas são profanadas e altares queimados. Um pouco por toda a parte vão surgindo desvios à religião instituída, contribuindo para um clima de desordem e de insegurança social. O movimento herético ia conseguindo relativo sucesso entre os feudos. O povo, fiel à sua ortodoxia, revoltava-se contra o Clero originando lutas cruéis e ameaçando o bem-estar público (idem). A Igreja vendo a sua autoridade ameaçada, recorria ao seu poder de

36 Sob a égide do Papa Inocêncio III, no IV Concílio de Latrão foram proclamados aos fiéis, entre outros preceitos: os sete sacramentos (batismo, crisma, confissão, eucaristia, ordenação sacerdotal, matrimónio e extrema-unção); o princípio da transubstanciação (doutrina clerical que defende a transformação da essência do pão e do vinho no corpo e sangue de Jesus Cristo, aquando da celebração da Eucaristia); a obrigatoriedade da confissão dos pecados a um ministro da Igreja; o cumprimento anual de penitência.

37 Por esta altura, em Albi e Lyon (cidades situadas a sul do atual território francês), cristãos revoltosos, face a um continuado acumulo de riqueza e de bens materiais, apelavam a que o Clero regressasse às suas origens cristãs e abdicasse de tais práticas. No entanto, considerando este ato uma afronta ao exercício do seu poder, a resposta da Igreja não se fez esperar. Perante tal insubmissão, entre 1208 e 1229, milhares de hereges são mortos e dois anos depois é instituída a Inquisição (Fragoso, 1977, cf. p. 29).

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excomunhão e, no limite, entregava os blasfemos ao poder secular incumbindo este da produção de uma sentença final, o que, naturalmente, poderia resultar na sua condenação à morte, sem que daí adviesse qualquer prática de infração aos princípios basilares do Direito Canónico. Segundo Naspolini (2006)

Dentre outros fatores, o fato de a Igreja possuir enorme influência sobre o poder temporal e necessitar do auxílio do Estado para combater as heresias, esse tipo de crime passou a ser considerado crime de “lesa-majestade”, razão pela qual a competência para o seu julgamento foi estendida aos Tribunais Seculares. (p. 189)

Num cenário de incertezas e de afrontas ao poder eclesiástico surgem, com o Papa Inocêncio III (1198-1216), as primeiras perseguições aos hereges. Pese embora numa fase preliminar, este procedimento somente se iniciar após uma denúncia formal,38 com Gregório IX (1227-1241) é fundada a Santa Inquisição, através da carta pontifícia Excommunicamus (1231) e cedo é tal modo de atuação substituído pela inquisitio, uma das fases mais temidas de inquirição, conduzida, sob forma escrita e secretamente, finda a qual se proferia a sentença. Segundo Tourinho Filho (2010) “Baseado no interesse superior de defender a fé, fomentavam- se a indignidade e a covardia” (p. 113), promovendo-se a denúncia anónima, como ato idóneo suficientemente consistente para a desencadear.

De acordo com Lopes (2011), os próprios bispos eram inquisidores por excelência. De entre as suas responsabilidades, no âmbito da superintendência da legislação canónica, incluía- se a aplicação de sanções penais aos prevaricadores. Nas suas dioceses demandavam pela comunidade, indagando se afrontas à autoridade religiosa haviam sido cometidas. Caso tal se tivesse verificado, de imediato instauravam o respetivo procedimento inquisitorial. Num pavor quotidiano em que vivia a população, todos eram obrigados, sob pena de heresia e excomunhão, a denunciar um pecado, mesmo se o visado fosse um familiar (irmão, esposa, pai, avô, filho,…). Os depoimentos das testemunhas eram recolhidos confidencialmente, procedendo os juízes ex officio (por lei) de forma sigilosa. No decurso do processo os indiciados desconheciam que, haviam sido alvo de denúncia e que estavam a ser investigados. Somente o descobririam algum tempo mais tarde, quando detidos para interrogatório. Aqui chegados “Nenhuma garantia era dada ao acusado. (…) Não se permitia defesa, sob a alegação de que esta poderia criar obstáculos na descoberta da verdade…” (Tourinho Filho, 2010: 113).

38 De acordo com Tourinho Filho (2010) “Até o século XII, o processo era de tipo acusatório: não havia juízo sem acusação. O acusador devia apresentar aos Bispos, Arcebispos ou Oficiais encarregados de exercer a função jurisdicional a acusação por escrito e oferecer as respetivas provas.” (p. 113)

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A prática da tortura nas prisões foi também um expediente de enorme relevância no decurso do processo inquisitório. Partia-se do princípio que uma medida já praticada, pelo Direito Comum, dirigida a ladrões e assassinos, poderia, também, ser aplicada a hereges. Com efeito, tal viria a ser autorizado, pelo Papa Inocêncio IV, que na bula Ad Extirpanda (1252), a defende como meio legítimo de procura da verdade, partindo do princípio que, caso o acusado fosse inocente, seria capaz de resistir à tortura, provando continuar a ser merecedor de confiança divina (Lopes, 2011).

A medida sancionatória de encarceramento tinha-se tornado uma realidade. A partir do momento em que davam entrada na prisão, poucos eram os que de lá saíam, pelo menos com vida. Na prática, o acusado era (por norma) condenado. Ainda segundo este autor, a solução encontrada não foi a da sua abolição, pois o risco era demasiado elevado e “o que estava em jogo era a sobrevivência da Cristandade e do poder que a unia” (p. 93).

Na verdade, depois de ver confirmado o seu vigor e influência no velho continente, nomeadamente no combate impiedoso que travou contra os «movimentos heréticos», a Inquisição acabaria por atravessar um período de alguma decadência, quer porque desacreditada pelos excessos cometidos, quer, porque, pela política de alianças, que em muitos casos significaram a sua submissão aos senhores feudais, o seu poder foi diminuindo à medida que se aproximava o final da época medieval, para se voltar a reacender durante a época moderna, designadamente no séc. XVI, em resposta à Reforma Protestante, iniciada por Martinho Lutero em 1517,39 num movimento que ficou conhecido como Contrarreforma Católica. Todavia, tal não significaria a sua total perda de poder e prestígio, pois a Igreja haveria, ainda, de ocupar posição de relevo no quadro institucional europeu, designadamente como apêndice dos Estados monárquicos centralizados e absolutos, como veio a suceder nas Penínsulas Itálica e Ibérica nos sécs. XVI a XVIII (Lopes, 2011, cf. pp. 90-94).40

Relativamente a Portugal, Santos (1999), traçando-nos um retrato fiel ao sistema prisional do séc. XIX e à importância que este adquiriu no regime penal à época, revela-nos que somente a 29 de julho de 1833, por decreto do então Ministro da Justiça, é que foram oficialmente extintos os cárceres e aljubes eclesiásticos (p. 35, cf. nota n.º 11).41

39 A este assunto voltaremos na secção seguinte.

40 Relativamente à Inquisição, cumpre-nos referir que a organização temporal, a que procedemos na organização deste capítulo, não significa que a influência ou repercussões sistémicas, que a sua atuação teve para o desenvolvimento da história das sociedades europeias e respetivas colónias imperiais, a confinem a um determinado período cronológico. Com efeito, o seu contributo, nesta matéria, evidenciar-se-á, bem para além da época medieval, designadamente, e em alguns Estados, até quadrantes temporais que adentram a Idade Contemporânea. Refira-se, a propósito, que em Portugal somente em 1821 é que foi decretada a sua extinção, com a abolição do Tribunal do Santo Ofício, pelas Cortes Gerais Constituintes.

41 In A Sombra e a Luz: as prisões do liberalismo, Maria José Moutinho Santos remete-nos para uma análise, à Cadeia da Relação do Porto (atual sede do Centro Português de Fotografia), destacando os seus protagonistas (reclusos, carcereiros, juízes), as normas disciplinares em

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Fig. 2 – The Usual Punishments in Germany during the Middle Ages