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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

1. Pena – uma aproximação ao conceito

1.1. Matriz Penal na Antiguidade

Hodiernamente a privação da liberdade é, decerto, um dos principais meios sancionatórios a um ato criminoso. Porém, nem sempre foi esse o julgamento que conduziu o espírito de justiça, ao longo dos tempos, designadamente desde as formas mais brutais de vingança ao atual sistema penal, comummente representado na ‘pena de prisão’. Com efeito, os primeiros assomos das civilizações no planeta justificavam-se pela necessidade de garantia de uma proteção pessoal ou da comunidade a que se pertencia, como motivo mais do que plausível de, a uma ofensa, se seguir uma resposta individual ou coletiva, dirigida ao agressor ou, até mesmo, ao grupo a que este pertencia, sendo aspeto de somenos importância a preocupação com a proporção do ato retaliatório ou, inclusive, da sua justeza.

De uma forma simples e direta, a questão central residia, não no ‘Porquê?’, mas sim no ‘Quem foi?’.

Segundo Noronha (1997), a tomada de atitude a ter, por parte do lesado, consistia na legitimação da vingança aplicada de forma arbitrária sobre o infrator, sem cuidar de uma análise objetiva e equitativa do ato, bem como da sua reparação. Remete-nos, assim, este autor para uma visão sobre a legitimidade do direito de vingança, enquadrada num conjunto de represálias sobre o ofensor, tendo em conta que, se por um lado, a um crime cometido no interior de uma tribo, a pena normalmente aplicada consistia, não na sua morte, mas na expulsão (também conhecida por «expulsão da paz»), condenando este a viver isolado e afastado dos restantes membros, por outro, conduzia tal procedimento, na maior parte dos casos, a igual desfecho, quer por este ter de enfrentar as adversidades do meio sozinho, quer porque, numa tal condição, facilmente caía vítima de ataques de grupos rivais.

Ademais, um crime cometido contra um membro de outro grupo/tribo era, geralmente, objeto de uma reação em proporção, por vezes, desmesurada nos meios e/ou na forma. Poderia, muito bem, acontecer que, não somente o agressor fosse o alvo do ajuste de contas, bem como toda a sua família e/ou a comunidade a que pertencia por via de ferozes ataques, originando consequentes contra-ataques, a “grupos e famílias, que, assim, se iam debilitando, enfraquecendo e extinguindo.” (idem, p. 21).

Por conseguinte, de modo a conter atos de vingança maioritariamente arbitrários e desproporcionados que, na sua grande maioria, para além de pouco ou nada resolverem, redundavam numa forte diminuição, ou mesmo aniquilação, de populações inteiras, passou a ser adotado um princípio de resposta sancionatória, visando regular as partes envolvidas no

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processo e que assentou num conjunto de normas regulamentares. Conhecido como ‘Lei de Talião’, basear-se-ia tal princípio numa noção retributiva do «olho por olho, dente por dente» ou “penas-espelhos” (Correia, 1977: 64), consistindo este, sobretudo, num procedimento adequado à ofensa, de acordo com o qual a reação não poderia suplantar a ação.

Será, desta forma, que a ‘Lei de Talião’ surgirá inicialmente inscrita em vários regulamentos jurídicos de algumas civilizações, destacando-se entre estes: Código de Hamurabi (i), Pentateuco (ii), Código de Manu (iii), Lei das XII Tábuas (iv), verificando-se, ainda, a sua reminiscência por entre legislações penais de diversos Estados na Idade Contemporânea. Atentemos, por isso, em algumas das suas configurações:11

i. Segundo Vieira (2011), o Código de Hamurabi, pode ser classificado como um dos documentos jurídicos mais antigos da história da Humanidade. Encontra-se talhado em rocha, na qual se dispõem 46 colunas de escrita cuneiforme acádica, com 282 leis em 3600 linhas. Os primeiros indícios da ‘Lei de Talião’ constam deste código, ao conceder tratamento para crimes e delitos baseado no princípio da equivalência da ofensa à reparação do crime, como, por exemplo, nos §§ 196, 197, 229 e 230 (Noronha, 1997). Na qualidade de um dos mais antigos conjuntos de leis escritas, o Código de Hamurabi apresenta as regras e as sanções para campos jurídicos diversos, nomeadamente civil, penal, laboral e comercial, uma vez que legisla sobre contratos de empréstimos, de mediação, de comissão, acerca da agricultura, pecuária, propriedade, roubo, injúria, difamação ou até mesmo de homicídio. Considerado uma das fontes primárias do Direito, objetivou este tratado não apenas proteger e impedir a opressão do mais fraco pelo mais forte, sendo que todo aquele que se sentisse subjugado era estimulado a procurar a resolução da sua situação pela via judicial, designadamente na figura do rei (idem).

ii. O Pentateuco é composto pelos cinco primeiros livros da Bíblia de Moisés (Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio). Também conhecido por Direito Mosaico ou Lei de Moisés, significava para os hebreus a sua própria Constituição – a «Tora» (termo hebraico atribuído a ‘Lei’) –, cuja abrangência se estendia desde as simples relações interpessoais, cerimoniais ou rituais religiosos, até às mais complexas matérias judiciais. Segundo Noronha (1997), o princípio de vingança, fundamentado na justa retribuição pela ofensa

11 Sobre a importância do Talião para a composição dos regulamentos penais de algumas nações ao longo da História, prestemos atenção às palavras de Cavalcante (2002): “Toda a legislação antiga tem ecos da Lei de Talião, até mesmo em códigos penais dos séculos XIX e XX, como, por exemplo, o código espanhol de 1870, em que se estabelece que ao juiz penal que impunha sentença injusta em ação penal, se houvesse iniciado a execução, era imposta a mesma pena que houvera pronunciado.” (para. 11)

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recebida, surge nos livros do “Êxodo” (23 a 25) e “Levítico” (17 a 21). No Pentateuco encontramos, também, as grandes linhas da fundação do reino de Deus na terra, da formação do mundo e da vida do povo judaico. Com efeito, e pese embora se apresentar dividido nos cinco primeiros livros da Bíblia, constitui, na realidade, uma unidade essencial à legislação hebraica, pois assenta, sobretudo, numa interligação homogênea entre a história da Humanidade, a organização das sociedades e a lei de Deus.

iii. Segundo a lenda, Sarasvati foi a primeira mulher, criada por Brahma (senhor das Criaturas) a partir da sua própria substância, tendo-a desposado e do casamento nascido Manu (‘homem’ em Sânscrito), de acordo com a mitologia Hindu, o pai da Humanidade. Personagem mítico constantemente citado e considerado como o sumo legislador (Vieira, 2011), no seu Código, que compreende, sobretudo, uma primeira organização religiosa e política da sociedade, são estabelecidos como principais valores a Justiça, a Verdade e o Respeito. Os «Livros Oitavo e Nono» são os que maior interesse representam para a área jurídica, pois contêm normas de direito processual, bem como de organização judiciária. Com efeito, o “Livro Oitavo” regulamenta as leis civis e criminais e o “Livro Nono” obrigações do marido e da mulher. Refira-se, por fim, que a data da sua promulgação não é precisa, calcula-se que se situe entre os anos 1300 a 800 a.C. (idem).

iv. De acordo com Giordani (1996), no início da República as leis eram guardadas em segredo pelos pontífices e pelos patrícios (considerados como descendentes dos fundadores da Antiga Roma – grandes proprietários de terras, gado e escravos), sendo executadas com especial severidade contra os plebeus. Contudo, insatisfeitos com a interpretação dos costumes feita pelos pontífices e pelos magistrados patrícios, e ansiosos por os verem escritos e divulgados, de modo a que pudessem conhecer a lei e não serem apanhados de surpresa na sua execução, estes (plebeus) teriam defendido (462 a.C.), por intermédio de Terentilius Arsa (tribuno da plebe), a nomeação de uma comissão para efetuar a sua redação. Destarte, e segundo Giordani (1996), em 451 a.C., foi enviada uma missão à Grécia para analisar o seu sistema legal, em particular as leis de Sólon. No seguimento de tal observação, um decenvirato (grupo de dez homens) foi designado para preparar um projeto do código, que viria a ser inscrito num conjunto de dez tábuas exibidas no Forum Romano, de modo a que todos pudessem ter conhecimento da sua existência. A estas seriam, pouco tempo depois, adicionadas as duas últimas. Na verdade, a Lei das XII Tábuas, também conhecida como Lex Duodecim Tabularum, foi o resultado de uma compilação de normas dispersas, que, segundo Tito Lívio, viriam a ser consignadas no primeiro documento legislativo

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redigido pelos romanos e que acabaria por enformar o seu Direito Público e Privado (Vieira, 2011). Nas ‘Doze Tábuas’ são apresentados vários direitos e deveres de instituições como a família e, ainda, alguns rituais tendentes à realização de negócios formais, sem embargo de, à imagem de outras leis primitivas, combinarem procedimentos rigorosos com penas, igualmente, severas (Giordani, 1996).

Surgindo num período fortemente marcado pelo misticismo e espiritualidade, durante o qual, pese embora a existência de “um poder social capaz de impor aos homens normas de conduta e castigo” (Noronha, 1997: 21), a punição infligida teria de ser proporcional ao Deus ofendido na sua grandeza, pois este era considerado o «guardião da paz», também a vingança divina se encontrava consignada nos Código de Manu, Hamurabi e Pentateuco. A responsabilidade na sua administração competia aos sacerdotes, que, de modo a acalmar a ira do supremo, não se coibiam de aplicar penas cruéis e desumanas a quem ousasse transgredir o princípio teocrático preestabelecido.

A pena era, assim, entendida como um castigo divino que procurava, sobretudo, a purificação e a salvação da alma do prevaricador. Temendo que os deuses fizessem recair a sua ira sobre o povo, desencadeando todo o tipo de desgraças, nomeadamente pestes, seca, fome, cataclismos, …, tinha esta como principal finalidade apaziguar a divindade ultrajada pelo crime, evitando a sua revolta contra a comunidade, passando a fazer parte do intento penal igual propósito de proteção social.

Refira-se, por fim, que, ainda em matéria de crimes contra o divino, no período da Inquisição, a aplicação de uma sanção penal considerava como propósito, não propriamente o de apaziguar a fúria celestial, mas uma finalidade específica de controlo social em que, por via da perseguição e tortura de hereges,12 se procurava evitar uma desregulação de forças através da concentração do poder clerical e secular de um lado, e o do povo do outro, equiparando o pecado religioso à da prática de uma ofensa grave a Deus e, consequentemente, ao poder do Estado.13

Em conclusão, se até aqui fomos desvelando um ideal penal característico e regulador dos comportamentos de algumas civilizações da Idade Antiga, a questão que se coloca, a seguir,

12 Segundo Naspolini (2006) “O termo heresia englobava qualquer atividade ou manifestação contrária ao que havia sido definido pela Igreja em matéria de fé. Dessa forma, na qualificação de hereges encontravam-se os mouros, os judeus, os cátaros e albigenses no sul da França, bem como os supostos praticantes de bruxaria.” (p. 190)

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é a de tentar desvendar o tipo de instrumentos a que estas recorriam visando assegurar o cumprimento da justiça, durante igual período.