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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

1. Pena – uma aproximação ao conceito

1.2. O advento da prisão

Tendo presente as palavras de Santos, Alchieri e Flores Filho (2009) de que “A história da violência é a história do Homem. Surge com ele e o acompanha através dos tempos.” (p. 175), continuaremos o nosso périplo pelo período da Antiguidade, salientando o facto de que a prisão, para além de instrumento coercivo (Cavalcanti, 2005; Esteves, 2010), servia também como local de custódia e de confinamento de pessoas, com o intuito de se prevenir uma (possível) fuga antes de um julgamento, objetivando-se com tal prática, entre outras finalidades, a garantia do pagamento de uma dívida, a devolução de bens furtados ou, em situações mais graves, a execução de pena de morte. Para além disso, serviu esta, ainda, os intentos de encarceramento de prisioneiros de guerra, de escravos revoltosos, desertores, contrabandistas e ladrões de toda a espécie, visando, por norma, um propósito executório de pena capital.

Mais nos cumpre referir que não existe cronologia segura sobre o surgimento das prisões, sendo vários os autores a nos remeterem para diferentes registos temporais. Salientamos, contudo, que pelo facto do aprisionamento, per si, não ser entendido como medida penal por excelência, mas uma garantia de detenção, face à ausência de um regime penal legalmente instituído, também a inexistência de lugares apropriados ao confinamento de pessoas se verificava. Por conseguinte, ao nos referirmos ao termo ‘prisão’, teremos em mente todo o tipo de locais, os mais variados possível, nos quais, para além de uma finalidade de guarda, imperavam, ainda, práticas de tortura (idem).

Assim, e começando a nossa revisão historiográfica por Roth (2014), somos remetidos para indícios de prisões no Egito, nomeadamente no ano 2650 a.C. e para a Pirâmide de Keops, em Gizé, (também designada de ‘Grande Pirâmide’), mandada construir pelo faraó Khufu, como futuro túmulo, contendo no seu interior um poço subterrâneo, conhecido como “prison- house of the lost” (p. 45). Acrescenta este autor que, séculos mais tarde, seria ainda construída a Pirâmide de Saqqara (apelidada de ‘pirâmide de degraus’), mandada edificar por Teti (2345- 2333 a.C.), primeiro faraó da sexta dinastia egípcia, ficando para a história como a “prison pyramid” (idem).

Relativamente ao território asiático, menciona também Roth (2014) a existência de indícios de encarceramento, nomeadamente no seio das civilizações chinesa e japonesa, sendo

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que, no caso chinês, no Shangshu, também conhecido como Shujing (compilação de registos documentais sobre acontecimentos relativos à história e civilização da China antiga), encontra- se mencionada a construção de uma prisão pelo Imperador Fuen VIII (2000 a.C.).

Na mesma linha de pensamento, Peters (1998), embora não se referindo objetivamente às pirâmides, aponta para a existência de prisões no Egito, no ano 2050 a.C., apresentando estas como forma subsidiária de castigo, destinadas a casos de não-pagamento de dívidas, roubos, suborno, para custódia de escravos revoltosos e, também, como locais destinados a cativeiro de estrangeiros (cf. p. 8).

Roberts (2006), por seu turno, inclui a sua existência no império Babilónico, situando estas entre 3000 a.C. a 400 a.C., tal como destinadas aos mesmos fins que as congéneres do Egito, nomeadamente para o não-pagamento de dívidas de curto montante e, ainda, como locais de reclusão de estrangeiros. Continuando na sua análise, remete-nos o mesmo autor para relatos da sua existência na Bíblia, mais precisamente para o “Velho Testamento”, com exemplos de sanções impostas por egípcios,14 filisteus, hebraicos e assírios (cf. p. 74).

Por seu turno, e uma vez mais, revela-nos Roth (2014) que, no reinado de Nebuchadnezzar (605-562 a.C.), Jerusalém possuía três tipos de prisões, distribuídas por entre: Beth ha-keli (casa de detenção); Beth haasourim (casa dos castigos e dos acorrentados); Bor (depósito subterrâneo), (cf. p. 45). Relativamente a estas últimas (Bor), durante o Império Assírio (746-539 a.C.) esclarece-nos Peters (1998), que se situavam no interior de celeiros (na maior parte das vezes, inseridas dentro das próprias cisternas), destinados ao armazenamento de cereais. Nestas eram, assim, encarcerados ladrões de toda a espécie, desertores, contrabandistas, não-pagantes de impostos, prisioneiros estrangeiros, aos quais era imposto o trabalho forçado, nomeadamente na moagem da farinha (cf. p. 9).

Segundo Mirabete (2001), são, também, conhecidos indícios do recurso ao aprisionamento no tempo dos judeus. Sobre esta matéria refere-nos o autor que, após a consolidação da Lei Mosaica, surgiu um outro registo documental, de seu nome Talmude,15 que

14 A título de exemplo, refira-se a prisão de José, filho de Jacob. (Cf. Génesis, 39:20-40:5), in Bíblia Sagrada (edição pastoral). (1ª ed.). (1999). Revisão exegética do AT na edição portuguesa por Fr. Raimundo de Oliveira O.P. e revisão literária por P.e João Gomes Filipe. Lisboa: Edições Paulus.

15 Ainda, sobre esta matéria, consideramos não ser despiciendo aqui deixar uma referência à importância acrescida do Talmude para uma melhor compreensão da influência da religião no seio da civilização hebraica. Com efeito, compreende este documento um conjunto de 63 livros onde se encontram registadas toda uma “Compilação de leis, costumes e tradições judaicas” (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, 2001: 3506). Elaborado após a composição da Bíblia, o Talmude (também conhecido por um conjunto de discussões rabínicas) assenta em três princípios fundamentais (instrução ou ensinamento; serviço de Deus; caridade) e é composto por duas partes: “Mishna” (parte relativa às leis) e “Gemara” (contendo comentários sobre lendas e narrativas históricas). Destarte, o Talmude que em hebraico significa “doutrinar, ensinar, interpretar” (Apolinário, 2007: n.p., citando Ismael da Silva Júnior, 1980) configura “uma coleção de livros sagrados, preparados por alguns rabinos judeus, contendo um conjunto de leis, civis e religiosas, do povo descendente de Abraão.” (idem). Neste seguimento, tal coleção “foi preparada em virtude da grande dificuldade que havia na interpretação das leis do Pentateuco, ou dos cinco primeiros livros das Escrituras Sagradas, escritos por Moisés, sob a inspiração direta do Espírito Santo de Deus” (idem).

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viria a ter contributo decisivo para a evolução do Direito Penal no seio deste povo. Da sua evolução ressalta-se a substituição do Talião pela aplicação de multas, prisão e/ou castigos corporais e, ainda, a (quase) abolição da pena de morte, comutada pela prisão perpétua (segundo a gravidade dos crimes), contudo, sem recorrer à imposição de trabalhos forçados (cf. p. 36).

Fig. 1 – Prometeu Agrilhoado

A ideia de prisão surge-nos também referenciada na dramaturgia e filosofia gregas, nomeadamente na tragédia de Ésquilo, Prometeu Agrilhoado, no qual o protagonista, um defensor da humanidade, conhecido pela sua astuta inteligência, responsável por roubar o fogo dos deuses e o dar aos mortais, acabou sendo castigado e acorrentado a um rochedo para toda a eternidade. Ainda segundo uma conceção mitológica, contradizendo a opinião de historiadores, que situam na Grécia a origem remota do Direito Penal, dividindo os gregos os crimes em público e privado, consoante os interesses nestes envolvidos, refere Noronha (1997) que, a princípio, enraizado num sentimento religioso, surgia Júpiter como expoente máximo, vendo o seu nome invocado na acusação e na aplicação do castigo, porquanto era considerado “o criador e protetor do universo.” (p. 22).

Todavia, tal justificação mítica viria a ser contestada, por Aristóteles. De acordo com este filósofo o fundamento da «culpabilidade» deveria primeiro afirmar-se no plano jurídico, depois de ter feito escola nos campos filosófico e ético. Ainda segundo Aristóteles, ao cumprimento de uma sanção, deveria ser tido em conta o recurso ao pagamento de uma multa ou, em casos mais graves, a aplicação do exílio ou pena de morte.

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Seguindo a mesma linha de pensamento de seu mestre, Platão, num arquétipo de «cidade ideal», defendia o princípio corretivo da pena, devendo esta apresentar-se aos olhos dos cidadãos, como meio dissuasor de delinquência, podendo mesmo, quando necessário, resultar no encarceramento de criminosos (Pavón Torrejón, 2003, cf. p. 23). Assim, em As Leis, advogou Platão o princípio de que as prisões, muitas vezes utilizadas como locais de tortura, deveriam ter um propósito corretor de comportamentos antissociais. No seguimento desta linha de pensamento, defendeu a criação de três modelos de prisão:

i. a primeira, denominada de ‘cárcere de custódia’, situar-se-ia na praça do mercado, destinando-se a delinquentes, em cumprimento de penas menores;

ii. a segunda, que designou de ‘sophonisterion’ (centro de readaptação social, cujos reclusos seriam visitados pelo “Círculo Noturno”), localizar-se-ia no perímetro da cidade e o tempo de reclusão ultrapassaria os cinco anos;16

iii. a terceira, designada de ‘casa de suplício’, destinava-se a «criminosos incorrigíveis», um local deserto e sombrio, afastado o mais possível, da cidade, sendo que a sentença não terminaria, somente, com a sua morte – os seus restos mortais seriam também depositados longe das fronteiras da cidade.17

No mesmo diapasão da civilização grega, surge também a mitologia, como fonte de legitimação da afirmação de Roma e da sua civilização perante o mundo. De acordo com a historiadora Pavón Torrejón (2003), a vestal Reia Sílvia, mãe de Rómulo e Remo, fundadores de Roma, foi castigada por não ter cumprido os seus votos de castidade e, por tão criminosa desobediência aos deuses, condenada a reclusão perpétua (cf. p. 23). Continuando, remete-nos também esta autora para Anco Márcio,18 monarca no período da realeza,19 por muitos

16 Segundo Trigueiros (2000) o “Círculo Noturno” (p. 41) configuraria uma espécie de sociedade filantrópica, a quem era autorizado que instruísse espiritualmente os condenados e aferisse das suas melhorias corretivas. Mais refere que este modelo de cárcere destinava-se “aos que tinham cometido crimes mais graves e aos que eram tolos (em vez de intrinsecamente maus)” (idem).

17 Cf. Roberts (2006, p. 74). Pela sua relevância, designadamente para efeitos futuros, são de, aqui, recuperar as palavras deste autor: “Plato’s blueprint was never adopted by the ancient Greeks, but it anticipated with remarkable accuracy the corrections-oriented prison systems of many centuries later, with their graduated levels of security.” (p. 75).

18 No período da realeza, Anco Márcio, foi o quarto monarca da cidade de Roma, tendo governado entre 640-616 a.C.

19 Segundo Giordani (1996) a civilização romana assentou em três grandes períodos de desenvolvimento: (i) Período da Realeza – da fundação de Roma (753 a.C.) até ao início da República (510 a.C.); (ii) Período da República – da expulsão da realeza (510 a.C.) até à batalha de Ácio (Grécia) em 31 a.C., que ditou o fim da República e o início do Império; (iii) Período do Império (consistiu em dois regimes de governação) – ‘Principado’ - o início do reinado de Augusto (27 a.C.) até Diocleciano (284 d.C.). Nesta fase o Imperador é o primeiro (princeps) dos cidadãos, pese embora se submeter às mesmas leis, tal como os demais; ‘Dominato’ (Monarquia Absoluta) - desde o reinado de Diocleciano até à morte de Justiniano (565 d.C.), sendo que, nesta fase, o Imperador não é somente o primeiro dos cidadãos, mas o seu senhor (dominus). Cf. Giordani, Mário (1996). Iniciação ao Direito Romano. (3ª ed.). Rio de Janeiro: Lumen Juris.

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considerado o ‘obreiro’ do cárcere Mamertino (Roma),20 e para Ápio Cláudio21 (um dos redatores da Lei das XII Tábuas), já no período da República, que, tendo sido responsável pelo aprisionamento de muitos cidadãos, acabou sendo ele, também, vítima de encarceramento (idem).

Roberts (2006) refere que alguns exemplos de aprisionamento, relativos ao período do Império, constam inclusivamente no “Novo Testamento”, nomeadamente episódios de romanos enclausurando cristãos em calabouços sob o Coliseu de Roma, para serem lançados às feras na arena (cf. p. 74).

Famoso ficou, também, o cárcere Mamertino, onde, entre outros, foram enclausurados comandantes de exércitos estrangeiros capturados em batalhas, para exibição em desfiles pelas ruas da capital, findo os quais, e para gáudio da multidão, eram estrangulados. De igual modo, e antes de sua morte, foram também nesta encarcerados os apóstolos Pedro e Paulo, perseguidos pelo Imperador Nero, sendo que Pedro, após uma malograda fuga, acabou sendo crucificado (ca. 64-67 d.C.), à sua ordem, com a cruz invertida.

Finaliza Peters (1998), referindo que, de uso comum durante o período do Império, surgia também o ergastulum (cárcere doméstico) destinado a castigo de escravos delinquentes ou membros da família, situando-se este, normalmente, numa divisão subterrânea da habitação do pater familias (literalmente ‘pai de família’ – o mais elevado estatuto familiar). Destarte, e como um cativeiro privado, ficava ao encargo do seu senhor determinar se a sua detenção teria caráter temporário ou definitivo. Algum tempo mais tarde, viria um tal dispositivo a ser adaptado ao ambiente monástico medieval.22 (Retornaremos a este assunto mais adiante).