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IDEAL PENAL – UMA NARRATIVA ESCORCIVA

2. Idade Média

2.2. O Direito Canónico e a instituição do poder da Igreja

As origens do Direito Canónico assistiram e conviveram em paralelo com as grandes transformações sociais que ocorreram durante a época medieval, um período marcado por invasões bárbaras, particularmente dirigidas ao Império Romano do Ocidente; pelo surgimento de vários estados feudais; pelo advento da Inquisição; pela formação das primeiras Universidades; pelo fortalecimento dos regimes monárquicos; fatores que, entre outros, contribuíram fortemente para a fundação e consolidação da Igreja Católica, assente num governo centralizado na Santa Sé e na figura do Sumo Pontífice. Por conseguinte, e tomando como apropriadas as palavras de Gilissen (1995)

Qualquer estudo histórico do direito na Europa seria incompleto se não englobasse um esboço da evolução do direito canónico. Com efeito, por um lado, a Igreja desempenhou um papel considerável na sociedade

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medieval; por outro, foi durante este mesmo período um poder temporal muito poderoso, pelo menos em certas épocas e em certas regiões. (p. 134)

De acordo com este autor, o Direito Canónico simboliza o direito dos cristãos, tal como comummente designado de direito normativo da Igreja Católica. Do grego kanoon, que significa «regra», foi empregue durante os primeiros tempos da instituição católica, nomeadamente durante o período da Idade Média, para designar as decisões decorrentes dos concílios papais (cf. p. 133), que rapidamente se disseminariam pelo continente europeu e que vieram a sustentar a base de afirmação do seu poder. Atentemos, por isso, nos seus princípios legitimadores:

i. O caráter ecuménico da Igreja – o Cristianismo apresenta-se ao Homem como a única verdadeira religião universalista. Numa Europa repartida por entre regimes feudais, fechados entre si e representados, regra geral, por um regime jurídico de natureza consuetudinária, tal assunção conferiu-lhe um caráter mais uniforme e unitário direcionado às comunidades de então;

ii. Pilar do Direito Civil Moderno – pela primazia na regência de determinados domínios do direito privado, sobressaindo, entre estes, litígios relativos ao casamento ou divórcio; iii. Único Direito escrito, comentado e analisado durante grande parte da Idade Média – a partir

do séc. XII foi empreendida uma redação, mais ou menos sistemática, do Direito Canónico potenciada pelo surgimento das primeiras Universidades, cujos académicos contribuiriam para a compilação e codificação de toda uma série de normas e de regulamentos eclesiásticos, dando início a uma prática sistematizada que perdurou no tempo à atualidade; iv. Modelo de referência em trabalhos doutrinais – assumindo-se como um documento preferencial de consulta, visando a produção científica, porquanto a sua existência como Direito escrito e erudito, muito antes do Direito laico, acabou por vir a exercer enorme influência na constituição deste último (cf. pp. 134-135).

Defende Lopes (2011) que o Direito Canónico deve ser analisado com enfoque numa adaptação às novas condições sociopolíticas surgidas das cinzas da Antiguidade, fortemente influenciadas pela religião emergente, o Cristianismo. Segundo este autor, foi preocupação da Igreja o estabelecimento de uma nova ordem social através de um regime jurídico-político que a consagrasse. Com efeito, a uma Europa geograficamente entrincheirada em regimes feudais

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multifacetados entre si, o vigor das leis e a sua implementação no terreno, em larga medida fariam depender a sua sobrevivência e crescimento.

Na mesma linha, Wieacker (1967) refere-nos que, dado o seu instituto universal e caráter jurídico minuciosamente ordenado, o Direito Canónico viria a impor-se a uma Europa fragmentada por poderes políticos, em virtude de uma ausência de governos centrais fortes, com capacidade para instituir uma regulação social robusta, sendo que neste modelo de organização das sociedades vigorava a vontade e a autoridade dos senhores feudais, que, por tal facto, detinham o poder de aplicação da justiça. Não foi, por isso, de admirar que, a ausência de uma legislação estatal, em simultâneo com a crescente autoridade social da Igreja, viessem a ser fundamentais na preponderância que o Direito Canónico viria a adquirir durante o período medieval. Assim, nas palavras deste autor: “A igreja era a força espiritual de longe mais importante; era, ao mesmo tempo, a mais coerente e a mais extensa organização social da Idade Média; finalmente, a sua ordem jurídica interna era a mais poderosa da Idade Média, em termos gerais.” (p. 67).

Por conseguinte, ao não se identificar com um qualquer período temporal de um qualquer Estado, graças à universalidade do seu magistério, a Igreja viria a reconhecer a existência de um Direito laico e a estabelecer uma fronteira entre «jus civile» (Direito Civil) e «jus canonicum» (Direito Canónico), (cf. p. 68), disjunção que viria a contribuir decisivamente para o desenvolvimento de um regime jurídico distinto e consequente legitimação do seu poder. Fruto da disseminação territorial, no seu primeiro milénio de existência, assistiria esta instituição a produções várias de material relativo à normatização da vida cristã, apesar do seu alcance não ter ultrapassado as raias do local ou regional. Consequência de uma tal situação, a existência de legislação díspar em diversos documentos era frequente, o que originava que a de uma determinada região entrasse em conflito com a de outra. Os bispos com enorme influência junto das comunidades, em que exerciam o seu magistério, constituíam a força motriz no que à administração de regras disciplinares respeitava. Impunham às ordens religiosas o rigor da lei, sendo que muitos dos seus escritos nos feudos viriam a ser compilados e incluídos numa futura legislação eclesiástica. A título de exemplo, refere-nos Lopes (2011) que, com os monges celtas (irlandeses), que orientavam os fiéis sob a forma de confissão, surgem os «penitenciais» – “livros que indicam regras a aplicar em casos particulares, ou seja, penitências a serem dadas para os pecados” (p. 58), decorria o papado de Gregório I (590-604).

Numa época de incertezas e de redefinição de estratégias os maiores impulsos em torno da afirmação da Igreja na Europa, em particular até ao séc. XI com Gregório VII (1073-1085),

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foram, respetivamente os concílios e o movimento monástico. Os sínodos episcopais regionais ou nacionais, nos quais se reuniam altos dignatários do Clero, foram, nesse sentido, um importante centro de comando e de organização geopolítica desta instituição. Por conseguinte, a construção de igrejas, mosteiros e abadias nos feudos, conjuntamente com a presença de elementos do Clero no terreno, não aconteceu por acaso e a afirmação da sua independência face ao braço secular foi, sobretudo, uma tentativa de assunção da sua autoridade.

No decurso de uma das mais importantes reformas empreendidas pela Santa Sé, nomeadamente no pontificado de Gregório VII, surgem publicados os Dictatus Papae, i.e., conjunto de normas e regulamentos que, segundo Lopes (2011), visaram afirmar em definitivo a defesa do poder espiritual sobre o temporal. De igual modo, também a nível interno, foi intenção deste Papa acabar com alguns excessos do Clero que enfraqueciam a autoridade da Igreja, salientando-se, entre estes, a simonia (venda de bens e/ou privilégios espirituais), nicolaísmo (casamento do clero) e a nomeação de leigos para altos cargos eclesiásticos em troca de bens (rendas, terras, mosteiros). Atentemos, por isso, na importância de algumas das suas disposições:

(1) A Igreja Romana foi fundada exclusivamente pelo Senhor; (2) Só o bispo de Roma pode ser chamado universal de direito; (3) Só ele pode depor e instalar bispos; (4) Seu legado precede a todos os bispos de um concílio, mesmo se tiver um grau hierárquico inferior, e pode sentenciar qualquer um deles com a deposição; (…); (7) Só ele pode legislar de acordo com as necessidades do tempo; (…); (9) Só seus pés podem ser beijados pelos príncipes todos; (10) Só seu nome deve ser recitado nas Igrejas; (11) Ele pode depor os imperadores; (…); (16) Não se podem chamar sínodos gerais sem as suas ordens; (17) Nenhum capítulo ou livro pode ser considerado canônico sem a sua autoridade; (18) Nenhum de seus julgamentos pode ser revisto, mas ele pode rever os julgamentos de todos; (…); (21) Os casos mais importantes de todas as Igrejas podem ser levados à Sé Apostólica (ele é ordinário em qualquer jurisdição); (…); (27) A ele compete dissolver os laços de vassalagem e fidelidade para com o homem injusto. (p. 70)

Tendo por base os (27) ditames (embora não os percorrendo todos) em que são expressas as principais ideias sobre o papel da Santa Sé na sua relação com os poderes temporais, estabelece Gregório VII que o Sumo Pontífice é o ser supremo da Igreja, hierarquicamente acima de fiéis, sacerdotes e bispos, bem como de Igrejas locais, regionais e/ou nacionais, e, ainda, concílios. Preconiza, ainda, este documento que o Papa é a autoridade suprema na Terra e que a si todos lhe devem submissão incluindo príncipes, reis e imperadores. Por fim, centraliza na Santa Sé a jurisdição de importantes contendas e o poder de intermediação entre os seus súbditos, o que, naturalmente, viria a resultar numa diminuição do poder dos bispos locais.

O séc. XII testemunharia, assim, uma importante evolução ao nível da afirmação do Direito Canónico, sendo de realçar o importante contributo advindo, quer das ordens

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monásticas, quer das Universidades, que entretanto foram surgindo pelo continente europeu. Saliente-se a respeito que, por volta de 1140, uma série de decretos, leis, pareceres e decisões do Clero seria compilada por Graciano de Bolonha.35 Face à profusão de legislações existentes, o seu objetivo passava por comparar os cânones discordantes classificando os textos, de acordo com o seu valor jurídico. Para o efeito, é publicado a Concordantia Discordantium Canonum (Concordância dos Cânones Discordantes), também conhecido por Decretum, primeira parte do Corpus Juris Canonici, comummente considerado como ponto de partida no estudo do Direito Canónico (Gilissen, 1995).

Refira-se, por fim, que, o Direito Canónico, fortemente influenciado pelos ideais cristãos, irá adaptar os princípios do Direito Romano aos normativos da Igreja e direcioná-los aos mais recônditos enclaves feudais, para aí combater a lei consuetudinária e proclamar a igualdade de todos os homens perante Deus. As penas passarão a ter, não só uma finalidade de penitência, mas também a de regeneração do criminoso pela contrição e purgação da culpa, o que, paradoxalmente, irá conduzir à Inquisição (Mirabete, 2001).