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4.3 Fluxos do Caminho

4.3.2 Laboratório Alquimia dos Pés Descalços

Durante as reuniões de organização do Caminho das Ervas, Val sempre destacava seu desejo por produzir produtos a partir das plantas. Eram colhidas muitas ervas nos mutirões, que acabavam secando e se perdendo por não serem processadas. Com a chegada de Indiana, o Projeto do Laboratório Alquimia dos Pés Descalços tomou forma. Indiana é uma mulher de cerca de 40 anos que vive no Chile e veio à Serra Grande há aproximadamente três anos (2016) para parir sua filha com Val. Depois de ganhar sua filha Munara, Indiana retornou ao Chile, onde vivia, e, após um ano, voltou à Vila novamente na intenção de, durante três meses, contribuir com Val no Projeto Caminho das Ervas pensando novas possibilidades.

Numa reunião com a participação de Indiana, Val afirmou novamente o seu desejo de produzir produtos a partir das ervas que eram desperdiçadas. E ainda ressaltou que tais produções poderiam gerar renda para o Caminho, já que essa era sempre uma grande questão para o grupo. Neste dia Indiana propôs que criássemos um grupo paralelo ao de organização do Caminho para pensarmos como seria possível viabilizar o seu desejo de produzir produtos a partir das ervas cultivadas no quintal. Eu, Julia Neves, Julia Rossati, Val, Indiana, Marina e Suzana comprometemo-nos a montar o grupo e nos reunimos (nem todas presencialmente) durante 13 encontros regulares, às quartas-feiras pela manhã.

Ao longo das reuniões, Indiana propunha dinâmicas que misturavam técnicas de desenho, escrita, revelações subjetivas de cada uma, sempre iniciada com cantos em roda e os pés no chão do quintal. Conforme ela dizia, precisávamos estar com os pés no chão para sentir aquela terra. Aos poucos, fomos nos reconhecendo como um grupo de mulheres em busca de desvendar os segredos das ervas.

Tínhamos um livro no qual eram registrados todos os processos pelos quais passávamos. No primeiro dia de reunião (08\08\2018), numa dinâmica em que cada uma

escrevia uma frase que “sentia”77, deixando à mostra apenas a última palavra para que a outra continuasse, chegamos ao que consideramos a “essência” do grupo.

Sou a arte da Criação. Participo. Brinco. Simplifico. Ordeno e ilumino cordialmente.

Aceito e agradeço as energias envolvidas no processo, para que floresça da terra a abundância.

Para um mundo novo de luz, amor e bons encontros com esse grupo que vai firmar novos propósitos.

Amor e fé.

(Livro de registro Alquimia dos Pés descalços, 2018)

Indiana foi a primeira a escrever e explicou que começou com a frase “Sou a arte da Criação”, por aquele se tratar do dia fora do tempo no calendário Maia78 que antecede o primeiro dia do ano e que era um dia muito “auspicioso” para começarmos o grupo. Após alguns encontros, Julia Neves trouxe uma canção, que conforme nos relatou, chegou a ela de modo natural e quis compartilhar com o grupo:

Sigo meu caminho Boto o pé na Terra Falo com a mãe Terra Sou feita dela

De pés descalços Livre pra sentir Livre pra sonhar Juntas somos cura De pés descalços sou Da semente consciente Nasce o canto dessa gente.

(Livro de registro, Alquimia dos Pés descalços, 2018)

Chegamos ao nome Laboratório Alquimia dos Pés Descalços, o qual passou a ser o nome do projeto já na terceira reunião (agosto de 2018), e foi nesse mesmo dia que definimos a descrição do projeto como:

77 O verbo “sentir” em Serra Grande e especialmente no Caminho das Ervas é frequentemente substituído pelos

verbos pensar, querer, desejar, em certa medida apontando para uma lógica que muito mais da sensibilidade do que da racionalidade.

78 O calendário Maia é um sistema de calendários e almanaques distintos, usados pela civilização Maia da

Mesoamérica pré-colombiana, e por algumas comunidades maias modernas dos planaltos da Guatemala. Disponível em <https://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_maia>. Acesso em: 06/05/2020

O Laboratório Alquimia dos Pés Descalços é um Projeto de pesquisa e desenvolvimento dos poderes das plantas no cuidado do corpo e do espírito das mais diversas formas.

Somos um grupo de sete mulheres envolvidas com o autoconhecimento e comprometimento de transformação do mundo através do respeito e cuidado afetuoso conosco e com o mundo. Nos propomos a estudar e desenvolver medicinas e trabalhos diversos que promovam a melhoria do bem estar através dos saberes ancestrais das ervas e das técnicas tradicionais de cuidado.

(Livro de registros, Alquimia dos Pés descalços, 2018)

Após a definição (essência) e registros artísticos (música, desenho, marca) construímos nossos objetivos para as atividades que seriam criadas: elaboração de tinturas e chás; desenvolvimento de florais, tinturas, garrafadas, xaropes, extratos; oferecer atendimentos para tratamento através de nossos produtos e serviços; produção de ervas secas; elaboração de um tarô das ervas; promoção de encontros e cursos que tratem das ervas e os saberes tradicionais do cuidado; elaboração de calendário das ervas.

Já estávamos no sexto encontro e Val ansiava nas reuniões anteriores pela materialidade da produção. Como ela dizia nas mensagens que mandou neste dia, no

WhatsApp: “Eu não poderei ir porque tenho que atender a um outro chamado, mas vocês têm

que pôr a mão na massa e parar com esse blá, blá, blá”. Assim, nessa reunião em que Val não compareceu, conversávamos sobre sua ansiedade em relação ao processo, já que as outras participantes concordavam que a sua elaboração teórica era essencial para esclarecer o que queríamos e o que nos nortearia. Foi quando Indiana ressaltou que se para nós os registros no livro e elaborações estética e teórica traziam mais importância para o projeto, para Val aquilo não significava nada. E afirmava: “Val é da ação, ela quer pôr a mão na terra, mexer com as plantas e realizar, esse livro aqui pra ela não significa nada”.

Lembro-me de ter me sentido bastante frustrada com tal compreensão, já que o investimento de tempo e trabalho na elaboração daquele livro para mim havia sido grande. E a partir desse encontro, com a clareza e assertividade de Indiana, as coisas começaram a mudar no grupo. Nesse mesmo encontro recebemos Cristine, produtora de cosméticos naturais da linha Dandara, que nos procurou para ajudá-la na realização do “Encontro sobre Plantas Medicinais e Qualidade de Vida na Bahia”, acrescentando que a Universidade de Viçosa buscava um local para a sua realização. Assim, os próximos encontros do Laboratório

Alquimia dos Pés Descalços se dividiram entre duas horas para desenvolvermos a atividade do grupo e uma hora para resolvermos questões específicas do Encontro79.

Com o objetivo de pesquisar as plantas, seus usos e indicações, montamos uma lista de 28 nomes de plantas, já que éramos um grupo de mulheres em busca de cura (especialmente) feminina por meio das plantas, associando-as aos 28 dias da lua e do ciclo feminino80. A ideia era selecionar 28 plantas nativas ou muito comuns na região para pesquisarmos suas propriedades físicas, emocionais e espirituais, seus usos e suas histórias. E, a partir delas, desenvolvermos produtos como chás, tinturas e óleos, além de um tarô das ervas medicinais. Assim escolhemos: Açafrão; Assapeixe; Aroeira; Alecrim do campo; Amora; Amescla; Alfazema; Babosa; Boldo; Capim santo; Capeba; Canela de velho; Confrei; Copaíba; Cravo da índia; Cravo da vitória; Embaúba; Folha da costa; Graviola; Genipapo; João brandinho; Picão; Passiflora; Pitanga; Perfume de mulata; Sucupira; Tioiô/ quioiô; Urucum.

Dessas plantas, cada participante do grupo deveria escolher algumas e desenvolver sua pesquisa, para que depois pudéssemos criar os produtos desejados. Mas a pesquisa acabou não acontecendo. Como Val estava angustiada com as ervas colhidas que estavam se perdendo, começamos um movimento de esvaziar uma das suítes da casa, em que havia morado uma pessoa por alguns meses. E como suas coisas e sua energia ainda estavam lá, decidimos limpar todo o quarto, pintá-lo e pensarmos em um projeto para criarmos ali nosso laboratório.

Porém a dinâmica do grupo foi se tornando desorganizada, com interesses e questões pessoais distintos que interferiam no trabalho. Houve então, uma última reunião antes do evento da Universidade de Viçosa que, como chamou a atenção Indiana, era a décima terceira reunião do grupo e, para o calendário Maia esse número representava o fechamento de um ciclo. Nesse dia, muitas apontavam a incerteza do ano seguinte, se estariam vivendo na Vila ou não, e até mesmo Val não sabia se continuaria com o Projeto Caminho das Ervas, e continuando, se seria nesse formato ou nessa casa.

Assim, Indiana destacou a importância do fechamento daquele ciclo de compreensão e elaboração da ideia e dos desejos de Val, bem como seu registro no livro e do projeto que escrevemos. Mas chamou a atenção que, naquele momento, encerrava-se esse ciclo para entrar em um novo: o ciclo da ação. Como ressaltado por Indiana, Val era da ação e

79 O Encontro sobre Plantas Medicinais e Qualidade de Vida na Bahia será descrito a seguir.

80 A lunação, nome dado ao período de menstruação, bem como todas as fases do ciclo menstrual feminino são

muito valorizadas e respeitadas dentre todas as mulheres que frequentam o grupo Caminho das Ervas, e também entre os chegantes de um modo geral. Inclusive a justificativa de não ir a algum compromisso ou não dar conta de algum trabalho devido ao período lunar é completamente aceita, respeitada e frequente.

necessitava realizar. Sendo assim, era um novo ciclo que se iniciaria com um grupo voltado para colocar as mãos nas ervas, processá-las e produzir os produtos.

Indiana destacou que cada uma de nós deveria “sentir” com o que nos identificávamos, afirmando que sua missão estava cumprida no grupo e que dali em diante se formaria um novo grupo. Nossa última missão seria o Encontro sobre Plantas Medicinais e Vida Saudável na Bahia. Nessa última reunião fizemos novamente a dinâmica de escrever uma frase partindo da última palavra da outra, como fechamento do ciclo e manifestação daquela energia.

Priprioca, lua cheia, manjericão, Tulasi.

Tulasi: bênçãos divinas que nos guarda. Guardiã da força do amor em qualquer espaço-tempo.

Tempo cronológico, psicológico, quântico, tempo fora do tempo. Presente, passado e futuro são iguais.

Iguais, irmãos, irmãs da Terra no processo de Transmutação. Transmutação de padrões limitantes e regeneração do solo pélvico. Pélvico, força que traz a vida. Vida, vida, vida!

Vida intensa, pura entrega. Não entender tudo, só sentir e ir. Ir, seguir, fluir, semear a cura, o amor.

O amor próprio, que sustenta esse encontro e o amor incondicional de Gaia por nós.

Nós agradecemos a força ancestral dessa terra que nos permite vivenciar a alquimia da nossa alma.

(Reunião laboratório, 2018)

Depois deste dia nos encontramos para finalizar a organização do evento que será descrito a seguir, e depois nos afastamos para que pudéssemos cada uma “sentir” o Projeto Alquimia dos Pés Descalços.