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Seria inadequado buscar características, essências, desse modo nova era de habitar Serra Grande, já que as práticas são marcadas por movimentos criativos que se fazem no devir dos processos. Creio que podemos perceber uma continuidade entre os princípios e propósitos das clínicas acima descritas, embora também existam variações.

O Espaço Asas e Raízes oferece uma variante mais “espiritualizada” da terapêutica nova era, combinando elementos indígenas como parte de uma rede de grupos xamânicos e “tribos” (como a Tribo da Lua mencionada na descrição do Espaço). O Espaço Integral oferece, por meio de técnicas como fisioterapia, pilates e massagens, um cuidado que começa no corpo, por meio do contato manual, mas que se expande para outros níveis emocionais e espirituais do corpo que “conhece” e que podem, inclusive, ser a causa do sintoma no corpo físico. A Casa Púrpura está voltada a um grupo específico de pacientes que são as gestantes e puérperas. Para esse grupo são oferecidas terapêuticas que reúnem técnicas físicas de massagem e manuseio do corpo, mas também conversas sobre questões emocionais, rodas de compartilhamento de sentimentos e até utilização de ervas e alimentação específica no tratamento de questões físicas ou emocionais.

Nos agenciamentos terapêuticos por mim vivenciados “coincidem” certa espontaneidade dos acontecimentos e a valorização dos processos pelos quais estes são

revelados. Como vimos, a Medicina oferece uma forma divina, individual e interna de se trabalhar, auxiliada pela Ayahuasca e pelos espíritos da Natureza. Já a Naturologia reúne uma série de técnicas na construção de um processo entre paciente e terapeuta, de identificação e tratamento, sobretudo das questões físicas e emocionais. A destilação da Aroeira, por sua vez, é uma interação entre paciente/terapeuta com as ervas. Nesse processo trabalham mutuamente, sem uma doença inicial ou cura objetiva, oferecendo a oportunidade de interagir de modo positivo, curativo para quem se envolve, e em grupo.

Assim como cada um desses agenciamentos apresenta suas particularidades, na consagração da Medicina, tradições eram conectadas numa experiência única e espontânea daquele ritual. A erveira tradicional de descendência Tupinambá, com um defumador, junto à defumação xamânica, com o cachimbo de uma paulista abrindo os trabalhos rituais de consagração da Ayahuasca. A condução do ritual por uma argentina que aprendeu com um colombiano herdeiro dos conhecimentos indígenas, emergindo numa potência “típica” dos processos de criação nova era.

A partir dos relatos acima, gostaria de destacar, algumas ideias: a primeira delas é a busca de desenvolvimento espiritual e emocional de modo processual. A compreensão de que a vida é um eterno processo de amadurecimento e aprendizagem converte-se em um movimento individual de buscas por experiências espirituais e afetivas que contribuam para tal desenvolvimento. Esse processo não tem um fim, uma cura definitiva. Pode-se dizer que quando a palavra “cura” é utilizada, esta não se refere à concepção de cura definitiva de uma doença específica, comumente utilizada no sentido biomédico. A cura parece se referir ao processo de acurar o ser: aperfeiçoar, aprimorar, apurar, assim como o queijo ou o vinho, que quanto mais acurados, pelo tempo e pelos processos específicos, tornam-se melhores.

Pessoas acuradas pelo tempo, pelas experiências cotidianas de cura, tratamentos e terapias, tornam-se aperfeiçoadas no caminho do desenvolvimento pessoal-espiritual. Isso inclui sempre terapeuta e paciente, ou até mesmo produtores de produtos terapêuticos, que no processo de produção ou de “aplicação” da terapia, tanto promovem a cura como a vivenciam na relação com as ervas.

Assim, existe tratamento com resultados mais específicos, como o tratamento de uma dor lombar ou uma depressão, e tratamentos que não buscam resultados específicos, ou o tratamento de sintomas, mas a vivência do processo. Porém, os tratamentos com resultados também podem vazar para questões da vida, que podem ser fisicamente ou emocionalmente manifestadas em um ponto, mas que se espraiam para pelo ser. Nestes casos, os tratamentos podem iniciar com um resultado específico e mudar de objetivo ao longo do processo ou até

mesmo “desapegar-se” (usando aqui um termo nativo) dos resultados, o processo vivenciado tornando-se o mais importante.

Por outro lado, no universo terapêutico nova era em Serra Grande a oferta de tratamentos e terapias é a forma de sobrevivência financeira de muitas pessoas e, portanto, a oferta das terapias e de diversos processos terapêuticos, a meu ver, coloca em certa medida desafios ao acesso desse desenvolvimento pessoal-espiritual.

Se por um lado existe um interesse de que todos se desenvolvam espiritualmente e emocionalmente no caminhar para um mundo mais amoroso, com respeito à Natureza e menos consumo; por outro, o desenvolvimento financeiro também é sinal de sucesso. São dilemas que essas pessoas enfrentam. Neste sentido, pode-se ter uma grande casa, desde que bioconstruída. Assim como a prosperidade financeira é bem vista, desde que atenda as questões ambientais e sociais, algo controverso em Serra Grande, especialmente para os nativos, como aponta Castellanos:

Como então caracterizar espiritualidades em relação a projetos sociais? Uma questão constante que nos perguntamos, os que estudam o fenômeno contemporâneo do surgimento das espiritualidades, é se a tendência responde a um projeto contracultural, um movimento de crítica pós-colonial, ou se ao contrário é uma espiritualidade segundo os valores do neoliberalismo e da modernidade tardia. As respostas, como podemos ver, não apontam para uma única direção (CASTELLANOS, 2016, p.13. Tradução livre).

Nos próximos capítulos descrevo pormenorizadamente os agenciamentos do universo terapêutico nova era que se encontram com as questões sociais da comunidade de Serra Grande.

CAPÍTULO 4

O CAMINHO DAS ERVAS

Um importante ponto de encontro terapêutico de chegantes e forasteiros em Serra Grande é o Caminho das Ervas (doravante nomeado também apenas por Caminho). Fundado em 2017 por Dona Val, Aranda e Suzana, além do apoio de muitos outros colaboradores, o Caminho das Ervas é a porta de entrada de muitos chegantes para o dinâmico universo das terapêuticas alternativas do lugar. Trata-se de um projeto sediado em uma grande casa que promove diversos eventos de temática terapêutica, além de um extenso quintal de ervas medicinais frequentado por terapeutas, turistas e moradores da região. Segundo suas idealizadoras, o Caminho mantém-se de portas abertas para reunir os saberes das ervas na intenção de promovê-los e compartilhá-los com toda a comunidade de Serra Grande.

Pode-se afirmar que o lugar é uma “porta de entrada”. A maioria das pessoas que chega a Serra Grande passa pelo Caminho, vivenciando algum mutirão ou oficina. Com o tempo, normalmente criam outras relações e vínculos e acabam se afastando. Essa tendência aponta para duas questões importantes. A primeira é certamente a abertura do espaço e de sua mentora, Dona Val, para os visitantes em geral: todos são bem-vindos e podem ficar à vontade nas dependências da casa. A segunda questão diz respeito a uma característica mais delicada do projeto. Se no capítulo anterior mencionei os espaços terapêuticos que oferecem terapias alternativas diversas num engajamento mais “profissional” (comercial), no Caminho das ervas, pode-se dizer, a construção do processo terapêutico se dá de modo mais “romântico”, com ideais de amor e espontaneidade orientando os processos mais do que os objetivos ou as concretizações.

O Caminho das Ervas foi também o meu lugar de chegada, onde fui acolhida e iniciei meu próprio caminho pela terapêutica em Serra Grande. Neste capítulo descrevo o projeto, seu funcionamento, seus principais colaboradores, problemas e desafios de seus participantes. Começo por Dona Val, mentora e guardiã do projeto.